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Bertolt Brecht, Chico Buarque, Geni e o zepelim, Luiz Pimentel, MPB, número 0, Perfil, teatro, travestis
J/GEN/NY/IVAL
A personagem de Chico Buarque põe em cena os bastidores do Brasil. E nós seguimos junto, coro doido. Por Luiz Pimentel
GENI
Genival, seu criado. Agora deixa eu ir!
MAX (segurando seu braço)
Teresinha, esta aqui é a Geni. No dia em que a
Geni for encontrada num quarto de pensão, nua, em decúbito ventral,
um punhal nas costas, o crânio esfacelado, nesse dia a nossa sociedade
vai despertar menos reluzente e menos perfumada.
(A ópera do malandro, Chico Buarque)
I.
Nem veado nem machão. Geni diz que é plurissexual.
Elx está fazendo teatro agora, com licença.
II.
Para um começo de conversa com elx:
http://letras.mus.br/chico-buarque/77259/
Para conversa mais longa: estudo de Luciane de Paula e Marina Haber de Figueiredo da música “Geni e o zepelim”:
http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1277836219_ARQUIVO_lucianedepaula.pdf
III.
Antes de começar a peça delx, vai ter um prólogo! :
– PRÓLOGO –
DIÁLOGO DE wagner homem COM O EX-CENSOR carlos lucio menezes ENTRECORTADO POR UM CORO DA GENI:
PERGUNTADOR: Fala uma de que você não gosta. Você foi muito enfático quando falou “tem algumas que eu não gosto”. Então, essa você deve saber exemplificar…
EX-CENSOR: Geni.
CORO DA GENI: Ela é um poço de bondade/ E é por isso que a cidade/ Vive sempre a repetir…
PERGUNTADOR: Geni? De tudo que é nego torto?
EX-CENSOR: Inclusive, eu fiz o possível para liberá-la. O pessoal tava lá na dúvida eu disse: “Não! Vamos liberar essa música. Vamos liberar”. Foram tantos os pedidos,/ Tão sinceros,/ tão sentidos,/ Que ela dominou seu asco.
PERGUNTADOR: Mas onde que pegava a Geni? Era na palavra “bosta” ou no fato de ser uma narração de um homossexual?
EX-CENSOR: “Bosta na Geni”…
Mas de fato, logo ela,/ Tão coitada e tão singela?
EX-CENSOR: Porque eu achava uma palavra muito grosseira para o tipo do Chico. Ele fez tanta sujeira,/ Lambuzou-se a noite inteira/ Até ficar saciado. O Chico não era desse tipo. Não, esse camarada, nessa hora não estava bem, não estava tranquilo. Ele devia estar meio agitado, meio preocupado, meio zangado com alguma coisa para fazer isso. Inclusive, têm muitas senhoras Geni Você dá pra qualquer um!/ Bendita Geni! pelo mundo que podem se sentir magoadas com isso. E não deu outra.
PERGUNTADOR: Deve ter causado um belo rebuliço.
CORO DA GENI: A cidade em romaria/ Foi beijar a sua mão:/ O prefeito de joelhos,/ O bispo de olhos vermelhos/ E o banqueiro com um milhão.
EX-CENSOR: “Vamos liberar com essa palavra BOSTA, mas vamos mesmo GENI. BOSTA! É uma palavra assim inconveniente, BOSTA! GENI não é palavrão, BOSTA! GENI não é pornografia, BOSTA! não é nada. BOSTA! É uma palavra apenas deslocada GENI de um texto artístico BOSTA do nível BOSTA de Chico Buarque GENI. Mas já que ele GENI colocou BOSTA, vamos liberar BOSTA GENI. Eu achava BOSTA que haveria BOSTA uma reação do povo GENI contra a censura BOSTA.” E, GENI de fato, houve BOSTA. A censura BOSTA foi muito criticada por GENI ter liberado essa BOSTA música GENI.
PERGUNTADOR: A censura recebia muitas cartas de gente pedindo para censurar isso ou aquilo? E é por isso que a cidade/ Vive sempre a repetir:
EX-CENSOR: Muitas, PEDRA muitas. BOSTA Cartas, telefonemas, pedidos. FEITA PRA APANHAR Mas isso aí não chegava nem aos censores. A própria chefia procurava desviar, BOA DE CUSPIR para não criar um clima de apreensão DÁ PRA QUALQUER UM com o volume de cartas e reclamações. MALDITA!
– FIM DO PRÓLOGO –
IV.
Geni é uma personagem do musical A ópera do malandro, de Chico Buarque cujo texto é uma releitura da Ópera dos mendigos (John Gay, 1728) e da Ópera dos três vinténs (Bertolt Brecht e Kurt Weill, 1928). Ambientada na Lapa carioca dos anos 40, na última fase do Estado Novo, A ópera do malandro apresenta as disputas entre o empresário de bordéis Fernando Duran e o malandro contrabandista Max Overseas, nos primórdios da entrada massiva de multinacionais no país. Marcada por diálogos ágeis e um deboche constante de tipos sociais (cafetão, agiota, contrabandista, policial, empresário), nessa ópera “não há heróis, todos os personagens vivem em torno do capital. Na luta pela sobrevivência que não permite veleidades éticas eles estão em dois níveis: o dos que lutam para sobreviver e o dos que lutam para acumular” (disse Chico Buarque).
Assim como Brecht virou vinténs em ópera, também o dinheiro é o grande protagonista de A ópera do malandro, promovendo drásticas modificações no “ofício” da tradicional malandragem carioca. E lá, dentro dessas exaustivas transformações das estruturas econômicas, políticas e culturais do país, encontramos Geni nos bastidores, em sua espera para entrar em cena, chateadx com esse desvelamento de um protagonismo na ópera que não seu.
