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Discreto rapaz de bem

Coisas e lembranças de Johnny Alf, o negro-gay-precursor-da-bossa-nova. Por Pedro “Pepa” Silva

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Você já ouviu a música gay do Caetano?, me perguntou. Qual delas?, eu respondi já rindo alto. Esta: “Amor mais que discreto”. Ouve aí! Repara nesse começo! É uma citação do Johnny Alf. Ilusão à toa. Você não conhece Johnny Alf, né? Sua geração não conhece! A minha também parece que conheceu pouco, sabe? Também quem se preocupa com um preto e gay que só criou o clima da bossa? Sim, estou sendo cínico. Mas ele é o precursor da bossa nova, aquele sambinha cult feito por uma galera branca de classe média e que ganhou o mundo! Viado, filho de empregada doméstica. Que nem a gente. Só que mais genial. O Tom Jobim chamava ele de “Genialf”.

 


Ilusão à toa – Johnny Alf e Alaíde Costa

 

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Tanta coisa de música brasileira pra descobrir… Minha geração é aquela que ainda lida com o legado e a aura de modernidade dos anos 1960 e 1970. Como se aquela fosse nossa semaninha de arte moderna. Talvez porque a nostalgia de uma época que não era esse presente tão fugidio seja uma condição. Talvez porque os arautos dessa música ainda estão por aí ora fazendo coisas brilhantes, ora falando merda, que ninguém é perfeito. Talvez porque é enquanto minha geração busca uma cara que estamos ainda tentando entender o Brasil daquela época.

 


Céu e Mar – Johnny Alf

 

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Desci do ônibus. O clima fazia valer a folga do trabalho: quente, mas não impossível de viver, com uma brisa tímida. Mentalmente busquei a letra de “Eu e a Brisa” perdida em um canto da memória. Mas lembrei de quem não gostava dessa música. “Ai! Johnny Alf é cafona demais”, dizia uma amiga. “Também não suporto! Acho chaaata!”, dizia a outra alongando os “as” pra intensificar a sensação, o olhar perdido, e já mudando de assunto quando eu tentava só dizer “Eu gosto com a Baby Consuelo!…”. Verdade que a música guardava memórias involuntárias e naquele momento o inesperado nos surpreendeu e nos fez falar de solidão, e de amores que poderiam ter sido e que não foram. Exatamente como na letra que eu buscava na memória.

 

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Alf nasceu em 1929 na mesma Vila Isabel de Noel. A mãe, empregada doméstica, logo ficou viúva – o pai de Alf morreu na revolução de 1932. O menino tinha talento pra música e começou a aprender piano bem cedo, graças ao auxílio de uma tia. Começou a tocar e cantar na noite – atividade que desenvolveu por muito tempo. A sonoridade era influenciada pelos compositores brasileiros de então, mas também pelo jazz e pelas trilhas do cinema norte-americano (sim, o ‘moderno’ era estadunidense!), como na faixa que abria o disco Diagonal, lançado no fatídico ano de 1964:

 

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“Acho que eu misturei tudo isso na minha cabeça, a música brasileira, as canções americanas, o jazz, mais os filmes musicais que eu assistia, e saiu alguma coisa. Minha música é difícil. É que eu tenho uma escala modulada, que não é bem aceita pelas gravadoras. Modulada é a música que tem vários tons, uma frase num tom, outra em outro tom. Irregular”

(Trecho do livro Johnny Alf – Duas ou três coisas que você não sabe, João Carlos Rodrigues)

 

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No começo dos anos 1950, bem antes de bossa nova ser batizada, Alf criou “Rapaz de bem”, um sambinha moderninho que trazia inovações musicais (e temáticas) que depois iriam dar a cara do movimento da zona sul carioca. Quem a ouve hoje logo reconhece uma sugestão de prostituição (não por acaso, a música é epígrafe de um capítulo do livro O Negócio do Michê, de Nestor Perlongher).

Rapaz de bem – Johnny Alf

 

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“Meu homossexualismo interfere como nuance que evidencia e policia meu comportamento junto às pessoas. É ele a brisa do título da música, é ele o devaneio que inspirou a letra. Analise a letra e terás a sacação! Para um artista, o motivo de certas obras fica incrustado na pedra fundamental de sua personalidade e com bastante inteligência ele usa esse motivo num teor de simplicidade honesta, sem se revelar aos outros se é isso ou aquilo! A arte o faz.”

