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O espaço conquistado
Conversamos com Gerô Barbosa, referência em mídias alternativas e rádios comunitárias no Brasil e maior audiência de Heliópolis, em São Paulo. Por Lia Urbini e Luiz Pimentel
A equipe da Geni foi participar de uma tarde do babado. Descemos na estrada das Lágrimas (uma das vias principais de Heliópolis) e fomos adentrando pelas vielas até encontrarmos a antena transmissora de 30 metros da rádio comunitária e, na porta do prédio, chegando ao mesmo tempo que a gente, Gerô. Tendo nos acolhido com muita simpatia, Gerô nos avisou que sua agenda do dia estava cheia: depois da transmissão do seu programa, teria de ir a uma reunião importante na Unas (União de Núcleos, Associações e Sociedade de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco) e então aparecer em pelo menos dois churrascos e um forró aos quais tinha sido convidadx.
Rainha de Heliópolis! É assim que Gerô Barbosa diz ser chamadx em seu pedaço, e ele é imenso: composta de 14 glebas em quase 1 milhão de metros quadrados, a Cidade Nova Heliópolis é uma das maiores favelas do Brasil. E Gerô é figura de muita ação dentro dessa área.
Radialista formadx em jornalismo e pedagogia, ex-coordenadorx geral da Rádio Comunitária Heliópolis, ex-diretorx de comunicação e atual coordenadorx dos projetos de comunicação, moradia e educação da Unas, Gerô também é referência no debate sobre mídias alternativas e rádios comunitárias em todo o Brasil.
Como se não bastasse, elx foi responsável pela criação do programa de maior audiência da rádio, o Tarde do babado, dedicado ao público LGBT – mas, como elx bem lembra, muito mais ouvido pelo público hétero.
Nosso encontro com elx nos surpreendeu. Fomos com muitas perguntas, mas escutamos mais do que falamos. Gerô emenda uma história na outra, faz digressões e, como se não bastasse, de tempo em tempo entra no ar ao som de seu tema musical composto por Big Dantas: “Dança, Gerô. Desce, Gerô. Ai, ai, ai, ai, que calor!”. Suas entradas são bem-humoradas: elx manda beijos, comenta a vida de seus conhecidos da comunidade e também elenca os principais acontecimentos políticos que Heliópolis viveu ao longo da semana.
Para quem quiser escutar Tarde do babado, a transmissão acontece aos sábados e domingos, das 13 às 15 horas, no site da rádio. Para ler a entrevista com Gerô, é só dançar e descer com a Geni.
Como começou a rádio comunitária de Heliópolis?
Foi lá em 1992. Quando a gente começou, pioneiros que fomos, não havia uma lei que regulamentasse as rádios comunitárias. Não havia um canal específico para elas, nem uma descrição para o que viesse a ser uma rádio comunitária. Então a gente, com aquela coragem, criou a nossa. Depois começamos a conhecer pessoas e criamos parcerias para lutar por uma lei que regulamentasse essas rádios.
O Ministério da Cultura [MinC] criou em 1998 a lei número 9.612, que especifica o que deve ser feito em uma rádio comunitária, e era o que a gente já fazia: dar voz à comunidade e veicular uma programação destinada à comunidade. Mas com essa lei também vieram as limitações. A rádio só pode ter uma potência de transmissão de 25 watts, a antena não pode passar de 30 metros, só pode atingir o raio de um quilômetro quadrado e não podem ser veiculados comerciais. Limitações que, na prática, fazem com que as rádios não possam existir.
Como vocês financiam a rádio?
O MinC não contribui financeiramente com as rádios comunitárias, como faz com as outras mídias do país. Estou falando das mídias grandes, a televisão, as rádios oficiais… E a rádio comunitária é a verdadeira rádio pública, não é? Que faz um trabalho excelente com as pessoas da comunidade, trabalhos de prevenção etc.
