Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

perfil

, , , ,

Muito prazer, Madame Satã

Meia dúzia de coisas sobre um herói feito de linguagem. Por Pedro “Pepa” Silva

A vida é melhor quando a gente canta!
A vida é melhor quando a gente rebola, sacode e rodopia!

(Madame Satã/Lázaro Ramos, no filme de Karim Aïnouz, de 2002)

 

 

Negro. Pobre. Malandro. Nordestino. Homossexual. Analfabeto. Transformista. Quantos signos de exclusão podem iniciar uma aproximação à figura lendária de Madame Satã? Quantos deles não reduziriam o interesse por essa figura a uma só dimensão da vida?

 

Tento inutilmente colocar Satã sob o sol, mas ele está sempre à sombra. Há, no máximo, uma luz oblíqua, que ilumina apenas algumas partes de sua história. Os textos que se dedicam a contar sua vida, por mais diferentes que sejam, acabam por se encontrar nas mesmas esquinas da Lapa, nos mesmos ‘causos’, no mesmo tom de elevação do indivíduo. O que se sabe sobre ele pode ser facilmente recuperado, com uma ou outra incoerência, numa meia dúzia de textos: a entrevista que deu a Pasquimsuas memóriasum livrinho de Rogério Durst, um trecho do livro de James Greenuma crônica de Marisa Raja Gabaglia, um perfil ou entrevista frustrada de Aguinaldo Silva. Talvez por isso não seja fácil a tarefa que tomei: falar de um alguém que exerce o fascínio típico despertado pelos malditos e marginais. No caso de Madame Satã, o fascínio aumenta porque, como se verá a seguir, sua biografia apresenta muitas lacunas.

 

madame satã cecília silveira revista geni

 

Josephine Baker com Carmem Miranda

 

Antes de existir Madame Satã, havia, na verdade, o pisciano João Francisco dos Santos, que nos 76 anos que viveu do século 20, conheceu diferentes momentos da história brasileira. Nascido no interior de Pernambuco em 25 de fevereiro de 1900, João gostava de dizer que tinha vindo ao mundo junto com o novo século. A família, pobre e numerosa, vivia em Glória de Goitá. Um dia, João com sete pra oito anos, a mãe (viúva de pouco) decide trocá-lo por uma égua. Uma égua de nome Amorosa, e que pra dona Firmina devia ter mais força e serventia que uma das 17 crianças a que ela dera à luz. O resultado da negociação: o menino foi viver como ajudante de Seu Laureano. Na prática, naquele Brasil em que a escravidão demorava a acabar, o sentido de ajudante era o mesmo de escravo. Meses depois, João conheceu dona Felicidade (outro dos nomes irônicos desta história), e foi trabalhar pra ela também basicamente como um escravo. Não se sabe se a vida melhora ou piora quando, aos 13 anos, João foge e passa a viver de pequenos trabalhos no bairro cuja história se confundirá com sua trajetória pessoal: a Lapa.

 

Naquele tempo, o Rio de Janeiro já vivenciava os resultados da reforma urbana do prefeito Pereira Passos. O centro havia sido alargado por grandes avenidas, que expulsaram dali todos os pobres – alguns foram para os morros, outros para a Lapa, que foi se constituindo como um bairro de operários, malandros e prostitutas, de pensões e cafés, e que ganhou notoriedade com os cabarés e a boemia. Café Nice, Capela, Café Colosso, Salão Novo México, Cabaré Cu da Mãe, Taberna da Glória são alguns dos redutos do “bairro da cocaína” (como nomeou o esquecido escritor Benjamin Costallat). Da década de 1920 e até pelo menos a década de 1950, a Lapa será o lugar do bafão (ou melhor, do bas-fond), um espaço de entretenimento importante no Rio, sendo residência e ponto de encontro de compositores, artistas e intelectuais (a título de exemplo, lembremos os ilustres modernistas: o poeta Manuel Bandeira por lá viveu e Mario de Andrade frequentou muitos bares durante seu “exílio no Rio”, entre 1938 e 1941).

