Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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As pássaras

Um relato sobre a prática de teatro no encontro de mulheres da Ocupação Esperança, em Osasco (SP). Por Paloma Franca Amorim

Como sou professora de teatro e militante em coletivos de teatro de rua e de temática feminista, minha função no encontro de auto-organização das mulheres na Ocupação Esperança era, a princípio, conduzir exercícios práticos de teatro e ajudá-las a preparar uma pequena peça que falasse sobre os assuntos mais levantados nas discussões. Alguns deles são recorrentes em várias outras reuniões de mulheres que já tive a oportunidade de participar: violência doméstica, assédio, excesso de trabalho (na rua e dentro de casa), não divisão com os companheiros das tarefas relativas à família, entre outros não menos importantes e urgentes.

 

A Ocupação Esperança fica perto da rodovia Anhanguera, em Osasco (SP), e completou em novembro três meses de resistência. São cerca de 1.500 famílias que reivindicam a desapropriação de um terreno residencial por parte da prefeitura da cidade.

 

Ver as participantes do grupo de mulheres da ocupação realizando as dinâmicas teatrais propostas foi como ter de volta o sol a iluminar meus pensamentos. Foi isso. Ou algo parecido.

 

Voltar à infância

 

Uma das companheiras, na roda final de um dos encontros, comentou ter gostado da prática de teatro por ter podido brincar. Ela disse: “Já tinha bastante tempo que eu não lembrava o que era uma brincadeira”.

 

Imediatamente me ocorreu um pensamento de Simone de Beauvoir, essa belíssima bruxa francesa, a respeito da fase da infância e da adolescência. Simone menciona em um documentário que ela, como mulher adulta, precisava fazer jus à criança que havia sido, bem como à adolescente. Isso porque na fase da infância existe, em alguma medida, uma liberdade na produção do pensamento e nas aventuras do próprio corpo. Sem dúvida, a infância é o tempo da poesia, é o período da vida em que mais nos entregamos à disposição do presente.

 

(Na adolescência, a ousadia e o destemor nos tornam fiéis a nós mesmas, até a hora em que precisamos nos encaixar nas regras sociais, cruzar as pernas, depilar os sovacos e sorrir desmedidamente um sorriso verde para todo e qualquer assédio.)

 

A partir do comentário dessa companheira da Ocupação e da lembrança desse vídeo da Simone de Beauvoir, eu fiquei pensando que é muito especial mesmo nós termos acesso, pelas vias do simbólico, às atitudes que nos moviam nos tempos em que as amarras sociais não apertavam os pulsos com tanto pesar. Voltar à infância, nesse sentido, seria mergulhar profundamente em um processo de empoderamento. Acho que no final das contas o meu trabalho com arte deve servir a esse objetivo.

 

As mulheres da Ocupação Esperança me parecem meninas, no melhor sentido da palavra. Meninas pela força que manifestam em seus gestos, seus discursos, seus sotaques, seus cabelos, seus sorrisos, seus olhos que tantas injustiças e tristezas já testemunharam.

 

Re-voltar-se

 

Eu gosto mesmo de ser professora, e gosto mais agora, depois que as companheiras da ocupação entraram em minha vida. Minha utopia é um furacão, eu me sinto com seis anos de idade.

 

Essa semana me ocorreram duas canções que me remetem ao encontro com essas mulheres. A primeira é “Volver a los diecisiete [Voltar aos 17]”, de Violeta Parra, ativista chilena que produziu cultura de luta nas décadas de 1950 e 1960 pela América Latina. Essa canção fala sobre uma paixão entre pessoas de idades diferentes, do ponto de vista da mais velha. Na letra, encontramos a seguinte constatação:

Volver a los diecisiete después de vivir un siglo
Es como descifrar signos sin ser sabio competente

Sua tradução seria algo como: “Voltar aos dezessete (anos), depois de viver um século, é como decifrar signos sem ser sábio competente”.

 

Isto é, voltar ao estado da juventude é perder os domínios sobre a experiência, é compreender que há sempre uma possibilidade nova de contato com o mundo, uma possibilidade que se renova toda vez que nos sentimos arrebatados por algo que ainda não nos havia sido apresentado. Para uma criança, tudo é arrebatador, desde os primeiros raios solares sobre as células fotossensíveis dos olhos até uma galinha ciscando no chão de terra batida.

 

Fitar a infância como um espaço de liberdade não vem a ser uma proposta de reinocência do olhar. Como diz a música de Violeta Parra, trata-se de voltar à juventude, fazer um caminho na direção oposta da envelhecência. Esse processo só pode ser construído através da memória e da criação.

 

Em espanhol, volver é o regresso, é revolver a terra onde jazem nossas experiências. Em português: voltar, revoltar, re-voltar-se – e nisso não há nada de inocente.

