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Diva que incomoda
Soldado pintosa, dama do teatro, Miss Brasil Trans, cantora punk, escritora, produtora, primeira travesti a atuar em telenovela. Geni tem a honra de entrevistar a surpreendente Claudia Celeste. Por Pedro “Pepa” Silva. Com Marcos Visnadi (texto) e Gui Mohallem (fotos)
O táxi pegou a avenida Brasil e fomos direto, sem trânsito. Ar condicionado pra refrescar duas almas que tinham decidido andar de Botafogo ao aeroporto – assim, pra aproveitar bem o tempo e a paisagem. Até pensei em olhar o guia do Rio e verificar se não estávamos muito longe. Meto a mão na mochila e, sim, algo falhou! Descubro que, na pressa da viagem, tinha tirado da estante um guia de… Buenos Aires!
Enquanto conversávamos no carro, compartilhando aquele momento de ansiedade e excitação pelo que viria, eu me dividia entre pensar na entrevista e lembrar de onde vinha a frase que me martelava a cabeça – “Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá!”.
Foi nesse bairro da zona norte carioca que o táxi nos deixou. E um dia delicioso começou para mim, Gui Mohallem e Marcos Visnadi quando Claudia Celeste e Paulo Wagner, seu companheiro há 30 anos, abriram a casa para receber a Geni.
Eu já conhecia Claudia de conversas telefônicas e e-mails trocados desde uns dois, três anos atrás. Da história dela eu conhecia basicamente um momento: Claudia foi a primeira travesti a participar de uma telenovela inteirinha. Isso foi lá em 1988, na extinta Rede Manchete, em Olho por olho, telenovela escrita por dois autores que admiro muito, José Louzeiro e Geraldinho Carneiro. Contemporânea de Vale tudo, a trama teve um elenco estelar, mas não ficou na memória dxs noveleirxs – sofreu com questões administrativas e nunca foi reprisada…
Eu me interessava por essa história, pelo seu caráter singular. Vocês vão se lembrar, talvez, de Rogéria fazendo uma participação em Tieta – mas isso, queridxs, só veio vários meses depois! Pioneirismo mesmo foi o de Claudia, que não só fez uma personagem de destaque numa novela inteira, mas já havia dado o truque anos antes, quando foi parar ao lado de Sônia Braga, na TV Globo, em 1977. Detalhe: sem que soubessem que era travesti!
Claro, só essa história bastaria para colocar Claudia Celeste numa galeria de personalidades. Mas o fato é que ela é bem mais que a nossa primeira atriz travesti. No jornal Última Hora de 25 de outubro de 1975 ela já era apontada como “um dos grandes mistérios da noite carioca”, uma “vedete travesti de nível realmente internacional”. O burburinho vinha por conta do espetáculo Era uma vez no Carnaval, que lhe rendeu o epíteto “a lebre misteriosa de Carlos Imperial”. Em 1976, ela foi eleita nossa Miss Brasil Trans. No teatro, atuou em diversos espetáculos de sucesso, como Gay Fantasy, de 1982, de Arnaud Rodrigues e direção de ninguém menos que Bibi Ferreira; ou ainda Bonecas com tudo em cima, escrito por Claudia e Veruska e dirigido pela cantora Marlene. Nos anos 80, ao lado de Paulo Wagner, flertou com o punk rock e a new wave no espetáculo Febre. Depois da experiência na telenovela da Manchete, Claudia e Wagner foram para a Europa, onde trabalharam juntos em espetáculos durante 16 anos. No Brasil há oito anos, ela está envolvida em diversos projetos – um deles é o livro que resgata a história dos espetáculos de travestis.
Tivemos boas horas de conversa, remexendo memórias e arquivos. Do sábado adorável em Irajá (e com direito a um almoço delicioso feito pelo Wagner!), tiramos algumas das melhores histórias dela e de tantas outras travestis. Geni se orgulha de ter como primeira entrevistada a surpreendente Claudia Celeste!
Como você começou no teatro?
Em 1973, eu acompanhei uma amiga minha que ia fazer um teste pro teatro de revista. Ela não passou, mas o diretor me perguntou: “Você não vai fazer o teste?”. Eu não falei nada, fiquei meio sem graça, e minha amiga disse: “Ela não quer fazer o teste porque é travesti”. Aí parou tudo!
Eu fui selecionada, mas naquela época estavam proibidos os espetáculos de travestis, ficaram proibidos no teatro de 1969 a 1973. Então me levaram pras boates e eu comecei a dançar como go-go girl.
