Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Ônibus cor-de-rosa perpetuando a vida cinza

Segregar mulheres no transporte público é uma solução para a violência sexual? Por Aline Sodré, Huana Assanuma e Lia Urbini

Convidamos Huana Assanuma, formada em arquitetura e urbanismo, e Aline Sodré, graduada em direito, para escreverem conosco um texto sobre a onda de projetos de lei – aprovados ou em andamento – que preveem espaços reservados para mulheres nos transportes públicos.

 

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Na cidade de São Paulo, o PL 138/11, proposto pelo vereador Alfredinho (PT), foi aprovado em primeira votação, sendo retirado após pressão dos movimentos sociais. Na esfera estadual, representantes do PMDB, PP e PDT também possuem projetos de lei análogos em tramitação. Em Curitiba, projeto do PSC espera aprovação em duas comissões e depois passa para o plenário. A cidade do Rio de Janeiro desde 2006 possui vagões de metrô exclusivos, e Brasília também aderiu à proposta desde julho deste ano. Em comum, tanto as propostas já implementadas como as em discussão se ancoram na justificativa de que a segregação é positiva e diminui os abusos sexuais cometidos contra as mulheres nos transportes públicos.

 

Mapeamos as principais discussões em meios eletrônicos relacionadas à medida. Grupos como o Juntos! e o coletivo de mulheres do PT da capital se posicionaram mais favoráveis ao projeto de lei do PT por entendê-lo como medida paliativa e realista de combate aos abusos, ainda que ressaltem a necessidade de fiscalização das medidas e de campanhas contra a cultura do machismo. Apostando no que entendem como “problemas do mundo real”, possuem posturas mais pragmáticas, justificando que as posições contrárias confiariam demais nas mudanças via transformações do campo da cultura e das ideias. Cibele Lima, em texto do Juntos!, lembra “do nível de consciência em que estamos: O congresso nacional discute dar ao estuprador direito de pai, e à mulher, uma bolsa-estupro”.

 

No coro da oposição, estão as Secretarias Municipal e Estadual de Mulheres do PT, integrantes da Marcha Mundial das Mulheres, as Blogueiras Feministas e Cely Couto, do blogue Café feminista.

 

Esses argumentos, distintos entre si, encontram-se no ponto em que a política, em vez de coibir a agressão, responsabiliza mais uma vez as mulheres pela própria segurança, numa espécie de medida de guetificação que reiteraria o que muitas feministas chamam de “cultura do estupro”. Além disso, traz um importante debate sobre a exclusão de transexuais e travestis, uma vez que a classificação do público-alvo dessa política pública se baseia na identificação visual dxs usuárixs. Entre as contrapropostas sugeridas por Cely Couto, estão “inserir a pauta feminista nos movimentos pelo transporte público de qualidade, promover a autodefesa e problematizar a violência cotidiana nos espaços auto-organizados das mulheres”, além de “levar a discussão aos espaços mistos”.

 

Gostaríamos aqui de entrar no debate a partir de uma reflexão mais geral, sobre as mediações possíveis em relação aos conflitos que envolvem gênero e espaços públicos. Ao discutir o assunto, algumas questões surgiram, e quisemos jogá-las na roda para trabalhá-las a partir das próprias práticas de movimento. Em que medida recorrer ao direito e às políticas públicas é efetivamente a via mais “realista” para intervir em determinadas situações? Que transformações no espaço, nos costumes, no direito e na própria política parecem também necessárias para a transformação das realidades que queremos transformar?

 

Já não vimos esse filme antes? Segregação e discriminação positiva, no direito e no cotidiano

 

Muitas das ideias que tivemos vieram a partir de uma imagem usada por núcleos do Movimento Passe Livre e outros coletivos que também estão se organizando para intervir nas questões do transporte público.

 

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Essa é a Rosa Parks. O ano era 1955, quando havia setores distintos para negros e brancos em ônibus estadunidenses, além da lógica preferencial para que brancos se sentassem. Rosa se recusou a ceder seu lugar para um homem branco e foi presa. A partir dali, a população negra iniciou um grande boicote aos ônibus, que durou mais de um ano, até que as políticas segregacionistas não puderam mais se sustentar. As pessoas andavam a pé, arranjavam caronas e os taxistas baixavam as tarifas para transportar quem aderia ao boicote. Havia campanhas de doações de sapatos e muitos preferiam ser pedestres a usar os serviços públicos de transporte sobre rodas. O que essa história nos diz sobre nosso tema de agora, a cota para mulheres nos transportes públicos?

 

O paralelo entre segregação racial e segregação de gênero tem obviamente seus limites, mas pode nos ajudar a pensar a partir de suas próprias diferenças. A ideia por trás dos espaços exclusivos para mulheres é a discriminação positiva, no sentido de favorecer, por meio de leis, grupos que possuem desigualdades competitivas em determinadas relações sociais. O que, dependendo do contexto, como no caso das cotas raciais em universidades públicas, tem todo um outro sentido, uma vez que o exame vestibular, diferentemente das catracas dos transportes públicos, envolve uma série de pressupostos que excluem muito mais gente do usufruto do direito.

