Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Da queda à cura

Porto, sim, o HIV, mas não vou permanecer entre paredes. Por Rinaldo Santos Teixeira


1. A queda

 

O Jairo, meu irmão, voltou, mas na parede da área, lá no quintal, ainda está escrito: “Lembram de quando eu era feliz? Minha vida recomeça aqui. Não nasci pra seguir regra”.

 

E o restante pouco se entende, são palavras desconexas.

 

Ele escreveu isso às cinco da manhã num dia de janeiro deste ano. Desde 2010, quando voltei de São Paulo pra casa dos meus pais, em Minas, é nas madrugadas que nosso tempo fecha. Levantei, preparei pra ir para o trabalho e vi o recado na parede quando ia colocar a água do cachorro. A mãe levantou às seis e ele, alterado, disse a ela que sairia para o mundo.

 

Eu e o Jairo havíamos discutido às três da manhã e mais uma vez me senti culpado.

 

Minha mãe, aos 73, pouco fala. Meu pai, aos 81, acha que o caso é perdido.

 

Tudo tomou esses ares três anos antes de eu voltar pra Minas, em 2007, no nosso quarto de duas camas de solteiro. Eu sentei do lado do meu irmão e contei meu segredo. Contei em setembro o que havia sabido em julho, porque me aconselharam que era bom não guardar só pra mim, que escolhesse alguém em quem eu confiasse muito:

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“Eu tenho aids”.

 

E o Jairo chorou de uma maneira que eu nunca vi ninguém chorar e quase se engasgava no próprio soluço. Eu o abraçava e pedia a ele que tivesse calma, enquanto repetia o que a assistente social havia ensinado: “Saber-se com aids hoje não é mais uma sentença de morte”. Ele retribuía o abraço, sufocado, e perguntava: “Como a gente faz agora?”. Mas como eu, quando soube, choramos juntos como se algo muito importante tivesse paralisado.

 

Vínhamos de uma fase de muita produção. Em 2005, após trabalhar com bons roteiristas e atores num projeto de tevê, realizei com o Jairo uma ideia dele: o curta documentário Daqui nóis não arreda o pé, que rodou o Brasil e foi veiculado no Canal Futura e em festivais na Alemanha, nos Estados Unidos e no México. Em 2006, o Jairo, aos 31 anos, tirou o diploma do ensino médio, e eu, aos 33, me formei em Letras na USP e venci um concurso do MEC com o livro Léo, o pardo, autobiografia romanceada que chega a todas as escolas públicas do país.

 

Embora eu saiba quem me infectou e da maldade e destruição embutidas naquele amor, tento outro rumo, por enquanto, e detenho-me nas consequências: demissão por preconceito, ser negado pelos colegas de trabalho, voltar pra Minas e descobrir que meu irmão está doente sem que eu pudesse fazer muita coisa.

 

Enfim, tornar-me prisioneiro da própria memória.

 

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2. Paranoia

 

São Paulo, 2008. O plano A – fazer filmes – chega ao auge numa entrevista de emprego com uma diretora de cinema. Ela me permite conhecer um dos projetos de sua produtora, que ensina a fazer filmes em comunidades pobres. No fim do curso, recebemos a visita de outro cineasta de quem admiro o trabalho. Apertamos as mãos – o que talvez representasse um estágio na produtora em que ele trabalhava. A paranoia começa. Espero a resposta por um mês. Um amigo me informa que o cineasta não estava mais na produtora que ofertaria o estágio, mas, conforme minha situação piora, continuo esperando a resposta, por mais um ano, dois, acompanhando seu trabalho, enquanto seguia pelo plano B.

 

Plano B: ser professor. Aulas de roteiro em uma organização social no bairro do Jardim Miriam, onde meus alunos ganham um prêmio no “Cine-favela” com o curta-metragem que realizamos, mas uma coordenadora engana a organização e apropria-se dos equipamentos do projeto. Vou para outro instituto de cunho social, que oferece aulas de arte e reforço escolar para crianças em situação de risco. Sou, então, professor de linguagens, substituto de uma professora em licença-maternidade. E aí a paranoia se instaura.