Era proibido aparecer travesti no palco? Como é essa história?
Eu vou contar tudo isso no livro Glamour das divas, que estou escrevendo com o professor Anibal Guimarães e que quero lançar ano que vem, quando os espetáculos de travestis no Brasil completam 50 anos. Eu já estava com a ideia desse livro há tempos, eu e a Suzy Parker, queríamos escrever um livro de memórias. Já falei com a Rogéria, a Valéria, todo mundo. As véia [risos] vão se reunir e escrever o livro de memórias, porque é a única coisa que nos resta. Porque hoje é como se só existisse a Rogéria! Cadê Geórgia Bengston? Cadê Maria Leopoldina? Cadê Shirley Montenegro, que era uma cantora lírica? Cadê Kiriaki? Cadê tantas e tantas e tantos nomes?
Até para mostrar que a Rogéria não saiu do nada, né? Já tinha muita coisa acontecendo…
Claro! Ela começou em 1964 também. Claro que ela já se destacou, sempre foi maravilhosa! Se ela é maravilhosa agora, com 20 anos era um escândalo! Foi um deslumbre. Mas não existiu só ela.
Como surgiram os espetáculos de travestis no Brasil?
Em 1961 o [produtor] Walter Pinto resolveu contratar, de Paris, uma travesti, Ivanah, que foi a primeira que apareceu em um espetáculo de teatro, que se saiba. Agildo Ribeiro foi bailarino dela. Depois veio a Coccinelle, a francesa que se operou e foi um escândalo. Saiu na capa da Manchete, na piscina do Copacabana Palace, em 1962, 1963, se não me engano. Ela de biquíni, com aqueles peitos enormes, desse tamanho, e ninguém tinha peito naquela época [risos]. E ninguém entendia o que era aquilo. “Homem com peito? Virou mulher com xoxota? Que história é essa?!” [Risos] E ela belíssima.
Mas em 1964 é que surgiram os espetáculos de travesti, quando resolveram escrever o International Set, e foi aí que lançaram: Rogéria, Valéria, Marquesa, Brigitte Búzios, que estão vivas até hoje. E foi um sucesso estrondoso! A sociedade carioca, todas mulheres de limusine na porta com seus casacos de pele para ver os viados, que na época não tinham peito nem nada, mas pareciam mulheres chiquérrimas maravilhosas… Não era pejorativo à mulher – eram verdadeiras mulheres em cena. Então foi aquela coisa: esses espetáculos salvaram o teatro na época. Depois do International Set, veio o Les Girls, uma superprodução com texto do [Mário] Meira Guimarães e música do José Roberto Kelly. Era na Galeria Alaska, na boate Stop (que depois passou a se chamar Sótão).
Quando você começou no teatro, já conhecia esses espetáculos?
Nunca tinha visto. A primeira vez que eu vi foi em 1972, quando Valéria voltou ao Brasil. Foi um escândalo. Foi quando ela fez o show com o Agildo Ribeiro. Eu vi a capa da Manchete, ela com a roupa do Clodovil, escrito “Valter ou Valéria?”. Aquilo me deixou nervosa! Eu não sabia o que era aquilo, nunca tinha visto na minha vida. Mas olhei e falei: é isso que eu quero!
Quantos anos você tinha?
Dezoito. Aí comprei o ingresso pra assistir. Não na primeira fila, que eu fiquei com medo. Fui assistir lá de trás. Fiquei apaixonada pela Valéria e comecei a me vestir de mulher também. Eu trabalhava num salão de cabeleireiro, era maquiador, e uma amiga minha que era cabeleireira falou: “Você é tão feminina, devia tomar hormônio também”. Ela me deu de presente uma caixinha de Lindiol, que era um anticoncepcional que estavam tomando na época. Disse que crescia o peito e não sei mais o quê. Aí eu tomei demais e quase morri!
Como assim?!
Eu tomei a caixa inteira! De uma vez. Pra fazer efeito rápido. Loucura de 18 anos, querendo peito logo.
Algum médico te orientou depois disso?
Só muito tempo depois. Eu comecei a ficar nervosa. O Lindiol era terrível. Os peitos ficavam desse tamanho, mas você ficava louca, estressada.
