Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Só se você for velha, rica e de uma região específica

Sobre os mitos e os desafios do matriarcado africano. Por cosmicyoruba

Quando li o título do post de Minna Salami, “Não houve matriarcado na África pré-colonial”, meu primeiro pensamento foi “ah, não, mas isso é uma generalização!”. Olhei cuidadosamente a postagem e, ao terminar sua leitura, achei que concordara com a maioria dos pontos de Salami. Especialmente quando ela diz que a discussão sobre matriarcados míticos, que existiam antes dos ocidentais malvados chegarem e destruírem tudo, “abranda o ódio ao patriarcado em que nos encontramos por séculos… freia a revolução… controla o ativismo feminista… reforça os estereótipos de gênero… [e] permite que o privilégio masculino se desresponsabilize, já que os homens ‘pelo menos’ estão cientes de como guerreiras maternais uma vez governaram em um tempo distante”.

 

O post de Salami me deu muito o que pensar. Enquanto eu ruminava o texto e os comentários, várias questões vieram à mente.

 

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O matriarcado é verdadeiramente bom para todas as mulheres?

 

O que o poder da mulher nas sociedades africanas pré-coloniais realmente significa para todas as mulheres? Sabemos que o patriarcado beneficia alguns homens mais do que outros e afeta homens de maneiras diferentes. Como Bell Hooks coloca de forma eloquente em seu ensaio Entendendo o patriarcado, este sistema é a pior doença social a agredir o corpo e o espírito masculino em nossa nação”. Seguindo esta linha de pensamento, talvez matriarcado não signifique coisas boas para todas as mulheres em uma determinada sociedade.

 

Que algumas culturas africanas, ainda hoje, tenham vestígios de práticas matrilineares sugere que essas sociedades podem ter sido matriarcais em algum momento da história. No entanto, enquanto algumas pessoas podem vibrar ao ler “matri…” qualquer coisa, essas práticas nem sempre são benéficas para as mulheres. Inicialmente, eu não teria considerado que as práticas matrilineares pudessem ser desfavoráveis para as mulheres, mas agora sei que isso acontece. Este artigo examina a herança matrilinear entre os Balues dos Camarões. Na sociedade Balue, a herança é transmitida pela linha feminina, mas as mulheres não são herdeiras. Quando um homem morre, o primeiro filho de sua irmã herda sua propriedade. Ali temos uma sociedade matrilinear que ignora completamente as mulheres em favor dos filhos que elas geram. É interessante que uma mulher Balue rotule a matrilinearidade como “a pior tradição que o povo Balue possui”, e que mulheres tenham formado grupos para desafiar essa tradição.

 

A presença de herança matrilinear, independentemente dos benefícios que essa tradição possa trazer às mulheres, sugere que os Balue já foram uma sociedade matriarcal. É possível que haja sociedades africanas que tenham evoluído do sistema matriarcal ao patriarcal; exemplos podem ser vistos na apropriação masculina do poder ritual, um tema já dissecado pelo cinema africano (ver aqui e aqui).

 

Existem inúmeras sociedades africanas que têm mitos sobre rainhas antigas. Conta-se que a rainha Ebulejonu fundou o reino de Igala, e todos os reis de Igala furam as orelhas em memória da rainha Ebulejonu. Rainhas antigas foram mencionadas no programa de televisão Os reinos perdidos da África: Bunyoro e Buganda, do doutor Gus Casely-Hayford, na BBC.

 

Outro exemplo está no povo BaChokwe, que diz que a governante Ruwej foi derrubada por seus próprios irmãos (outra versão diz que Ruwej se casou com um chefe Baluba, que assumiu suas funções políticas e impôs a descendência patrilinear). Para preservar suas formas matriarcais, a história oral BaChokwe diz que eles se separaram dos BaLunda e migraram para Angola. Entre os BaLunda, o nome Ruwej manteve-se como um dos títulos de oficiais do sexo feminino nos conselhos judiciais. Além disso, lembremos da tradição oral de Hausa, que diz que Bayajida se casou com a rainha de Daura e seus sete filhos fundaram as sete cidades-Estado de Hausa. É concebível que Daura fosse uma sociedade matriarcal antes de sua rainha ter se casado com Bayajida, e, com o casamento, o sistema tenha mudado do poder feminino ao poder masculino.