(Trecho do livro Johnny Alf – Duas ou três coisas que você não sabe, João Carlos Rodrigues)

Eu e a brisa – Johnny Alf

 

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Como todo uma linha de arte considerada ‘gay’, a música de Alf é sobre a possibilidade do encontro, a ânsia de encontrar o amor num igual. Marcada pelas paixões que não se mostram, pelos amores platônicos, pelos amores discretos que não ousam dizer seu nome. Como em “Se eu te disser”, em que a voz reconhece o amor correspondido, mas calado diante do mundo:

 

Se eu te disser – Johnny Alf

 

Mas em sua carreira houve espaço para ousadias como a capa do álbum Nós (um de seus melhores discos, lançado já nos anos 1970), com a imagem de um belo garoto em segundo plano indo em sua direção.

 

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“P., acho que você é filho de Oxum, sabia? É que você não acredita, né?”, me escreveu uma vez. Lembrei disso num dia que liguei o rádio pra ouvir um programa em que o Ed Motta falava de um disco pouco lembrado de Johnny Alf, lançado em 1978, com o nome Desbunde Total. Me apaixonei pelo nome e pela primeira faixa:

 

Oxum – Johnny Alf

 

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BIXÓRDIA

Super-show comemorativo do 1º. aniversário do jornal Lampião da Esquina

AMOR, SUSPENSE, AÇÃO FANTASIA, BAGUNÇA, ANARQUIA, CABEÇA FRIA, TRABALHO E PÉ NO CHÃO: BIXÓRDIA.

 

Ao vivo, em cena, no mesmo dia e lugar, um elenco de sonho: Marlene, Carmen Costa, Cauby Peixoto, Zezé Motta, Leci Brandão, Wanderléa, Rogéria, Johny Alf, Elke Maravilha, Marisa Gata Mansa, Tony Ferreira, Aline, Ângela Leal, Luiz Armando Queiroz, Tamara Taxman, Flaviola, As Frenéticas Leiloca e Sandra Pêra, José Augusto Branco, Tânia Alves, Toninho Café, Manduka, Neuza Borges, Aristides Guimarães, Raimundo Sodré, Ivanir Calado, Maurício Loyola. Direção: Antônio Chrysóstomo.

 

Dia 7 de maio, a partir das 21 horas, no Café Teatro Rival (à Rua Álvaro Alvim, no coração da Cinelândia).

 

Bixórdia

Anúncio-convite da festa do jornal Lampião da Esquina, 1979.

 

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Quando a bossa nova estourou no Rio, Johnny já estava pelos palcos de São Paulo. O precursor da sonoridade saiu pouco do Brasil, não esteve nos grandes shows que promoveram o movimento. Estava à vontade em sua discrição. Recusou até carreira internacional a convite de Sarah Vaughan! Morreu, discretamente, em 2010 numa casa de repouso em Santo André.

Olhos negros – Johnny Alf  e Caetano Veloso

 

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E um dia elx me escreveu: “… E no entanto havia sempre naquelas noites uma possibilidade de amor. Você não acha?”

 

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Naquele dia, decidi que procuraria nos sebos qualquer disco do Johnny Alf pra me fazer companhia. Sem sucesso – busca inglória. Mesmo eu já tendo conseguido lembrar a letra de “Eu e a brisa”… Fui bater perna e aí foi quando ele me encontrou. No Conjunto Nacional, comecei a seguir a música, fui cantando mentalmente, querendo achar, querendo ouvir. Ninguém parecia se preocupar com o cara que tocava o clarinete, meio alheio ao movimento da vida à sua volta. Eu sabia! Havia procurado tanto por ele – e a música de Johnny estava bem ali me esperando. Era meu presente de aniversário:

 

Eu e a brisa na avenida Paulista

 

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Gravado por tantos  intérpretes, e tão diferentes, Johnny tinha algumas predileções. Adorava Alaíde Costa – cantora que talvez melhor o interpretou até hoje:

 

Quem sou eu? – Alaíde Costa

Em comparação com outros artistas, Alf até que registrou poucos álbuns. Entre seus discos essenciais destacam-se:

1961Rapaz de Bem

1964Diagonal

1965Eu e a brisa

1971Ele é Johnny Alf

1974Nós

1975MPB Especial (TV Cultura) (só lançado em 2001 pelo selo SESC na coleção “A música brasileira deste século por seus autores e intérpretes)

1978Desbunde Total

1990Olhos Negros

 

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É possível que Johnny Alf não estivesse numa lista das mais incríveis e grandes bichas do Brasil. É possível também que isso ocorra porque ele próprio preferiu a “discrição” – publicamente, falou pouco sobre sua condição, mesmo quando uma geração usava o sexo e a sexualidade como base e chamariz para fazer música. Precisamos entender, precisamos ouvir mais o Genialf.


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Ilustração de Bárbara Scarambone.

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