Mas aí você começou a dançar como go-go girl…
Comecei dançando como go-go girl nas boates Little Club e Bacará, ambas no Beco das Garrafas, sob a direção do coreógrafo e bailarino Alex de Matos. Em 1973 o seu Américo Leal [produtor do Teatro Rival], avô da Leandra Leal, conseguiu a concessão pra reabrir os espetáculos de travesti. Aí eu fui fazer o teste com ele e passei. Foi o meu primeiro espetáculo, O mundo é das bonecas [de Gugu Olimecha], com um elenco enorme, Geórgia Bengston, Jane di Castro, Fabette [Schüller], Edy Star. Todas eram mais velhas que eu, tinham mais experiência. Foi aí que eu conheci o coreógrafo Adriano Lobato, que fazia o balé da Globo, e ele me viu dançando e me convidou pra trabalhar com ele. Ele era caxias! Era horrível! Não admitia atrasos. Queria que chegasse no teatro duas horas antes do espetáculo, pra pegar o clima. Mas era isso que fazia sair aqueles espetáculos maravilhosos. E foi isso que me tornou uma profissional.
Foi então que você foi fazer a participação na novela na Globo?
Foi um pouco depois. Foi a primeira novela que eu fiz, em 1977, na Globo, chamava-se Espelho mágico. Mas nessa novela eu não entrei como travesti, eu passei como uma das meninas. O [diretor] Daniel Filho não sabia que eu era travesti. Ele gostou da cena que eu estava fazendo no teatro da Brigitte Blair, onde eu cantava e as meninas faziam o balé comigo, um balé de putas. Aí o show da Brigitte foi contratado para participar da novela, porque a personagem da Sônia Braga passava por um teatro de revista.
Então vocês gravaram alguns capítulos…
Aí o jornal Correio de Copacabana [na coluna “Guei”] publicou: “Claudia Celeste na novela”. Menino, no dia seguinte estava a imprensa toda no teatro! E já começou a polêmica: por que a Rogéria, a Valéria, não podem fazer televisão, e a Claudia Celeste pode? Qual foi o critério que a censura usou pra deixar a Claudia Celeste, e não a Rogéria? Porque a Rogéria já era famosa na época. Aí saiu em tudo quanto era revista. Antes, ninguém sabia que eu era travesti, nem Daniel Filho. Ninguém nunca me perguntou! E, como ficou muito ti-ti-ti, tiraram os capítulos que eu já tinha feito.
Não podia ter travesti na televisão?
Não podia, era a ditadura militar! Eu me lembro que na época eu estava de caso com um produtor da TV Tupi, e ele me colocou no programa do Aérton Perlingeiro, Almoço com as estrelas. Quem tirasse a minha foto mais bonita ganhava o troféu Flecha de Ouro do Rio de Janeiro. Então todos os estúdios da cidade foram me fotografar, só que ninguém tava sabendo de nada. Tanto que quem ganhou foi um fotógrafo de noivas. Ele tirou minha foto pelada no Parque da Cidade e não sabia que eu era travesti. Quando soube, não foi buscar o prêmio.
Em 1988 você fez uma novela inteira, que foi Olho por olho, da Rede Manchete, em que você contracenou com a Beth Goulart e o Mario Gomes…
Sempre com o Mario Gomes, engraçado, não era planejado. Fiz a novela e também o filme Beijo na boca [de 1982, com roteiro de Euclydes Marinho e dirigido por Paulo Sérgio de Almeida]. Sempre me tratou bem, uma pessoa excelente. A Beth também é maravilhosa, agora retomei contato com ela, depois de tantos anos. Ela me ajudou muito na novela. Eu também [a ajudei], levei ela pra tudo quanto é canto, fizemos laboratório juntas.
As personagens de vocês eram prostitutas de rua?
Sim. Se bem que, depois, como eu cantava, puseram a Dinorá [personagem de Claudia] para fazer show na boate.
E a sua personagem tinha envolvimento com a do Mario Gomes, né? Isso aparecia na novela?
Aparecia. Ela se apaixonou pelo personagem do Mario Gomes, chegou a ir pra cama com ele…
Ah, é?!
É! Aquele homem de cueca do meu lado, e eu já casada… [Risos]
E rolou beijo?
Não… uma bitoca. Mas beijo, não.
Mas eu fiz uma cena muito boa, que eu adoraria ter, que era com o Paulo José. Ele fazia uma maricona que não pagava a Dinorá. Aí a Dinorá puxava uma gilete da boca. Inclusive, para dar mais realidade, o [diretor] Marquinhos Schechtman pediu que eu fizesse essa cena completamente nua. Claro que não aparecia nada, mas se via que eu estava nua. Foi uma cena muito boa, ele é muito bom ator, deslumbrante.
O caminho da Dinorá vai da prostituição aos shows?