O que acontece é que, em vez de o MinC vir para contribuir, ele vem para punir. Se eu não posso veicular comercial, como vai sobreviver a rádio? Entende? E aí fica meio difícil continuar. As pessoas visam só lucro, lucro, lucro. A gente paga pra fazer o programa! Quando tem as reuniões de equipe, quem banca o lanche somos nós. Quebra o microfone e a gente faz um rateio pra pagar um novo. Poderia ser diferente. Eu não faço parte das 11 famílias que detêm a comunicação no nosso país, nem das 85 famílias que detêm 10% de toda a fortuna do Brasil. Hoje a rádio sobrevive através da Associação [Unas], porque ela é comunitária, mas está dentro de uma associação de moradores. Essa associação tem cerca de 40 projetos, e este é um dos projetos de comunicação, aí sobrevive. Mas não existem recursos próprios da rádio.
Mesmo assim, a mídia alternativa está cada vez mais forte, não?
Eu estive no sertão do Cariri, lá no Ceará, essa semana. Três dias a gente discutindo mídias alternativas. Vários blogues alternativos. Uma discussão que foi formada agora porque muita gente não está se sentindo informada sobre essas manifestações. Do dia 28 de agosto a 2 de setembro vai ter outro encontro, lá no Rio Grande do Norte, para discutir rádios comunitárias.
Houve uma época da minha vida que eu vivia viajando, todo fim de semana num estado diferente, na época da implementação das rádios comunitárias, quando não havia sido criada a lei número 9.612. Na época eu viajava lutando pela legislação das diversas rádios comunitárias, era sempre convidado pra falar nas prefeituras das cidades. Esta rádio nasceu em 1992, então somos pioneiros não em São Paulo, mas no Brasil. Do Oiapoque ao Chuí, a referência de rádio comunitária é a Rádio Heliópolis.
Como foi a história do fechamento da rádio em 2006?
A Rádio Heliópolis, que ainda não era legalizada em 2006, foi perseguida pela Anatel [Agência Nacional de Telecomunicações]. Era uma questão de honra para a Anatel fechar “essa tal Rádio Heliópolis”, que era peituda, era a única que peitava. Eles quebravam e fechavam todas as outras rádios, mas a nossa eles não podiam fechar porque muita gente a conhecia e lutava por ela. Mesmo assim, em 2006 eles conseguiram. Levaram todos os equipamentos. Imediatamente a gente começou a fazer ligações e, no dia seguinte, veio uma ligação de Brasília, do superintendente da Anatel, falando que a gente podia voltar a funcionar desde que fizéssemos uma parceria com uma universidade e seguíssemos as normas comunitárias. A gente poderia experimentar um canal de transmissão para depois devolver pro governo.
O que nós fizemos? Fomos trabalhar pro governo, experimentamos os canais destinados para as rádios comunitárias, o 198 e o 199. O canal 198 tem a frequência 87.5, a que a gente está agora. O 199 era a 87.7, que a gente também experimentou na época. Ficamos um ano no ar. Escolhemos três universidades pra conversar. Uma delas foi a USP [Universidade de São Paulo], porque já existia uma proximidade. Outra foi a São Marcos, que já tinha aberto pra comunidade mil bolsas gratuitas em cursos universitários. E a última era a Metodista, porque a gente tinha descoberto que, de dez jornalistas empregados em São Paulo, oito saíam da Metodista. Era com ela que fazíamos o jornal da comunidade, então firmamos a parceria.
Depois disso veio um papel do MinC pra fazer funcionar a rádio como experimental no canal 199, frequência 87.7. Depois de um ano de reuniões e discussões sobre a programação, em 2007 entramos no ar. Quando foi em 2008, tivemos a visita do presidente da República, do ministro da Cultura, o Gilberto Gil, e do ministro do Trabalho. Eles vieram lançar alguns projetos reivindicados e trouxeram a outorga pra gente, agora no canal 198, frequência 87.5. O canal anterior já havia sido experimentado, sem risco de transferência. O medo era causar interferência no canal do SBT porque estão muito perto um do outro.
Vocês ainda recebem ofensivas e ameaças de fechamento?
Em 2010, a Anatel baixou de novo notificando que a gente estava fazendo comercial. A gente chamava de apoio cultural, mas eles diziam que era comercial. Disseram que, se continuasse, eles multariam. Deram a multa. A gente recorreu e ganhou. Mas ficou muito claro que não podia haver comercial.