 

Dormindo pelas ruas e escadas, João Francisco logo se iniciou sexualmente em pequenos bacanais promovidos por prostitutas. Neles, atuava “como homem e como bicha”, dizia, mas acabou tomando gosto mesmo pela prática homossexual. Fazia pequenos trabalhos, especialmente como cozinheiro e garçom (mas dizem que também foi prostituto eventual). Lá pra 1923, nosso João está em formação pelas rodas de malandragem. Nesse ponto da história, ele passa a ser o valentão conhecido como Caranguejo, um malandro que pisa macio, com leveza, pra não se dar mal. Trabalha dando proteção a bares, cabarés, bichas, moleques e prostitutas – isto é, quando não está curtindo a noite com Chico Alves, Nelson Cavaquinho e outros cantores e compositores que frequentavam a Lapa.

 

Não é muito difícil supor o quanto esse ambiente contribuiu para um forte desejo desse malandro: ele queria ser artista. Em 1928, emprega-se em outra pensão e nela começa a fazer um número com imitação de Carmem Miranda. Logo conseguiu uma participação no show Loucos em Copacabana, na praça Tiradentes (o point gay do Rio naquele momento). Era o transformista que vinha surgindo na pele do Caranguejo anos antes de nascer o epíteto Madame Satã, diga-se! Devota de Josephine Baker, nascia a Mulata do Balacochê!

 

Mas sua carreira de transformista foi logo interrompida por uma prisão. Acusação: morte de um guarda civil. Vai para o presídio de Ilha Grande, para onde retornaria muitas outras vezes, tornando-se conhecido e conhecedor dos criminosos mais famosos da cidade.

 

Sai da cadeia dois anos depois, já nos anos 1930, a era do rádio, com Getúlio no poder, um primeiro impulso de modernização e a gestação de um imaginário sobre o Brasil. Em 1937, Clóvis Bornay cria no Teatro Municipal os carnavais de gala com concurso para premiar quem vestia a melhor fantasia. Na praça Tiradentes, as bichas já costumavam pular o Carnaval no famoso bloco Caçadores de Veados, criado em 1930 e que reunia travestis em fantasias luxuosas. Em 1938, esse pessoal resolveu promover no Teatro República um concurso de fantasia. E lá foi o nosso malandro-travesti vestido de morcego, numa roupa escandalosa e lantejoulizada. Ganhou o primeiro lugar e levou pra casa um tapete e um rádio Emerson. Semanas depois, foi preso junto com outras bichas no Passeio Público. O policial o reconheceu – ele o teria visto no Carnaval e lembrava que sua fantasia era parecida com a do personagem do filme de Cecil B. De Mille: “Ei, não era você que estava vestido de Madame Satã no Carnaval?”.

 

E Madame Satã nascia, batizado por um milico…

 

Da malandragem ao desbunde

 

O nome logo pegou e com ele a fama. Interessante é como o nome sintetizou toda a trajetória de João Francisco dos Santos: na conta de Madame Satã entrou toda a sua história na Lapa, seu passado de malandro Caranguejo e Mulata do Balacochê, seu trânsito entre o masculino e o feminino, tudo o que já existia antes desse “nome de guerra”. É como se toda sua história fosse ressignificada a partir desse nome.

 

Nos anos 1940, a política trabalhista de Vargas fixava no imaginário o malandro como sendo o oposto do trabalhador assalariado. Afinal não se diz que o malandro é o gato que come peixe sem ir à praia? Como entender então essa leveza e esperteza, a maciota, numa sociedade que disciplinava os corpos e as jornadas de trabalho? Há poucos detalhes desse período nos textos sobre Satã, mas sabe-se que ele tentou também se afastar um pouco da malandragem: abriu uma lavanderia, pegou uma menina abandonada para criar (a primeira de seis filhos adotivos criados ao longo de sua vida), passou um tempo em São Paulo e iniciou uma relação complicada com Maria Faissal, uma garota que conheceu na Lapa e com quem viveu entre idas e vindas muitos anos de sua vida.