É. Mas o negócio dela é a prostituição, não é show. Tanto que o autor uma vez escreveu que ela iria pro teatro, fazer muito sucesso, e eu falei: “Não, isso não corresponde com a realidade do travesti aqui, não tem nada a ver”. Aí ele me ligou e perguntou: “Claudia, então como é? Dá umas ideias”. E no final a Dinorá vai pra Paris.
Como foi a escolha do seu nome? De onde veio “Claudia Celeste”?
Primeiro era Claudia, não tinha sobrenome. Até que em 1975 eu conheci Carlos Imperial. Ele me botou no espetáculo dele, que chamava Era uma vez no Carnaval. A Marcia de Windsor apresentava, tinha o Sidney Magal cantando. Aí o Imperial me aparece com essa: “Claudia… Claudia pode ser qualquer uma. Você tem que ter um sobrenome. Vai ser, deixa eu ver… Celeste”. Eu falei: “Ah!!!” [grita] “Celeste?! Que horror, meu deus” [risos]. Ele falou: “Claro, você quer o que, Cardinale? Bengston? Você é muito feminina, é uma senhorita comum. Então bota um nome comum que vai fazer sucesso”. Menino, eu odiei aquele nome, chorei uma semana! Mas eu não podia fazer nada, porque ele era a mídia, já botou em tudo quanto é jornal: “A lebre misteriosa do Carlos Imperial”. E ficou.
Mas uma hora você acabou gostando?
Claro, agora eu gosto. Imperial foi meu padrinho.
E como era esse espetáculo Era uma vez no Carnaval?
Era na antiga boate Sucata, do Ricardo Amaral. Era sobre o Carnaval. Tinha as marchinhas. No meio, começava a cantar: “Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é?”. E depois aparecia a Marcia de Windsor falando: “Será que ele é o quê? Bicha? Ah, o que seria do Carnaval se não fossem as bichas? Quem mais canta, quem mais dança, quem mais encanta? São elas os grandes talentos!”.
Na época não usava “gay” nem nada, era tudo bicha.
Aí aparecia eu no final. “Esta simpática senhorita, que agora está desfilando na passarela, não é nada mais, nada menos, que o senhor Claudionor Alves Ferrão.” Sei lá de onde que ele tirou esse nome [risos]. Claudionor tudo bem, é meu nome, mas Alves Ferrão ele inventou. Então dizia que eu era travesti, ficava aquele burburinho, tal e coisa.
Depois eu voltava toda vestida de branco, um longo, esvoaçante, com uma cestinha de flores na mão, dando rosas para as senhoras da plateia, ao som da música “As pastorinhas” [canta]: “A estrela d’alva / no céu desponta / e a lua anda tonta / com tamanho esplendor…”. E no final da música eu voltava pro palco, pousava a cestinha, deixava o vestido cair, e eu estava nua! A luz apagava e pronto, acabou.
Era a última cena?
Aí a Marcia voltava para falar um texto, que era o grande texto, sobre o Carnaval. E era uma cena séria. Só que depois do meu striptease, de terem anunciado que eu era travesti, ninguém escutava mais nada. Aí a Marcia pediu pra passarem o texto dela pra antes, e isso foi feito. A minha cena ficou por último.
Como você lidava com o fascínio da sociedade com a travesti?
Isso sempre foi e sempre vai ser, né? É aquela coisa do sexo, o ser humano ainda tem muito tabu com o sexo. Principalmente brasileiro. O Brasil é um país caliente e coisa e tal, como dizem, mas não é como a Europa. Lá eles lidam melhor com essa questão, pra eles é mais natural. Já pro brasileiro, ainda é coisa do outro mundo. Todo mundo que vai ver um travesti pensa logo em quê? Já pensa na cama, no sexo… Pra ele a gente está na cama o dia inteiro e não sai de lá. A gente não cozinha, não lava, não passa, não vive vida nenhuma, não tem inteligência nenhuma, não estuda… Não é professora, não é médica, não é nada – é sexo. E, depois dos anos 80, com a coisa de ir pra Paris, de se prostituir, o travesti ficou ligado à prostituição.
“A gente não cozinha, não lava, não passa,
não vive vida nenhuma, não tem inteligência nenhuma,
não estuda… Não é professora, não é médica,
não é nada – é sexo. E, depois dos anos 80,
o travesti ficou ligado à prostituição”
Antes dos anos 80 não era assim?