 

Eu não acredito que matriarcados nunca tenham existido na África ou em outros lugares. Ao mesmo tempo, estou ciente de que os sistemas de poder podem ser abusivos e nem sempre beneficiam os grupos de pessoas cujas vidas eles pretendem melhorar. Não se pode negar que houve inúmeras mulheres africanas, cujos nomes foram na maioria esquecidos, que detiveram em suas mãos um enorme poder. No entanto, não devemos acreditar que isso signifique que todas as mulheres africanas tiveram acesso aos mesmos níveis de poder.

 

Os requisitos

 

Agora, sobre o título deste texto: “Só se for velha, rica e de uma região específica”. As mulheres mais poderosas, em diversas comunidades africanas, eram geralmente as mais velhas na linhagem. Respeito e admiração por mulheres eram geralmente ligados a nascimento, maternidade e idade, como pode ser visto na tradição Yorubá Gueledé. Mesmo em sociedades ditas livres para todos, ainda havia caminhos reservados unicamente aos “homens completos”. As mulheres da sociedade Igbo pré-colonial, por exemplo, eram muito livres: tinham direito de possuir propriedade e repassá-la às suas filhas, o trabalho sexual não era crime, gênero e sexo eram fluidos, as mulheres tinham o direito ao divórcio… Mas elas eram proibidas de ver as festas de máscaras. Quer dizer, todas as mulheres, exceto a mais velha da comunidade, que poderia se tornar “a namorada” na festa de máscaras. Ao mesmo tempo, é necessário mencionar que as “mulheres completas” tinham seus próprios caminhos que os “homens completos” não poderiam sonhar em chegar perto. (Aqui eu uso “homens completos” e “mulheres completas” porque, em sociedades onde homens podiam tornar-se mulheres e mulheres podiam tornar-se homens, havia setores da sociedade que não se abriam axs transgêneros.)

 

As mulheres mais poderosas da história africana, cujos nomes são hoje populares, foram idosas, ricas e vieram de regiões específicas, o que permitiu que atingissem os níveis estabelecidos de poder. Acho levemente irritante quando as poucas mulheres históricas lembradas popularmente – Yaa Asantewa, de Gana, rainha Amina, da Nigéria, e rainha Nzingha, de Angola – são retratadas, na arte ou na ficção, como mulheres jovens. Isso não é apenas factualmente errado, mas dá uma falsa impressão de que qualquer mulher, jovem ou não, em qualquer parte da África, poderia ter subido ao poder e controlado exércitos. Yaa Asantewa, rainha Amina e rainha Nzingha vieram de famílias reais, e não eram jovens quando utilizaram seus poderes. Acredita-se que Yaa Asantewa já era avó quando reuniu seu povo para lutar contra a colonização britânica, enquanto a rainha Nzingha não era a única mulher poderosa em sua região no momento. Da mesma forma, a rainha Amina chegou ao trono (não imediatamente) após outra poderosa rainha, que pode ter sido sua mãe.

 

Isso não quer dizer que não houvesse mulheres jovens poderosas vindas de famílias pobres e/ou de sociedades que eram hostis ao “poder feminino”, apenas diz que os nomes dessas mulheres estão, em grande parte, esquecidos hoje. Da mesma forma, quando falamos de como no passado os homens africanos esposavam várias mulheres, esquecemo-nos de que nem todos os homens tinham a riqueza ou a capacidade para ter várias esposas. É errado supor que todos os homens, do rei ou chefe do clã até o ferreiro, o trabalhador ou o escravo, tivessem os meios necessários para se casar com mais de uma esposa.