Além dessa característica da proibição dos comerciais, existe a questão de a rádio ser feita para a comunidade e pela comunidade. E aqui funcionamos, hoje, em quatro coordenadores: um de programação, um técnico, um geral e eu, que faço as reuniões de formação e dou suporte para a rádio. Mas os programas são feitos pelo povo da comunidade, então não é preciso formação de jornalista, de locutor.
Como você se tornou diretor de comunicação da Unas e coordenador da Rádio Heliópolis?
Eu cheguei de Minas em Heliópolis no ano de 1986, com minha família. Havia pouquíssimas casas, a maioria barraco, e alguns grileiros. Esses grileiros vendiam e alugavam a terra, e diziam: “Veado na minha favela não vai ficar”. Eles espancavam e chegavam a matar algumas bichas. Inclusive, nessa época – olha que coisa bárbara! – faziam à mão uns papéis que tinham os nomes daqueles que tinham que sair da comunidade, senão iam morrer. E o meu nome era sempre o primeiro da lista. Meu nome é Geronino, mas a minha família me chamava de Nino. E eles escreviam: “Nina, sai da comunidade, veado, senão você vai morrer!”. Me perseguiam, até quebrei a perna uma vez, com uma perua azul correndo atrás de mim pra me matar.
E como aconteceu o processo de transformação dessa lógica?
Os homossexuais daqui eram casados: as lésbicas, com homens, e os gays, com mulheres. Mas a gente que é homossexual olha e reconhece quem é também. A gente se reconhecia, tinha abertura pra conversar, mas tinha esse empecilho da violência.
Na época eu era muito bonitinho, másculo, com cabelo curto, vestido de homem, e muitas mulheres queriam namorar comigo. Eu dizia: “Não, meu amor, mulher com mulher não pode!” [risos]. Então eu comecei a cozinhar em casa, e sei cozinhar muito bem, graças a Deus! Fazia caldinho de feijão e chamava os homossexuais pra ir pra lá, com caipirinhas feitas pela Nina. Chegava muita gente. Minha casa era pequena, oito pessoas da minha família divididas em dois cômodos. Como eu sempre quis minha privacidade, construí um quartinho em cima, pra mim. Aí esse povo ia pro quartinho e a gente conversava sobre direitos. Direitos que eu já sabia da minha cabeça: “Como? Que Deus vingativo é esse que condena o ser humano?”. Os evangélicos falavam que toda bicha ia pro inferno, que Deus não gostava. A gente abria discussões: “Será que Deus é ruim como todo mundo fala?”. Aí, pronto! A Unas começou a saber desses encontros.
Em 1991 eu voltei a estudar. Comecei da quinta série e, chegando na escola, a gente via que quem mandava eram os alunos daqui de Heliópolis. Fui falar com a diretora e disse que tudo aquilo acontecia porque ali não se conversava, que todo mundo mandava e ninguém estava ali pra ser mandado, e que a gente tinha que conversar pra chegar em alguns acordos. Ela ficou brava: “Quem é você pra ensinar o que vou fazer? A diretora da escola sou eu!”. Eu disse que sabia que ela era a diretora e que eu só estava querendo ajudar. No dia seguinte um menino brigou com uma professora por uma nota baixa, pegou a arma e atirou no meio da sala. No outro dia a diretora veio, disse que tinha pensado e queria me escutar. Eu disse que a escola tinha um anfiteatro que era usado pra entulho e duas quadras que só serviam pra educação física. Propus que abrissem para a comunidade e, pronto, fizeram isso. Além disso, todo sábado passamos a fazer um baile para arrecadar fundos para a formatura. Daí eu virei referência na escola. E a fundadora da Unas estudava lá, na quarta série. Ela se aproximou de mim e me convidou pra União. Em 1996 começou uma discussão pra transformar a Rádio Heliópolis, que era uma rádio corneta, em rádio FM. Daí eu vim.
Como começou o seu programa?
Eu comecei a fazer um programa chamado Tarde do babado, que é o mesmo que eu faço hoje. Fazíamos eu e um outro homossexual. Meu nome era Titi, por conta do filme Para Wong Foo, obrigada por tudo!. No filme havia duas drag queens lindas, que eram o Wesley Snipes e o Patrick Swayze, e também uma bichinha que chamava Titi, a doidinha. Era eu [risos]. O nome da outra bicha que fazia o programa comigo era Nana Brasil, e o meu ficou Senhorita Titi.