Antes era espetáculo. Hoje a gente ficou reduzida ao gueto. Tem espetáculo de travesti em casas gays, em boates, saunas… Mas não tem para o público em geral. Na época, os espetáculos eram de travesti, mas o público era geral. Ia a família toda, principalmente as mulheres. Elas eram as maiores fãs dos espetáculos de travestis. Claro, porque pra elas o travesti era uma mulher forte, e as mulheres ainda não tinham toda a liberdade que têm agora. Hoje em dia as piriguetes são verdadeiros travestis! Então o travesti passou a ficar sem graça.
Adorei essa história. A piriguete é filha do travesti?
Ela vem do travesti! Porque ela está fazendo o que as travestis de rua faziam nos anos 80. Ela imita a travesti de rua, não a de espetáculo. Nós, as de espetáculo, imitávamos as mulheres chiquérrimas, as grandes atrizes, as mulheres de sociedade.
E, fora os espetáculos, naquele momento, como era no dia a dia? Era possível andar como travesti na rua, por exemplo?
Na minha época já era. Antes não, eram todos transformistas. Tanto que a polícia ficava nas portas dos teatros, porque ninguém podia sair vestido de mulher! Ia presa, botavam direto no camburão. No Rio e em São Paulo. Se fizesse show em outro lugar, tinha que botar tudo na bolsa, tirar peruca, maquiagem, nenhum resquício! Tinha que sair de rapaz. Só aceitavam em cena, dentro da caixa do teatro. Não eram as pessoas, era a polícia! Talvez isso explique os teatros lotados. A gente superlotava teatro, dos anos 60 até os anos 80, de ter câmbio negro na porta. E de ter vezes em que Fernanda Montenegro, Marília Pera não tinham público, e nós tínhamos. As pessoas sentavam na escada. E não eram gays, era família, gente que vai ao teatro.
Eu acho que, se resgatasse isso… É que [hoje] não tem a coragem dos empresários. Porque [antes] tinha empresário. Não era botar um disco embaixo do braço e levar pro DJ. Tinha três meses de ensaio. Tanto que Jorge Fernando dirigiu, assim como dona Bibi Ferreira, e uma mulher dessas não ia dirigir qualquer coisa.
Por que os espetáculos foram terminando nos anos 80?
Porque acabou a produção. E houve a febre de ganhar dinheiro na rua, ir pra Paris fazer esquina e comprar casas, apartamentos… Então quem quer ser artista? Eu ganhei dinheiro, mas não pra ficar rica. Eu ganhei pra viver.
Nós tínhamos produtores corajosos. Que gostavam de ganhar dinheiro, claro – e ganhavam muito bem. Na época do Les girls, elas ganhavam mais que qualquer artista de televisão. Eram mais vedetes que as grandes vedetes da época. E isso tudo numa boate lá na Galeria Alaska, com fila de carro na porta e as mulheres com uns brilhantes desse tamanho, que ninguém sabia se o que brilhava mais eram os brilhantes das bichas ou os das mulheres que iam ver “os meninos”, como elas chamavam.
E o público do teatro é bem diferente do público do gueto?
Quem vai ao teatro? Travesti não vai. Então qual o público que a gente tem que atingir? É quem vai ao teatro. Se o espetáculo for de travesti, são as mulheres, principalmente. E tem que ser escrito por nós!
Quando chegou o texto do Gay Fantasy, a Bibi [Ferreira] leu e não concordou. Porque estava muito machista, muito pejorativo, a visão do homem sobre o travesti. Quem tem que dar a visão é a mulher ou o travesti, porque vive aquela vida, sabe como é. Aí eu e a Veruska reescrevemos para o texto ficar apresentável. Não que o texto do Arnaud Rodrigues estivesse ruim, estava maravilhoso. Mas faltava a visão travesti. E nós temos que colocar a nossa visão, mas dentro de uma linguagem aceitável [pro público]. Senão você vai malhar em ferro frio, não vai adiantar nada ficar levantando bandeira dizendo “não nos mate”, porque, quanto mais você disser, mais vão te matar. O ser humano já é ruim de natureza.
Por isso eu tomo esse exemplo. É claro que não dá pra voltar pro passado, mas a gente tem que olhar pra ele e ver onde está errado e onde está certo. E aprimorar o que deu certo.
O movimento LGBT hoje fala principalmente com o governo. Quer as leis alteradas, a lei de identidade de gênero, por exemplo. O que você acha disso?
É bom, porque aos pouquinhos está conscientizando. Mas eu acho que ainda está muito… Não digo devagar, porque devagar vai mesmo, não se muda de um dia pro outro. O que acontece é que está havendo impasses.
Você acha que a volta dos espetáculos seria uma forma de driblar o impasse?