 

Desde janeiro de 2009, sigo acompanhando os alunos do instituto, tentando cativá-los com estratégias de imagem e som. Com o sucesso, sou seguido pelo colega da turma ao lado e também pela nossa coordenadora. Tento alfabetizar uma garota surda de 13 anos e introduzo na leitura dois alunos de 11 que ainda não liam, com imagens e escrita de estórias. No terceiro mês, solicito e me pedem pra levar a carteira de trabalho. Porém, julho chega, a professora em licença-maternidade volta e, ao perguntar pela regularização do trabalho, sou avisado de que fui escolhido como o terceiro professor fixo de linguagens dali, junto da professora que eu havia substituído e do responsável pela outra turma. Quanto à carteira assinada? Que eu esperasse.

 

Novos funcionários entram e têm suas carteiras assinadas de pronto.  Mas que eu não reclamasse. “Dois funcionários antigos foram demitidos de forma arbitrária, entre eles o professor de fotografia”, disseram. Faço o relatório do semestre e preparo, com a coordenadora e com os outros dois colegas, planos de aulas para as três turmas do próximo semestre – quais seriam as estratégias mais eficazes para cada idade e ano de escolaridade? Elaboro lista de livros a ser adquiridos – trabalhamos dia e noite.

 

Mais um mês e pergunto da carteira assinada. O instituto estava em reforma, sem alunos. Somente nós, os três professores, finalizávamos os planos de aula na sala do segundo andar. Fui chamado à sala dos professores, no térreo, pela coordenadora. Sua carteira será assinada a partir de agora. E os meses passados? Esqueça. “Um advogado, amigo meu, disse que é possível ser acertado o tempo retroativo.” “Assim você nos ofende, procurando um advogado”, ela me disse, “vou chamou a advogada responsável pelo financeiro.”

 

A professora minha colega desceu pra cozinha e viu, pelo lado de fora, eu tentando convencer a advogada e a coordenadora. Voltei pra sala de aula quase oito da noite e essa colega perguntou o que havia acontecido de tão sinistro lá em baixo entre a gente. Ela tinha me visto chorando. Eu não contei que na reunião havia dito que não poderia perder os meses passados, porque, como soropositivo, me eram importantes os direitos de saque ao FGTS, férias, INSS, mas ela viu como me pressionavam. Três dias depois, fui demitido.

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Apesar de ter feito o plano de aulas para o próximo semestre, apesar de a coordenadora ter gostado do método que levei – aulas com áudio e vídeo – e apesar do sucesso com os alunos não alfabetizados, alegaram que eu não era um bom professor. Minha carreira estava pautada para o cinema e a literatura, disseram. Na casa que dividia com amigos, recebia telefonemas para não entrar na Justiça: “Te damos uma carta de recomendação”, a advogada do financeiro dizia, e perguntava qual era meu advogado.

 

Entrei na Justiça. A professora que viu do lado de fora a discussão se desculpou muito, não poderia depor a meu favor, porque corria o risco de perder o trabalho. O outro professor depôs pelo instituto e, assim como a coordenadora, jurou dizer a verdade. Mas mentiram, dizendo que nunca souberam da minha condição de soropositivo. O professor, colega de área, titubeou quando a juíza lembrou o plano de aulas que fizemos juntos para o semestre seguinte. Disse que talvez isso tivesse ocorrido. Argumentaram ser uma ONG que ajuda crianças – ao que a juíza respondeu que, com CNPJ, eles representavam uma empresa de educação.

 

Do lado de fora do tribunal, despedi-me do advogado. Os três, a dona da instituição, o colega de trabalho e a coordenadora, vinham atrás de mim, comentando aos risos como a juíza, tão nova, era tão brava. Meses depois, no fim de 2009, reencontro o colega de trabalho próximo à Casa do Norte, um restaurante no bairro do Butantã. Ele sabia do curta-metragem que eu havia realizado junto do projeto da cineasta que aludi acima, em um segundo módulo, após o julgamento. “Então você ainda está vivo? E realizando filmes?”

 

Por três anos, o meu suporte foram as sessões com a psicóloga Andréa Ricciardi. Ela elogiava como eu vinha revigorando, em saúde física e autoestima, por causa dos trabalhos. Mas, ao perder um deles, por preconceito e sem conseguir provar isso, veio o oposto: desacreditei-me como profissional e fiquei na cama, sem conseguir pagar o aluguel, ou me autodestruí.

 

Da casa dos amigos no Butantã fui pra casa de uma tia em Suzano, de trem, com PC, bolsa e CPU debaixo do braço, e a tia não entendeu porque eu vivia na lua. De lá, ia para as seções com Andréa, no Butantã, toda semana. Tinha planos de tentar trabalhar com cinema, ligava pras pessoas e esperava que talvez os cineastas com os quais tivera contato me arrumassem uma vaga de estagiário. “Ninguém vai te ajudar”, Andréa disse. “Volta pra casa.”