Pá! Botamos esse programa no ar quando a rádio virou FM. O programa era de sábado e domingo das 16 horas às 18 horas. A gente trazia para o programa gente da Secretaria de Educação, gente que discutia diversidade, gente que podia colaborar com o debate. E o programa era muito divertido, a gente tocava “María”, do Rick Martin, e dizia: “Dona Maria, puxa o sofá da sua casa e bota todo mundo pra dançar agora! Vamos lá! Quebra tudo!”. A gente da rádio ficava sentado, mas o pessoal perguntava se a gente estava dançando e eu respondia: “É claro!” [risos]. O pessoal queria vir aqui ver a gente dançando, e eu dizia: “Não! Não pode! Dança daí que eu danço daqui!” [risos]. Pronto. Esse programa era uma festa e passou a ser o número um em audiência. Com dois meses de programa eu fui convidado para coordenar a rádio, com a condição de que fizesse todos os programas terem o mesmo sucesso que o meu. Na época, os outros programas funcionavam assim: blá-blá-blá, música, blá-blá-blá, música… Faltavam informações, notícias da comunidade para a comunidade. Então eu aceitei coordenar a rádio, mas disse que precisava ganhar pra isso, porque eu teria que abandonar o meu trabalho.
A outra condição da minha vinda pra cá foi que a rádio fosse povoada. Na época, só duas pessoas ficavam aqui durante a semana, uma pra abrir e outra pra fechar. Mudei isso, a cada duas horas entraria uma pessoa. Chamei o cara que tomava conta do time de futebol, uma enfermeira do posto de saúde, fui chamando gente. E a rádio pegou.
E o seu programa continua fazendo sucesso, certo?
A única raiva que eu tenho desse programa é que ele é mais ouvido por héteros do que por gays. Eu faço um programa direcionado para um público, mas quem escuta é outro público! [Risos] Ai, gente, é um inferno! O telefone começa a tocar durante a gravação e é o povo me convidando pra ir pra churrasco, pro almoço… Às vezes umas amigas ligam e eu digo: “Gente, mas não é pra você esse programa! Mas pode escutar aí, vai” [risos]. Inclusive eu comecei a fazer um programa com música eletrônica, só que não pegou. Hoje eu toco todo tipo de música, porque o público varia. Por exemplo, as bibas daqui, as meninas, vão no forró. A gente encontra todo mundo lá. No rock, no samba, a gente sempre se encontra. Então é tudo muito junto e misturado.
Você trabalhava no que, antes de se dedicar à rádio?
Ajudante geral de caminhão. Eu pegava aqueles fardos pesados pra subir no caminhão. Pedi as contas e vim trabalhar aqui. No começo eu ganhava R$ 300, sem registro.
Em 2002, recebi um convite da própria Unas para coordenar um projeto de educação em que eu ganharia o triplo do meu salário. Eu recusei dizendo que só saía da rádio depois que legalizassem. Foi quando eu comecei a fazer faculdade de jornalismo.
Quando você deixou a diretoria da rádio?
Em 2008, o presidente da República veio aqui entregar a outorga e falou comigo, tirou foto que saiu no jornal da comunidade. O pessoal dizia: “Nossa! Agora você é celebridade! Abraçou o Lula!”. Ganhei aqui o status de celebridade. Quando eu passo na rua sem falar com as pessoas, elas mandam recado aqui na rádio dizendo que o Gerô não fala mais com pobre. Festas, eu sou convidado a todo momento. Vou pra reunião e depois volto pro churrasco, não sou boba!
Depois dessa outorga eu disse pra Unas que queria mudar pra área da educação, que sempre foi minha paixão. Foi uma bomba. Mas eu já tinha dito que, quando a outorga fosse conquistada, eu ia sair. Me deixaram sair com a condição de que eu ficasse com o programa.
Mas o projeto da rádio também tem uma intenção formativa, não?