Seria um jeito, porque nisso aí a gente consegue pelo menos conquistar o povo. Como a gente conquistava.
Também por isso estamos criando essa ONG, o Instituto Associativo Brasileiro de Entretenimento e Cultura (Iabec), pra ver se a gente resgata isso. Porque vão dizer: ah, só aquelas antigas é que tinham talento? Não, tem muita gente por aí que tem talento, só não tem a oportunidade que nós tivemos. Não tem direção, produção…
Você se incomoda quando se referem a você no masculino?
Não, pra mim é igual. Geralmente as pessoas me chamam de ela, é claro, estão vendo uma mulher na frente. Mas às vezes escapa.
Mamãe custou a me chamar de ela. Levou anos. Através dele [aponta pro Wagner] é que ela parou de me chamar. Às vezes no meio da rua ela gritava: “Ô, Claudinho!”. Um dia ele falou: “Dona Miralea, aí é que todo mundo para pra olhar!”. Aí ela notou. Mas pra mim tanto faz, eu sei o que eu sou. Tanto que eu não quis me operar – eu não preciso ser mulher, eu me sinto. É mais importante do que ser. Simone de Beauvoir já disse: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”.
Você e o Wagner se conheceram no teatro?
Sim. Eu tinha ido pra Europa com um grupo, que foi o último grupo das Dzi Croquettes.
Você foi uma Dzi Croquette?!
Eles foram meus amigos. Queriam que eu fizesse parte, na época, mas a ideia era muito louca e eu não aceitei, não. Eu era muito feminina, e eles queriam que eu aparecesse nua completamente, sem fazer o truque, mostrando tudo, pra chocar! Mas eu não quis.
Mas você ia nos espetáculos deles?
Sim, eu acompanhava. Depois eles foram pra França, a gente se encontrou lá. E em Portugal eles fizeram o grupo Funny Fruits, que foi quando o Wagner foi morar com eles. Aí, quando eles voltaram, vieram trabalhar no primeiro show que teve de go-go boy, chamava-se Wonder boys. Fui eu que montei com o Ronald Reis, que hoje trabalha na equipe do Miguel Falabella, com teatro.
Eu estava na Galeria Alaska, na boate Katakombe, que era lá embaixo, e eu queria montar um espetáculo de travesti. Mas eu queria fazer um espetáculo diferente. Queria fazer mais tarde, e mais tarde só tinha gay. Muitos gays, e também aqueles garotos que faziam prostituição ali. Aí eu pensei: “Tem tanto gay aí, acho que vou fazer um espetáculo de homem… aí as gays vão se animar mais” [risos].
Mas o problema foi: cadê os boys pra fazer o espetáculo? Ninguém queria, ninguém nunca tinha ouvido falar. E a gente queria fazer um espetáculo produzido, como eram os de travestis.
Na década de 80 você fez, como a Claudia Wonder, um show com uma banda punk, não foi?
Foi! Eu, ela, a gente era doida [risos].
Ela era do [elenco do espetáculo] Gigoletes, feito em São Paulo, com a Claudia, Gisela, Samanta, muitas. Elas vieram pro Rio, nessa boate do Ricardo Amaral em que eu trabalhava, e eu fui a única do Rio que entrou no elenco. Aí nós nos conhecemos, fomos parar na França. Já a minha banda chamava Coisa que Incomoda, que era o nome de uma música que eu compus.
Você compôs pra algum espetáculo?
Pro espetáculo Febre. Eram uns playbacks que eu tinha na época, que eu ganhei da Marie France, de Paris. Ela gravou em francês, me deu os playbacks e eu fui fazendo, junto com o Wagner, as versões das músicas.
Quanto tempo você ficou em cartaz com esse espetáculo?
Seis meses.
Bastante, não é?
Não, na época não era. O Gay Fantasy durou dois anos. O Mimosas [Mimosas até certo ponto, espetáculo do Teatro Brigitte Blair] durou dez anos.
Nossa, e por que durou tão pouco tempo?
Era muita coisa que acontecia, muito bailarino entrando e saindo, não era fácil administrar.
Nessa época, você perdeu muita gente pra aids?
Muita! Nossa! A gente nem sabia o que era aquilo, ia morrendo uma atrás da outra.
Foi assustador. Ninguém sabia o que era, não tinha cuidado nenhum. E teve uma época que se chamou “peste gay”.