A primeira montagem de A ópera do malandro estreou em junho de 1978, no Teatro Ginástico, sob a direção geral de Luís Antônio Martinez Corrêa e musical de John Neschling. Na época da feitura do texto da peça, foram estudadas, para a composição da personagem Geni, as memórias de Madame Satã, que morreu dois anos antes da estreia carioca, sendo citada na nota lançada por Chico Buarque por ocasião da estreia.
No número 37 da revista Lampião da Esquina, na ótima reportagem “O teatro é uma arte guei?”, Antônio Carlos Moreira diagnostica o interesse progressivo pelo tema da homossexualidade nos teatros do eixo Rio-São Paulo a partir da década de 70. O repórter supõe que tal investida temática pode ter acontecido pelo abrandamento da Censura Federal em relação a alguns temas e, muito mais provável, pela percepção dos empresários teatrais do “novo” filão homossexual e da rentabilidade gerada por produções que atendessem a essa demanda de público.
V.
―Senhorxs, se ninguém quer cantar nada, eu mesmx apresentarei um numerozinho, isto é, vou imitar umx meninx que vi uma vez nesses botecos-de-quatro-vinténs, lá no Soho. Ou será que foi na Lapa, repassando bagulhos importados pras dondocas de Copacabana? De qualquer forma, cantarei, pra animar um pouco essa gente chata. É que me deu vontade de cantar.
Geni já está em cena. Mas elx perturbou tanto o cafetão, a cafetina e o inspetor de polícia com seu jogo cômico de revelar informações por dinheiro, que a plateia acaba gostando muito mais delx do que da Marieta Severo, atriz que faz a protagonista Teresinha. Todxs entoam, no ápice do espetáculo, a pedido dx próprix Geni: “Joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela é feita pra apanhar. Ela é boa de cuspir. Ela dá pra qualquer um. Maldita Geni!”.
“Geni e o zepelim” é cantada pelx próprix Geni durante a peça. Quando escutada a música, sem a assistência da peça, a voz de Geni pode ser associada à de uma mulher que se prostitui e escandaliza alguma pequena cidade conservadora.
Na peça de teatro, Geni é Genival. Sempre um ator a interpreta. Na estreia, em 1978, apresentam-se:
(…)
Lúcia………………………………………………………..Elba Ramalho
Geni.……………………………………………………Emiliano Queirós
Barrabás……………………………………………………Ivens Godinho
(…)
A carreira do ator Emiliano Queirós foi fortemente marcada por sua atuação na estreia da Ópera como Geni. Conta o ator numa entrevista que, a princípio, a intervenção musical de Geni na peça era extremamente breve. Foi quando Chico Buarque assistiu à sua performance que decidiu aumentar a composição e, em poucos dias, retornou aos ensaios com “Geni e o zepelim”. O caráter narrativo da música e sua tensão dramática são nitidamente inspirados na canção “Pirata Jenny”, presente no texto de Brecht e Weill.
VI.
PELO CÉU PELO MAR
― De onde virá a chance pra explodir essa espelunca?
ECOS DE UMA PRIMA NOVA-IORQUINA
OU
GENIS TAMBÉM SÃO TRAIÇOEIRXS
GENI
(lê a mão esquerda) Estou vendo uma coisa! Ah, uma mulher muito importante na tua vida…
MAX
Genival, todas as mulheres da minha vida são muito importantes. (beija a boca de Fichinha e acaricia as coxas de Shirley)
GENI
Esta mulher é mais importante que todas as outras… Porque vai te trair.
MAX
(interrompe o beijo e as carícias) E diz o nome dela aí?
GENI
Só uma letra. A inicial.
MAX
Vamos ver… é tê?
GENI
Não, é gê.
Geni é traiçoeirx. Nela ainda ressoa o eco da voz épica da Jenny dos piratas, da Ópera dos três vinténs. Ao contrário de Geni, Jenny, sua prima nova-iorquina, não foi nada piedosa quando perguntada sobre o destino da cidade em que vivia.
Na ópera de Brecht, Jenny é uma copeira num boteco barato do Soho. Por noites a fio os bêbados a expõem ao ridículo e riem de sua condição miserável. Como forma de defesa ela começa a contar sempre uma mesma história, mesmo que sua voz soe imperceptível. Uma narrativa de vingança. Assustadora. Súbita tradução do pensamento de uma criatura muda e tratada como invisível:
Quando todos menos esperarem, um navio aportará em Nova York. Piratas desembarcarão e saquearão a cidade, amarrando todos os homens, mulheres e crianças na praça principal. Na frente do boteco, Jenny sorrirá, e ninguém poderá compreender sua mórbida satisfação. Ela é a escolhida. Conduzida como uma rainha à praça pelos piratas ela deverá decidir os cidadão que irão morrer. Sua voz finalmente poderá ser ouvida: todos.
Epílogo
Vida longa a Geni! A todxs nós.
Se Geni não acontecesse agora, o despertar era menos reluzente e tudo era menos perfumado.
Jogue pedra, jogue bosta. Nós também estamos fazendo teatro! Tirando palavra de pedra pra que as coisas possam ter um pouco mais de graça, mesmo dentro dessas formas chatinhas que fomos inventando para nós mesmos ao longo dos últimos 4 mil anos… Máscaras prontas, sangue nos olhos: meio víbora, meio santa, maldita, bendita e meio o que ainda vai ser inventado nas edições que vêm por aí. Geni, presente! Vai na frente, de corifeia. Nós seguimos junto, coro doido.
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