Tem, claro. Inclusive as nossas reuniões de equipe são reuniões de formação política. Não no sentido de política partidária, mas é preciso que se entenda que este microfone é uma arma e que ele deve ser aberto pra falar para a população, e também para politizar quem escuta. Entender, por exemplo, por que é que a Unas existe. Em 1993, por exemplo, veio o [então prefeito, Paulo] Maluf tirar todo mundo daqui pra construir um shopping center. A gente lutou, apanhou e foi preso pra não deixar isso acontecer. As pessoas precisam saber disso. Como aqui a gente não tem o documento das casas, isso pode voltar a acontecer a qualquer momento. É preciso que se entenda que a gente tem que estar junto, participar das discussões, pensar a questão do tráfico que tem aqui e dizer não a esse tráfico. A gente faz uma reunião todo sábado entre nós da rádio, cerca de 40 pessoas. A gente não aceita que um locutor que fala pra milhares de pessoas todos os dias seja massa de manobra. O ser tem que ser um ser pensante, um ser político.
“As nossas reuniões de equipe são reuniões de formação política. Não no sentido de política partidária, mas é preciso que se entenda que este microfone é uma arma e que ele deve ser aberto pra falar para a população, e também para politizar quem escuta”
Como é trabalhar com a diversidade de programas da rádio?
A gente se conversa muito bem. Às vezes o cara que faz o programa de forró diz que não pode vir na segunda-feira. O evangélico se dispõe a vir e fazer o programa pra ele. Devido às reuniões, às problematizações e ao entendimento de equipe de que não existe o eu, mas sim o nós. Tem um programa de forró, muito ouvido, por sinal, que recebeu um adendo de um padre durante a transmissão. O locutor o convidou para falar da vinda desse papa “pop”. Agora esse programa de forró abre uma hora de fala para a Igreja Católica. É um trabalho em grupo muito forte. Quando alguém não pode vir tem sempre alguém que se dispõe a ir no lugar.
E isso também acontece fora da rádio? Quais as estratégias encontradas para a ampliação do diálogo sobre a diversidade na comunidade? Existe muita resistência?
Vou dar um exemplo: tem essa ideia de que o funk é perverso. O que a gente faz? Vai lá ver o que é. Vai no funk, distribui camisinha, conversa com um, com outro. O pessoal fica louco quando eu chego e já me chama pra quebrar até o chão. Eu não tenho mais idade pra isso, não, fico em uma rodinha, em outra, distribuo preservativo, sempre brincando que eles não têm idade pra usar, mas que mesmo assim é pra pôr no bolso. Vou no funk, no forró, no samba, em tudo. Não só eu, como toda a equipe da rádio. É um entendimento. Eu não vou condenar, mas eu vou fazer minha crítica. Minha sobrinha vai e tem 13 anos. Não posso amarrar. É melhor explicar pra ela o que é do que eu trancar a porta, ela pular a janela e ir.
E a relação dessa diversidade toda com a religião?
A gente fala a mesma língua. Os pastores sempre dizem que vão pedir oração pra mim. Mas ainda assim existem alguns desencontros. Eu acho que nós, gays e lésbicas, temos uma visão mais ampla do mundo. A gente entende que os evangélicos, na maioria das vezes, alienam as pessoas. Muitos héteros não veem assim. Eles têm a visão de que o que a gente faz é pecado e que não vamos pro céu. Minha irmã é evangélica. Ela diz que eu sou o irmão que ela mais ama e que ela vai implorar pra que Deus me leve pra igreja para poder ir pro céu, porque se eu morrer hoje eu vou pro inferno. Eu digo: “Minha irmã, o inferno é aqui. E o inferno é gostoso, tem bofe, tem forró pra gente, funk, tem tudo! [Risos] No céu tem que rezar o tempo todo, e eu não aguento ficar rezando, não”. Dou risada bem alto e vou embora. Tem essa visão, mas também existe um respeito muito grande. Os evangélicos aqui desta região não apontam pra gente. O respeito é mútuo.
Como são os grupos de mulheres e de homossexuais da comunidade?