Uma vez eu passei um constrangimento por isso, em São Paulo. Eu fui me depilar num salão de beleza. A menina me depilou uma perna e de repente ela ficou assim e saiu. Aí entra a dona do salão e fala: “Olha, eu vou terminar de te depilar porque a menina que estava aqui não quer mais voltar, porque você é travesti”. Aí eu falei: “Ué, mas eu to acostumada a depilar e ninguém nunca falou nada”. Ela falou: “É, mas infelizmente, com essa doença, o pessoal tem medo…”. Foi um constrangimento que eu passei.
E teve outra vez que puseram uma foto minha num jornal com a manchete: “Peste gay”.
Sua foto?!
É, num jornal aqui do Rio. Eu fiquei chocada! Quis processar o jornal, mas naquela época a gente não botava pra quebrar, não, preferia ficar calada. Se fosse agora, eu estava rica. Dar esse nome, “peste gay”, e ainda com a minha foto!
Que ódio, né?
É. Mas na época era aquele ódio contido, a gente não falava nada. Hoje o que eu to gostando é que ninguém deixa passar nada. Isso eu gosto muito hoje, as pessoas não levam mais desaforo pra casa.
“Hoje o que eu to gostando é que ninguém deixa passar nada.
Isso eu gosto muito hoje,
as pessoas não levam mais desaforo pra casa”
E o que você diz sobre trabalhos pra travestis hoje? Porque nem todo mundo é artista…
Exatamente. Igual naquela época: aceitavam travestis como artistas, no máximo como cabeleireiro…
Eu comecei como maquiador. Mas mesmo assim, uma vez eu sofri um preconceitozinho, de uma pessoa até famosa, uma mãe de um famoso que não queria fazer a sobrancelha comigo porque eu era muito afeminado. Depois, quando ela viu que todo mundo fazia comigo – às vezes eu consertava sobrancelhas horrorosas –, viu que não tinha jeito e veio fazer também [risos].
Você nunca ficou no armário?
Eu, não! Desde cedo, quando eu vi que era isso que eu queria, não estava nem aí se iam gostar ou não. Respeitando a família! Respeitando a minha mãe, não discutindo com ela, porque eu queria que ela entendesse meu ponto de vista, mas eu também tinha que entender o dela. Eu sou gay, ela não.
Você tem irmãos?
Tenho, uma irmã e um irmão. Eu sou a mais velha. Comigo eles são maravilhosos, sempre me aceitaram bem. No início claro que houve um quiproquozinho, meu irmão falando: “Ah, por isso que todo mundo chama ele de mariquinha, não aguento mais brigar na rua!”. Isso foi quando eu comecei a tirar a sobrancelha, já no quartel.
Quartel?! Você foi pro exército?
Maquiada! Fazia a sobrancelha e era cabo do exército.
Quanto tempo você ficou no exército?
Uns oito meses, acho. Eu fiz um curso pra cabo, porque tava faltando contingente, aí me puseram lá, por causa da minha escolaridade.
E dentro do quartel, como era?
Ah, dava pinta com a Pereira [um amigo do exército] pra lá e pra cá. Foi aí que eu me descobri, na verdade. Quer dizer, eu já era assim, mas tudo escondido. Ficava pondo o batom da minha mãe, gostava de calçar os sapatos dela, botar toalha na cabeça pra fingir que era cabelo. Muito mariquinha, muito mulherzinha, pintosa! Passava na rua e todo mundo já sabia, era uma mancha. Aí, quando eu fiz 16 anos, tentei bancar o homem. Era pior. Levava pedrada e tudo. As pedras que levei nesse Irajá, ui! Vinha uma, vinham duas, aí tinha que sair correndo, porque vinha uma chuva de pedra atrás. “Viado! Safado! Sem-vergonha!”
E depois que você começou a se travestir…
Parou! Me vesti de mulher e acabou tudo. Chamava atenção quando estava de homem. De mulher, não.
E no exército, como foi?
Eu não ia servir, porque era muito afeminadinho. O tenente, que fazia a seleção, olhou pra minha cara e botou minha ficha de lado, na pilha das que iam sobrar. Aí o sargento me viu… Foi lá e botou o papel [na pilha] dos que iam servir.
Gostou de você.
É. E eu fui servir justamente onde? Na companhia dele. Ele manipulou tudinho. Fui parar na mão dele. Foi a primeira relação sexual que eu tive. Aí eu falei: ah, é?! [Risos] É disso que eu gosto. A mulher saiu pra fora! Eu tinha um outro amigo, o Pereira, que também era pintosa, uma bunda enorme, fantástica [risos]! E ela já era mais sambada do que eu – ainda não tinha tido relações sexuais, mas já era mais do que eu. A gente ficou muito amigo, era Pereira pra cá e Claudionor pra lá. Todo mundo sabia.
