Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Primavera nos dentes

Quarenta anos depois do golpe militar comandado por Pinochet, o silêncio em torno da tortura sexual na ditadura chilena. Por Victor Farinelli

Quando os agentes da Dina (Departamento Nacional de Informação, órgão de repressão da ditadura chilena) expropriaram o restaurante de beira de estrada Paraíso de Villa Grimaldi e o transformaram em campo de concentração, tiveram que reformar quase todo o local para adequá-lo ao que pretendiam fazer por ali.

 

Apenas um lugar do terreno não foi modificado. Um grande e belo jardim de rosas vermelhas e brancas, as quais circundavam um pequeno chafariz. E não foi por acaso que o local, chamado de La Rosaleda pelos militares, foi mantido. “Os estupradores gostam de falar, para exercer ainda mais humilhação sobre as vítimas, e uma das coisas que os estupradores de Villa Grimaldi gostavam de dizer era: ‘Escolhemos este lugar especialmente para te trazer aqui’”, relata Lelia Pérez Valdés, que trabalha como guia no Memorial Villa Grimaldi, centro de memória no qual foi transformado o antigo centro de tortura.

 

Lelia trabalha voluntariamente em Villa Grimaldi. Sua missão é descrever para os visitantes aquilo que ela e milhares de outras pessoas sofreram. Chegou a Villa Grimaldi aos 17 anos, e lá permaneceu por três meses. Sofreu os mais bárbaros tipos de tortura física e psicológica, e diz que a violência sexual era a mais frequente de todas, quase diária.

 

“Creio que nenhuma mulher que passou por Villa Grimaldi se livrou dos estupros. Lembro que eles entravam nos calabouços e brincavam entre eles: ‘Essa daqui ainda não pegamos, essa outra sim. Vamos pegar a que ainda está virgem’. Eles consideravam ‘virgens’ as que ainda não tinham sido violentadas”, relata Lelia.

 

Havia mulheres que chegavam grávidas aos campos de concentração. No Chile, essas desaparecidas são chamadas de grávidas mariposas, e Lelia foi uma delas – uma das poucas que sobreviveram. Mas os estupros também resultavam em casos de gravidez entre as prisioneiras: “Se uma mulher chegava grávida, era espancada até perder o bebê. Diziam que era ‘para não parir um comunista’. Se você engravidava do torturador era pior, isso poderia determinar a execução”, lembra ela.

 

A vida de Lelia Pérez Valdés foi marcada definitivamente pela tortura e, segundo ela, sobretudo pela tortura sexual: “Alguns consideram esse um tipo a mais de tortura, ou até um tipo menor. Eu acho que é o pior que existe. É impossível ver o sexo como algo belo ou prazeroso depois de viver certas coisas, mesmo que você tenha o parceiro mais carinhoso do mundo”.

 

As rosas de Villa Grimaldi continuam florescendo. O local, que para os militares era La Rosaleda, hoje se chama El Jardín de las Rosas e foi transformado em memorial das mulheres vítimas da ditadura, com pequenas placas de madeira surgidas no meio das rosas, com o nome de cada uma delas. Uma das homenageadas é a brasileira Jane Vanini, assassinada pela Dina em 1974.

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Crime ignorado

 

Desde a redemocratização, em 1990, muito se tem falado sobre as violações aos direitos humanos no Chile durante a ditadura. Duas comissões da verdade foram criadas desde então, a Comissão Rettig (1991) e a Comissão Valech (2003), mas ambas omitiram os casos de tortura e de violência sexual em seus relatórios finais, centrados nos casos de vítimas fatais, entre executados e desaparecidos.

 

A falta de visibilidade dos crimes de abuso sexual durante a ditadura tem sido combatida mais recentemente por algumas organizações de defesa dos direitos da mulher, mas nem sempre com apoio de outros organismos de direitos humanos. Para a socióloga e cientista política Danae Mlynarz Puig, “falta uma consciência de que a violência sexual também é uma violência política, e das piores, porque é baseada na degradação da mulher e da condição feminina. Eles também estupraram homens, com o intuito de humilhar prisioneiros, mas com as mulheres era muito mais frequente e elaborado, buscavam alcançar os níveis mais baixos de degradação, com uma carga de desprezo pela condição feminina”.

 

A opinião de Mlynarz é apoiada por Lelia: “Para os militares, você ser mulher e estar participando de política já era motivo de detenção, e muitas foram detidas simplesmente por ser mãe ou esposa de algum militante político. Diziam: ‘Se você deixa que seu filho ou marido seja de esquerda é porque não é uma boa mãe ou boa esposa, então merece ser puta’”.

 

Um dos casos de “detenção por ser mãe e esposa” de militante é o de Ángela Jeria, esposa do general Alberto Bachelet e mãe da ex-presidenta chilena Michelle Bachelet. Alberto foi um dos militares que tentou resistir ao golpe, e foi morto sob tortura, em 1974. Michelle era militante socialista e de grupos políticos universitários.

 

Aquela que seria a primeira mulher sul-americana eleita presidenta do seu país (em 2005) foi presa junto com a mãe, em 1976. Ambas passaram por Villa Grimaldi. Lelia evita comentar a possibilidade de elas terem sofrido violência sexual: “Já é difícil para uma mulher falar sobre esse tipo de experiência sofrida, e é ainda mais quando tem esse tipo de conotação política”.

 

Segundo dados da Corporação Humanas, especializada em temas de gênero, cerca de 3.400 mulheres vítimas dos serviços de repressão chilenos dizem ter sofrido algum tipo de violência sexual, mas somente 316 assumem terem sido estupradas. “Provavelmente foram muitas mais”, acredita Lelia. ACorporação Humanas, assim como Mlynarz, defende a importância de tipificar a violência sexual como “delito de lesa humanidade”.

 

Em um dos eventos de celebração dos 40 anos do golpe chileno, Michelle Bachelet visitou o Memorial de Villa Grimaldi – segundo ela, “na condição de sobrevivente”. Levou cravos vermelhos, os depositou no memorial das vítimas, e foi flagrada chorando em alguns momentos.

 

Crime organizado

 

Os estudos a respeito dos direitos humanos no Chile, segundo Lelia, muitas vezes ignoram o grau de premeditação das práticas sexuais de tortura para justificar o pouco aprofundamento sobre o tema. “Era muito mais frequente do que se imagina, e com um nível de perversidade que demonstrava que eram coisas planejadas.”

 

Entre as evidências dessa premeditação está o fato de que os centros de tortura mais importantes do Chile tinham um local reservado para as violações, que tinham até horário marcado para acontecer, segundo Lelia e outras vítimas.

 

Um dos eventos realizados pelas organizações de direitos humanos nesse mês de setembro foi dedicado especialmente à violência contra as mulheres durante a ditadura.

 

O seminário Violência Sexual no Passado e no Presente foi organizado pelo Memorial Villa Grimaldi e pela Corporação Humanas – esta última, dedicada a promover a igualdade de gênero no Chile. A socióloga Danae Mlynarz Puig foi uma das expositoras do evento. “Os casos de violência sexual ainda são visíveis no procedimento policial. Você vê nas marchas estudantis casos de abusos de conotação sexual nos controles de detenção. Não são mais sistemáticos, como na ditadura, mas são um resquício daquele passado que não foi reparado como deveria”, comenta.

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Victor Farinelli é correspondente do Opera Mundi no Chile e colabora eventualmente com Revista Fórum, Carta Capital, Blog Maria Fro e Geni.

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