O grupo de mulheres se encontra uma vez por mês e discute políticas para a mulher. O último encontro com o grupo dos homossexuais foi em maio, na minha casa. Fiz um feijão-tropeiro e foram 35 pessoas. Vieram héteros, mas não deixei entrar, não, só as mariconas. Maricona aqui é como a gente chama os bissexuais. Tem muitos bissexuais que são declarados e que as mulheres sabem que são bi. Mas esse encontro é mais pro público GLS.
Na Unas trabalham registradas cerca de 580 pessoas, 90% mulheres. Entre todos nós, por volta de 2% são homossexuais. Hoje, praticamente em todos os cerca de 40 projetos, existe um ou dois homossexuais. Eu sou diretor da entidade. O Jairo, um homossexual, é diretor de projetos da comunidade. Existem homossexuais trabalhando na recepção da Unas, em cozinha de colégio, na gestão, na direção de creche… Isso é fruto de um entendimento comunitário conquistado com os anos. Quando eu cheguei na comunidade, tinha gente que virava a cara pra mim. O vice-presidente da Unas chegou a dizer que eu não podia entrar aqui. Fui o primeiro gay assumido que entrou, e houve uma revolta muito grande dos machos. Hoje, de 580 funcionários, 90% são mulheres… A gente foi quebrando tudo isso. Quebrando, não, mostrando trabalho, discutindo, conversando de igual pra igual.
Como acontece a festa Noite do Babado?
Em março foi a última, em parceria com a Secretaria de Diversidade. Vieram 900 pessoas, contadas nos ingressos. Fizemos a festa numa quadra e quase não coube tanta gente. Todo mundo queria beijar na boca, eu fiz dark room… Veio uma turma de héteros querendo as menininhas que vieram. Elas não queriam e foram lá me chamar. Parei tudo e acendi a luz: “Gente, eu estou sabendo que tem aí três rapazinhos bonitinhos que estão querendo beijar na boca. Vem beijar a minha porque eu estou doidinha pra beijar! Meninas, fiquem aí livres. Beijem à vontade. Vamos criar daqui a pouco um beijaço!”. Os meninos foram embora: “Gerô, desculpa aí, desculpa aí”. A gente não agrediu e eles não nos agrediram. Mas para os héteros ainda não é comum ver duas mulheres se beijando. A Unas me deu uma ordem de fazer essa festa em pelo menos um sábado por mês na quadra. Mas eu tenho tanta coisa pra fazer que é impossível essa regularidade. Tentei passar essa bola pra outros, mas eles não conseguiram mobilizar.
Como é a questão da homofobia hoje em Heliópolis?
Hoje está muito melhor, mas houve épocas em que foi horrível. Havia um homossexual aqui que foi pedir pra fazer um show na escola onde eu estudei, no mesmo palco que eu lutei pra gente poder usar. Pela semelhança física, ela pediu pra dublar a Lacraia, que estava no auge com o MC Serginho. A escola em peso, homem e mulher, queria agredi-la. No dia seguinte a diretora me chamou pra falar com o povo. Quando eu cheguei, todo mundo feliz gritava: “Gerô!, Gerô!”, mas eu comecei gritando, xingando todos eles. Perguntei quem eram os responsáveis pelas ameaças, o que é que tinha acontecido pra terem essa posição. Eles disseram que eu era diferente, que eu tinha conquistado meu espaço. “Ah, quer dizer que eu conquistei o meu espaço, que serve só pra mim? Quem de vocês precisou conquistar o seu espaço aqui dentro? Quer dizer que todo homossexual tem que ser primeiro apedrejado?” Fiquei das 19 às 22 horas conversando com eles. Depois levei ela pra dublar na quermesse: “Tá aqui, quem é que vai agredir ela? Quem?”. O show foi lindo, mas, sim, aqui também tem homofobia.
“Eles disseram que eu era diferente, que eu tinha conquistado meu espaço. ‘Ah, quer dizer que eu conquistei o meu espaço, que serve só pra mim? Quem de vocês precisou conquistar o seu espaço aqui dentro? Quer dizer que todo homossexual tem que ser primeiro apedrejado?’”