Eu tive caso com o sargento, e só com ele. A outra, não, Pereira era uma louca, dava pro quartel inteiro [risos]. Aí eu comecei a tirar a sobrancelha de pouquinho, quando fui ver estava com a sobrancelha mais fina do que esta aqui [risos]. Tinha que fazer a lápis.
E teve uma história muito interessante. Todo mundo já sabia, até o quartel dos outros já sabia o nosso nome. Uma vez a gente passou por uma turma de PQD, paraquedistas, e eles gritaram: “Cadê o Pereira? Cadê o Claudionor?” [risos]. Nem sabiam quem era a gente, eram de outro quartel. E o sargento falava: “Pelo amor de deus, parem de dar pinta, você vai acabar sendo expulso do quartel”. E eu: “Ah, meu cu!” [risos].
Aí, um dia, o tenente coronel comandante do regimento apareceu! Ele reuniu, veio com aquele vozeirão que nem precisava de microfone, o homem com quase 1,90 metro de altura: “Antes de dar o fora de forma, eu quero explicar uma coisa! Eu sei que na primeira e na segunda companhia existem quatro VIADOS! Os da segunda, eu já sei, agora os da primeira eu vou descobrir quem são!”. Era eu e o Pereira. Aí, o sargento ficou botando medo na gente: “Tá vendo? Eu não falei? Ficam dando pinta, agora vão ser expulsos do quartel!”.
Na hora do rancho, que era a hora de comer, eu cheguei no Pereira e falei: “Hoje nós não vamos no rancho, não”. “Que é que vamos fazer?” “Vamos no escritório do tenente coronel.” “Tá louca, bicha?! Que nós vamos fazer lá?” “Ué, dizer que nós somos os viados da primeira companhia! Você acha que ele não sabe?”
Fomos lá falar com o homem. Ele estava na mesa de escritório dele, escrevendo, de cabeça baixa, aquele machão. Aí eu [faz uma continência]: “Soldado 12-38 da primeira companhia Claudionor blá-blá-blá”, e o Pereira: “Soldado 12-45 blá-blá-blá”. Em posição de sentido e sei lá o quê. Ele nem olhou pra cara da gente: “Tá, vocês querem o quê?”. E eu falei: “É que nós somos os viados da primeira companhia que o senhor mencionou na hora da forma de manhã” [risos]. Já tinha o texto todo na ponta da língua.
Aí ele olhou por cima dos óculos: “VOCÊS SÃO O QUÊ?!”. Eu repeti o texto: “Os viados da primeira companhia…” [risos], direitinho, não esqueci uma palavra, e em posição de sentido. Aí ele se levantou, veio por detrás da mesa, deu a volta, passou por detrás da gente, olhou… e falou [engrossa a voz]: “Parabéns! É isso que eu quero. Muito bem! Vem cá, gente! Tá vendo?! Isto é que é ser homem! Eles vieram aqui na minha frente e disseram: ‘Nós somos os viados da primeira companhia etc.’. Tem que ser assim! Tem que enfrentar! Adorei! Senta aí, vamos tomar um café” [risos]. Aí já foi perguntando: “Vocês fazem o quê?”. Um falou: “Ah, eu comecei a datilografar…”. “Então já vai ficar aqui no meu escritório, que eu to precisando datilografar algumas coisas!” E eu e o Pereira já ficamos de secretárias dele [risos].
Mas é claro! Eu já tinha visto o cozinheiro, que era cabo também. Uma pintosa de marca maior! E mandava em tudo, era quem fazia a comida dos mais graduados. Fazia o que queria! Por que eu ia ficar com medo? Se tivesse que expulsar, expulsava a bicha. Então resolvi falar, acabei com a farra. Porque, quanto mais você se esconde, é pior! Nisso a Rogéria tá certa. Nunca sofri bullying, eu que fazia bullying com os outros! Se alguém vinha xingar de mariquinha, sei lá o que, eu pegava a primeira coisa que tinha na frente e pá!
E você serviu o quartel até o fim?
Até o fim. Isso foi lá pro quinto mês. E sempre ganhei prêmio, melhor praça da parada, minhas roupas todas engomadinhas, passava pó de arroz pra tirar o brilho, manteiga de cacau na boca, um escândalo [risos]! Eu tinha uma foto que me roubaram: eu de cabo do exército, em posição de sentido… E com a sobrancelha feita!