 

Na aura mítica que rodeia Madame Satã parece ter sido pouco interessante investigar esses momentos mais prosaicos – prevalece a postura do “negro, homossexual, malandro, marginal que tenta resistir à ordem”. No entanto, em sua trajetória é possível visualizar alguns momentos que desfazem a ideia de Satã como a personificação da fúria constante pela noite escura da Lapa.

 

madame satã carangueijo cecilia silveira revista geni

 

Os anos 1950 trouxeram um progressivo esvaziamento da boemia criativa da Lapa. Os cabarés vão perdendo espaço e logo a modernidade se encarnará nas boates e nightclubs de Copacabana, o bairro em que nascerá a bossa nova. Em 1955 ocorre uma das brigas mais notórias de Madame Satã. Dizem que o compositor Geraldo Pereira (autor da “Falsa baiana”) adorava manifestar seu prazer em “bater em viado”. Numa passagem pelo bar e restaurante Capela, o tempo fechou quando Geraldo encrespou com Madame Satã. Como não levava desaforo pra casa, houve embate. Do confronto, cercado de folclore, teria resultado o internamento de Geraldo, e logo sua morte por hemorragia. Não se podia colocar a culpa na conta de Madame, mas ele passou a ser mais visado depois disso – tanto que alguns meses depois acabou preso acusado de aplicar o clássico golpe do suadouro (boa-noite cinderela da época). Lá foi Madame Satã para a Ilha Grande de novo, onde ficou até 1965.

 

Quando deixa o presídio, Satã já não tem mais o mesmo vigor da juventude de malandragem. Além disso, a Lapa já não é mais a mesma – para ela se começa a pensar um projeto de reurbanização, que chega a avançar pela década seguinte. Satã decide voltar à Ilha Grande e viver num pequeno sítio, dividindo-se entre cozinhar para fora, criar galinhas e dar uma ajudinha em pequenos trabalhos no presídio.

 

Quando o país enfrentava a dureza dos chamados “anos de chumbo”, o período mais severo do regime autoritário, no começo dos anos 1970, Satã ressurgirá, sendo definitivamente consagrado a partir da entrevista que concedeu ao jornal O Pasquim. Semanário de oposição à ditadura, com grandes tiragens e um tom e humor tipicamente machistas, em maio de 1971, o jornal tirou nosso Madame Satã do ostracismo. Mas não só: ele o ressignificou à luz (ou às trevas) daquele momento, elegendo-o como uma figura emblemática por não abaixar a cabeça pra polícia, por “se aceitar como é”. Satã vinha embrulhado como um herói para a contracultura brasileira (lembremos do slogan do Oiticica: “seja marginal, seja herói”). Para a boemia intelectual da zona sul carioca, Madame Satã representava tudo o que gostariam de ser: bem resolvidos em sua história de vida, fortes em sua luta contra a opressão, livres em sua sexualidade.

 

Não era ainda o momento do gay power, que surge mais pro fim da década de 1970 no Brasil, mas a condição sexual de Satã virou um elemento importante no imaginário que os meninos do Pasquim criaram a respeito dele. A condição racial parecia pesar menos na constituição desse herói, ao menos a leitura da entrevista sugere uma marginalização um pouco deslocada da sua condição de negro, justamente num momento em que a experiência dos negros pela zona sul carioca era bem distinta da dos brancos.