 

“Você nunca deveria ter me contado”, foi o que ouvi do meu irmão Jairo, quando voltei pra Minas, em 2010, e o encontrei morando em um barraco precário, viciado em craque.

 

3. Levante

 

Agora, por ser enfadonho tentar narrar a realidade, uso palavras:

 

Para bendizer minha mãe, que, ao saber por mim que eu voltava pra casa portando algo que ninguém queria, respondeu que “na vida, pra se ter qualquer coisa, basta estar vivo” e, sem julgar, completou que “o que aconteceu contigo poderia ter acontecido comigo”;

 

Para pensar que, quanto ao craque – meu irmão se internou e recaiu, tentou sair para o mundo e voltou, brigamos várias vezes por solução e nos alicerçamos – a nosso ver, é falho imaginar a recuperação sob a ameaça do fracasso que é uma lista de doze passos. Prefiro a solução de José Celso Martinez Correa: “[…] o teatro, a arte. Porque a arte é mais excitante que o crime. Talvez essas sejam as pessoas mais próximas da arte, as mais desesperadas, que não encontram mesmo lugar nesse mundo. Trabalhar com arte no sentido radical é uma coisa que pira. Precisamos colocar essas pessoas em espaços onde elas possam criar, colocar pra fora suas angústias. O que motiva você? O maior motivo de tudo é sempre o tesão”;

 

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Para asseverar que porto, sim, o HIV, mas não vou permanecer entre paredes. Sou afrodescendente, e essa condição também pede que sejamos duros pela vida. Assim como podem me chamar gay, mas também me chamem lésbica, travesti ou bissexual, porque, nessa área prazerosa da vida, defendemos juntxs a liberdade em prol da vida. Que começou tolhida aos 11 anos pela orientadora pedagógica da escola: “Você precisa andar igual a um homem”  – ela tinha um casalzinho de filhos de ouro brincando entre os seios com sardas e usava uma sandália com enormes flores de plástico. No corredor de volta pra sala, o mundo inteiro reparava no meu andado. Então, saia da sua gaveta e vem brincar no nosso armário;

 

Para escrever agradecimentos às psicólogas Andréa Ricciardi; ao médico do trabalho Joaquim Leitão; à funcionária Greice da policlínica de Campo Belo (MG); e às médicas infectologistas que tratam bem qualquer paciente que recebam – nós te amamos, sem vocês seria difícil: Dra. Ângela e Dra. Camila do SAE-Butantã (elas não se encontram mais lá – é uma dificuldade encontrar médicos na área), e Dra. Rosângela F. G. Ferreira, do SAE-Divinópolis (MG);

 

Para pedir a quem lê que não abandone quem vive com HIV ou usa craque;

 

Para lembrar o meu cachorro Cipó, que, nas horas sem amigos com objetivos em comum, em Minas, correu comigo quilômetros sem fim de estradas de terra;

 

Para agradecer aos amigos e tia que me hospedaram em São Paulo nos tempos difíceis, sabendo ou não da minha condição; ao meu irmão Claudiney, que emprestou grana e deu abraços nos momentos mais “hards”, por acreditar no meu talento; aos amigos que me hospedam no Rio, BH ou Brasília, quando vou pra algum curso de audiovisual – meu motor; aos defensores da resistência negra e da questão de gênero: pesquisadores, artistas e professores; aos amigos artistas ou profissionais do audiovisual, que têm paciência pra ler textos meus, incentivar e puxar a orelha; ao meu pai, aos meus irmãos e sobrinhos, que me querem bem; aos educadores e alunos de Minas que conheci enquanto analista educacional em arte – por reconhecerem meu trabalho; e – como esquecer? – aos meus colegas de academia, que por muito tempo é um espaço onde ganho autoestima.

 

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4. A cura?

 

A arte. Porque “só existimos enquanto fazemos. Quando não fazemos, apenas duramos” – frase do padre Antônio Vieira, através, novamente, de José Celso Martinez Corrêa, de um recorte de revista.

 

 

Rinaldo Santos Teixeira, 41 anos, é roteirista, curta-metragista e arte-educador.

Ilustração: Nara Isoda

 

 

 

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