 

A outra canção que andou me ocupando os ouvidos foi “Las manos de mi madre [As mãos de minha mãe]”, também conhecida como “Pájaros en el aire [Pássaros no ar]”, que descobri ser de autoria do compositor e cantor argentino Peteco Carabajal. Essa, em especial, tem me acompanhado durante o tempo que passo dentro do ônibus, do trem e, depois, do outro ônibus, para chegar à Ocupação Esperança.

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Ouço “Pájaros en el aire” na voz de Mercedes Sosa como se suas texturas sonoras fossem um aquecimento para minha percepção sobre os discursos e desejos que vou testemunhar quando puser os pés no barracão, próximo à cozinha coletiva, onde ocorrem os encontros. À medida que o tempo passa dentro dos transportes, eu posso mirar através das janelas, a pobreza se visibilizando às raias da São Paulo futurista dos grandes arranha-céus.

 

A primeira parte da canção diz o seguinte:

 

Las manos de mi madre
Son como pájaros en el aire
Historias de cocina
Entre sus alas heridas
De hambre.

Las manos de mi madre
Saben que ocurre
Por las mañanas
Cuando amasa la vida
Hornos de barro
Pan de esperanza.

Las manos de mi madre
Llegan al patio desde temprano
Todo se vuelve fiesta
Cuando ellas vuelan
Junto a otros pájaros
Junto a los pájaros
Que aman la vida
Y la construyen con el trabajo
Arde la leña, harina y barro
Lo cotidiano
Se vuelve mágico.

Em mais uma tentativa de tradução, o conteúdo da música diria aproximadamente o seguinte:

 

As mãos de minha mãe / são como pássaros no ar, / histórias de cozinha / entre suas asas feridas / de fome.

As mãos de minha mãe / sabem o que acontece / nas manhãs, / quando a vida amassa, / fornos de barro, / pão de esperança.

As mãos de minha mãe / chegam ao pátio desde cedo, / tudo se torna festa / quando elas voam / junto a outros pássaros, / junto aos pássaros / que amam a vida / e a constroem com o trabalho./

Arde a lenha, / farinha e barro, / o cotidiano / se torna mágico.

 

Ao mesmo tempo em que são as ferramentas do duro trabalho para a construção de uma verdade social justa, as mãos de minha mãe são também pássaros com asas feridas, pássaros que tudo sabem sobre as manhãs, que voam junto com outros pássaros para fazer festas nos horizontes visíveis.

 

O corpo de uma é o corpo de todas

 

A reinvenção dos elementos do cotidiano faz parte da prática criativa do teatro e diz respeito aos vínculos de grupo fortalecidos em cada encontro. Sem acordos entre as participantes do grupo não seria possível organizarmos estruturas de apresentação de cenas, de improvisos, de exercícios. No grupo de mulheres temos aquelas que apresentam cenas e aquelas que atuam como espectadoras, observando as ideias praticadas pelas companheiras.

 

Esses acordos, todavia, não foram gerados no momento em que o teatro se tornou um meio almejado para a organização do discurso feminista. Ocorreram em um processo anterior à construção das estruturas de confiança pelas mulheres da ocupação: foi no encontro político que a coletividade se sucedeu, foi nos atos práticos e simbólicos para reivindicar do poder público as moradias populares. Mas não podemos esquecer que, antes desse movimento concreto de organização pelos direitos à moradia, essas mulheres já possuíam muitos aspectos em comum: todas são muito pobres, a maioria delas é de fora do estado de São Paulo, a maioria delas é casada e vive dupla jornada de trabalho (nos empregos e nas próprias residências), a maioria delas já é mãe, a maioria delas já sofreu algum tipo de violência de gênero dentro ou fora de casa.

 

O salto político promovido pelo encontro de mulheres na Ocupação Esperança é o fato de que, desde os primeiros encontros de auto-organização das mulheres, as participantes do grupo podem compartilhar umas com as outras as próprias experiências sem passar por julgamentos baseados nas lógicas do dominador e do dominado, ou melhor, da dominada. Ali somos todas iguais em nossas diferenças, somos todas mulheres em luta umas pelas outras. O corpo de uma é o corpo de todas e por isso nos cuidamos, ao final do dia. Cuidamos de nosso cansaço do trabalho diário, cuidamos de nossos desânimos e de nossas alegrias.

 

Em roda, fazemos um pequeno ritual para começar o teatro. Passeamos do silêncio ao berro coletivamente, ouvindo as vozes umas das outras, nos alimentando dos sussurros que viram um grito em uníssono, como se fôssemos todas o pulmão e as cordas vocais de um só organismo. Nossos sons ressoam pelo acampamento, voláteis como os pássaros no ar, prontos para a guerra como as mãos de minha mãe.

 

Para saber mais sobre a Ocupação Esperança, clique aqui: http://www.youtube.com/watch?v=BNFuBsfc8eE

Para ver o documentário do qual falei, clique aqui:

Para ouvir as canções, clique aqui:

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