 

A vida de Satã entre galinhas e peixadas volta a mudar a partir dessa entrevista. Ele vira personagem da mídia. De repente aparece na TV, conhece Silvio Santos e Elke Maravilha. Sua imitação de Carmem Miranda vira show – não muito aclamado, porém – na boate Cafona’s. Em 1972, surgem as Memórias de Madame Satã, conforme contadas ao escritor Sylvan Paezzo. No ano seguinte, a história de Satã é logo associada ao filme Rainha Diaba, de Antônio Carlos Fontoura. Nele, Milton Gonçalves interpreta um travesti-traficante. O diretor, porém, nega qualquer influência dizendo que sua personagem fora inspirada numa figura de Santos, uma “boneca violenta que controlava uma parte do tráfico no cais”. Mesmo assim, a trama, toda filmada na Lapa, se fixou imediatamente ao imaginário sobre Madame Satã, a ponto de mesmo na imprensa da época haver essa associação entre pessoa e personagem.

 

O ano de 1974 marca a presença de Satã nos palcos. Agora, juntava-se ao grupo de teatro Chegança para montar a peça Lampião no Inferno, de Jairo Lima, dirigida por Luiz Mendonça no Teatro Miguel Lemos. Nela, Satã faz justamente o Satanás, que tem como filha uma diabinha bissexual chamada Trepadeira, interpretada por Tânia Alves. É ela quem recebe no inferno o Lampião, interpretado pelo ator Joel Barcellos. A peça foi um acontecimento no mundo do bas-fond da época e parece não ter despertado muita atenção da crítica. De todo modo, era a realização artística do nosso Satã – aos 74 anos.

 

Uma vida (ou a potência da linguagem)

 

Os últimos anos de Madame Satã foram momentos de consagração – desde a entrevista do começo da década de 1970 ele havia se tornado conhecido em outros cantos do país.

No período em que esteve metido às voltas com os espetáculos, Satã voltou a viver na Lapa, alugando quartos em pequenos hotéis. O bairro já estava bem distante da aura lendária que havia em torno dele. Aguinaldo Silva, que também havia morado por lá, foi dos últimos jornalistas a escrever sobre Madame Satã. Ele queria fazer um retrato mais pessoal da figura, que deixasse de lado um pouco da atmosfera heroica e focalizasse a pessoa de Satã, deslocando-a do personagem. Seu texto é um dos relatos mais interessantes sobre essa personalidade porque evidenciava exatamente a dimensão performática de Madame Satã, a capacidade de dar veracidade ao que tinha sido a Lapa mítica do passado.

 

Se a imagem de destacado malandro numa Lapa folclórica se fortalecia a cada aparição de Satã, sua fala e seus causos sacramentavam essa imagem. A linguagem era instrumento capaz de fazer dele o que bem entendia. Essa constante performance esconde uma pergunta: o que Madame Satã (ou João Francisco dos Santos) fez com o que fizeram dele?

 

O ano de 1976 marca a despedida de Madame Satã. Magro e adoentado, em fevereiro, ele dá entrada num hospital como indigente. Logo, Jaguar e o pessoal do Pasquim ficam sabendo de seu estado e providenciam sua transferência para o hospital do INPS de Ipanema. Diagnosticado com câncer de pulmão em estágio avançado, dessa vez ele não brigou. Faleceu em 12 de abril. O cortejo foi acompanhado por uma de suas filhas e seu corpo, sepultado no cemitério da Vila do Abraão, em Ilha Grande, a mesma que abrigou o presídio por onde Satã passou diversas vezes.

 

Sua morte, porém, não significou o fim de sua história, que continua a ser contada e recontada. E cada vez que alguém toma a palavra pra falar da história desse transformista, negro, malandro, ex-presidiário, que passeava com facilidade pelo masculino e pelo feminino – cada vez que alguém toma a palavra, surge um sorriso na luz oblíqua que corta a sombra. Eu queria Madame Satã na claridade. Só consegui um sorriso, que não sei ainda se é de vaidade ou ironia.

 

Leia outros textos de Pedro “Pepa” Silva e da seção Perfil.

Ilustração: Cecilia Silveira.

, , , ,