 

É fascinante que aqueles que tentam me convencer de que as mulheres africanas não precisam do feminismo por causa da suposta abundância de matriarcados no passado africano só possam fornecer esses três nomes (Yaa Asantewa, rainha Amina e rainha Nzingha), quando há mais mulheres para se lembrar. Dahia al-Kahina, a sacerdotisa Amazigh que lutou contra a invasão árabe no norte da África no século 7, e Kimpa Vita, do Congo, são relativamente bem conhecidas. Outras, como Wanankhucha, da Somália, Nehanda Nyakasikana, do Zimbábue, Muhumusa, de Uganda, Nomtetha Nkwenkwe, da África do Sul, Alinesitoué Diatta, do Senegal, e Gudit Isat, da Etiópia, que desafiou o império Azumite cristão e fundou a dinastia Zagwe, não são tão celebradas fora de espaços específicos. Mesmo sabendo de várias mulheres poderosas na África pré-colonial, eu nunca concordaria que o feminismo seja algo para o qual as mulheres africanas não devam ligar.

 

Então, o que é exatamente o matriarcado?

 

Depende do que você classifica como matriarcado e de como você mede o poder da mulher. O que leva à minha terceira ponderação: como a vida sob um sistema patriarcal afetou o entendimento do que era o poder da mulher no passado? Max Dashu fala de culturas matrizes (“matriz” vem do latim para “útero”) que são “construídas sobre o ato das mulheres de carregar e sustentar a vida. Sua organização social, econômica e cultural segue parentesco através das mães (…) sem se preocupar com a determinação da paternidade ou aplicar a linhagem paterna através de um duplo padrão sexual”. Com base nisso, pode-se argumentar que a sociedade Igbo pré-colonial se qualifica como uma cultura matriz de direitos da mulher, embora, como sugeri antes, nem todas as mulheres tivessem acesso ao mesmo tipo de poder.

 

Dashu desafia a suposição de que a dominação masculina tenha governado a sociedade humana desde sempre e, em vez disso, postula que o patriarcado é simplesmente um desenvolvimento histórico. Já encontrei pessoas que, por causa dos antigos matriarcados, põem a culpa do surgimento do patriarcado nas mulheres. No entanto, Dashu afirma que as sociedades matrizes são geralmente igualitárias; elas não sobrepõem, por exemplo, divindades femininas às masculinas. Sociedades matrizes “não impõem um duplo padrão patriarcal em torno da sexualidade, da propriedade, do espaço público e político; não fazem das mulheres seres sem direitos sob o controle de pais, irmãos e maridos; sem proteção contra o abuso físico e sexual (…) que confina, isola, vela e ata corpos femininos, nem amputam ou deformam partes desses corpos. Houve culturas que concederam às mulheres papéis públicos de liderança e uma variedade de artes e profissões, bem como as liberdades de movimento e expressão e o direito de tomar decisões pessoais”.

 

Devo dizer que prefiro as culturas matrizes ao matriarcado, mesmo que não subscreva à crença de que o matriarcado é exatamente o oposto do patriarcado e é tão dominante quanto. O tema de um passado mítico matriarcal surgiu anteriormente, embora não em contextos africanos. A citação no parágrafo anterior é parte da resposta de Dashu ao livro feminista O mito da pré-história matriarcal: Por que um passado inventado não vai dar às mulheres um futuro, de Cynthia Eller.

 

Para terminar, é tão absurdo argumentar que as mulheres tenham sido sempre subordinadas à dominação masculina quanto argumentar que a existência de matriarcados destruiu todas as manifestações de subjugação das mulheres. Modelos que não eram completamente patriarcais ou matriarcais existiram no passado. E, naquelas sociedades que eram patriarcais, o grau de dominação não foi sempre igual. A realidade é sempre complexa, especialmente quando se olha para o enorme e diversificado continente africano.

 

Anike, ou cosmicyoruba, tem 24 anos e é uma mulher queer que vive
em Abuja, capital da Nigéria. Ela se interessa por história,
escritas, viagens e pela diáspora africana.

Tradução: Clara Lobo.

Ilustradora convidada: Mariana Zanetti.

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