 

Vejamos, a título de curiosidade, o exemplo do próprio vereador que propôs a lei da cota feminina e que apresentou também projeto de lei com reserva para setores de torcidas mistas em estádios de futebol. Será que, assim como as reservas para o transporte, que valem apenas em determinados horários considerados de pico – que teoricamente seriam os horários que compreenderiam mais abusos –, o espaço da torcida mista só seria reservado enquanto o placar dos jogos estivesse empatado? Ironias à parte, o que desejamos ressaltar aqui são as diferenças de apostas em relação aos limites do que se legisla. Por que e quando se apostar na segregação ou nos tratamentos diferenciais? Quem os propõe, quem os apoia e como se avalia a efetividade dessas políticas? Quem tem “direito à cidade”?

 

Para considerar as questões sobre segregação e transporte, temos que entender este último como meio de circulação – tanto de pessoas, para acessar lugares, como de dinheiro. Os boicotes aos ônibus nos EUA afetaram a circulação de ambos, logo, afetaram também o campo da produção. A pauta pelo direito ao transporte público e de qualidade é evidentemente necessária, mas como relacioná-la às pautas que se referem também a própria lógica de produção desses espaços que queremos acessar? Como inseri-las sem dispersar a luta? Pulamos as catracas (que podem ser de metrôs e ônibus mistos ou separados) para acessar que cidade? Quais são as consequências de termos um caminho realizado com a separação entre “homens” e “mulheres” para nossos destinos finais? Quem são/serão os fiscais do gênero e quais as consequências dessa categorização, já tão complicada com a divisão dos banheiros? O que produzimos no simples ato de nos colocarmos em circulação?

 

Podemos partir da pesquisa “Origem e Destino” (2007), sobre viagens na região metropolitana de São Paulo, para concretizar o diagnóstico da cidade e sua utilização hoje. A pesquisa mostra (sem surpreender) que a renda familiar e o nível de escolaridade são inversamente proporcionais ao número de viagens diárias realizadas por pessoa. No que diz respeito à mobilidade em relação ao gênero, as mulheres viajam menos, predominantemente em transporte coletivo para trabalhar e a pé para estudar. Homens viajam mais, predominantemente de automóveis e, um pouco menos, de coletivos.

 

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Percebemos então que a maior circulação de pessoas na cidade ocorre pelas relações de produção (trabalho) e é determinada por critérios econômicos e sociais de renda, educação e gênero, os quais estabelecem distinções entre os modos de transporte (coletivo ou individual) e os graus de mobilidade.

Se o espaço urbano se constitui como possibilidade de acesso aos “direitos sociais”, a circulação urbana que se funda estritamente nas relações produtivas do trabalho é um problema para sua realização. A cidade como produção do capital – e como reprodução das relações econômicas na política de Estado e nas formas de sociabilidade – se contrapõe à cidade como espaço de apropriação – dos espaços, tempos e objetos – possibilitada pela reunião dos sujeitos que decidem sobre ela. Essa apropriação subjetiva da cidade – que, para isso, deve se instaurar também na instância coletiva – pressupõe a superação de segregações sociais e econômicas, mas também pode ser um caminho contra as segregações raciais e de gênero pautadas na impossibilidade de convivência com respeito mútuo.

 

Será que a segregação por gênero não reafirma o dado e nos distancia ainda mais desse horizonte igualitário? Como poderíamos pensar ações estatais e políticas públicas que contemplem as subjetividades (negrxs, gays, lésbicas, trans)? Como fazê-las se reconhecerem no tempo e espaço da cidade e dos seus objetos? Como as políticas públicas poderiam não reproduzir o estado capitalista na sua forma gestionária, hierarquizada, branca, hétero e masculina?

 

Assim como a vida gregária é condição para o estabelecimento da política no senso comum (da visão mais conservadora à mais progressista), a circulação urbana – pelo que possibilita de encontros e confrontos de experiências – é condição para afirmação de uma dimensão pública (aqui também na concepção mais corriqueira). Tomando como exemplo a situação da mulher, a ocupação de postos de trabalho tradicionalmente masculinos não acaba com a desigualdade de gênero, mas proporciona independência financeira e novas experiências que se tornam condições necessárias para as lutas feministas. Nessa lógica, a separação por gênero nos transportes públicos representa uma fuga dos confrontos entre os mundos sensíveis (no caso, feminino, masculino e tudo o que pode estar entre esses dois polos) que constituem a experiência urbana enquanto experiência comum. Sendo assim, não nos parece que essa medida reduza os assédios. Talvez os relocalize em outros espaços, já que aceita como fato a imutabilidade das desigualdades de gênero ao colocar uma impossibilidade de homens e mulheres compartilharem espaços comuns.
Comentários abertos, vamos esquentar o debate.

 

Ilustrações: Aline Sodré.

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