Teve um outro cara, hoje amigo meu, que jogou um copo de cerveja numa das minhas amigas, uma bicha também, e eu dei na cara dele. Eu não sou bandido, eu não sou Deus, mas eu trabalho dentro desta comunidade e dou minha vida por ela. Todo mundo sabe disso, a comunidade está comigo. Por tudo isso, de dez anos pra cá eu não tenho ouvido mais falar em práticas de homofobia aparentes, mais agressivas. Agora, tem aquela molecada que escarra no chão quando vê um homossexual. Isso também é homofobia, mas é uma coisa que, pra mim, que tenho minha sexualidade definida, não incomoda. Se ele não quiser pegar na minha mão, foda-se. Agora, agredir é outra coisa…
Mas você vai no funk e lá está cheio de homossexuais. E o povo beija. Eu, particularmente, só saio de Heliópolis pra Parada Gay. Eu vou desde a primeira. Hoje em dia saem dois ônibus daqui, fretados pela Unas. A gente se monta, todo mundo na minha casa, compro na 25 de março [rua de comércio popular em São Paulo] um monte de coisas e deixo no sofá pras pessoas escolherem.
A relação com a polícia aqui é tensa?
Com o funk, muito. Com a comunidade, varia. A polícia invade os bailes funk porque eles não são permitidos. Eles acontecem no meio da rua. O pessoal coloca uns dez carros de som, abre o capô do carro e coloca o funk falando de putaria. Vão umas 5 mil pessoas, toda sexta, sábado e domingo. E pela lei isso não é permitido. Os forrós, que são dentro dos bares, já são mais permitidos. É uma festa mais sadia, vão todas as famílias. No funk, dá meia-noite e a polícia invade, joga bomba de efeito moral, multa os carros… Eu costumo ir mais aos forrós. Ontem mesmo eu falei pra garotada pra eles saírem antes de a polícia invadir. A molecada daqui sai muito de moto sem capacete, sem documento, e, quando a polícia pega, pede muito dinheiro pra não apreender a moto. Não praticam a lei, são mais chantagistas. Eu ouço dizer que tem isso. A gente faz parte do Conselho de Segurança daqui e discute essas coisas. Somos próximos do delegado dessa região, e ele é quem autoriza a quermesse. A única festa de rua que pode ter aqui em Heliópolis é a quermesse, que é da Unas.
E como você prefere ser chamada: “o” Gerô, “a” Gerô, “a” Nina?
Olha, não sei! Isso se tornou maior que eu. Meu nome é Geronino. Quando eu comecei lá na escola, o povo só me chamava assim. Já a minha família me chamava de Nino. Minhas amigas de fervo, de Nina. Quando eu comecei a trabalhar na Unas, me chamaram de Gerô. O maior hoje é Gerô. Mas tem uns bloquinhos que ainda me chamam de Nino e de Nina. Até minha família me chama hoje de Gerô. É tudo o mesmo nome, derivações do mesmo.
As crianças me chamam “a” Gerô. Outra criança vira e corrige: é “o” Gerô. É isso… então eu não sei. O que você acha melhor? A Gerô? O Gerô? Entende? O respeito é o mesmo. Vocês precisam ver o carinho quando eu subo no palco da quermesse. Tem coisas que eu copio da Silvetty [Montilla]. Eu entro e pergunto: “Eu tô bonita?”. E o povo responde: “Nããããããão!”. “Para tudo! Vamos combinar uma coisa? Eu vou falar assim: Eu tô bonita? Vocês falam: Tá!” Aí conto até três, pergunto, e eles: “Nããããããão!” [risos]. Tem uma palhaçada muito grande com esse povo. É um carinho dessa comunidade comigo. Vou pensar em sair daqui? Enfrentar homofobia, avenida Paulista, pedrada? Não que eu não goste de ir lá, mas você se sente só mais um número. Aqui eu sou “o” Gerô ou “a” Gerô. Quando eu chego num lugar, todo mundo para porque a Rainha do Heliópolis chegou. Saio sem me despedir, vou pra outro forró e é a mesma coisa. Vou sair daqui pra quê? Pra mim, o melhor lugar de viver no mundo é aqui. Criminalidade e tráfico tem. Mas tem aqui como em qualquer outro lugar do mundo. Não vou peitar isso porque não tenho armas, não sou louca. Não tenho peito de aço. É isso.
*Colaboraram Cícero Oliveira, Clara Lobo e Tiago Kaphan.