Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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FARÓIS ACESOS | Ela nasceu assim

A lista com os nomes daquelas que são apedrejadas cotidianamente é tão imensa quanto a minha indignação. Por Neusa Sueli

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, diria a célebre feminista francesa Simone de Beauvoir, em seu livro O segundo sexo (1949). Mulher, assim, nunca se é; mulher se vai sendo, (se) vai fazendo, (se) vai construindo. Ora com pedras, ora com flores, ora com sombras, ora com cores. São tantos e tão variados os materiais, que seria inútil elencá-los aqui. Todos, contudo, podemos seguir sendo mulheres, porque muito mais que um sexo (segundo, terceiro), uma mulher é um ser. Uma mulher é um sendo.

 revista geni cecilia silveira NEUSA SUELI GABRIELA MONELLI

No dia 9 de setembro de 2013, Gabriela Monelli deixou de ser. Essa jovem trans, natural de Porto Ferreira (uma cidade do interior de São Paulo), aos 21 anos pôs um prematuro ponto final às suas promissoras reticências.

Ela era, como nós, uma dessas muitas Genis – madalenas, vadias, “perdidas”. Prostituía-se – a contragosto – desde a adolescência e, assim como acontece com algumas (algumas muitas), o canteiro das experiências com as quais ela ia forjando sua própria vereda reservava tijolos moldados com o barro do sofrimento e as lágrimas do horror: “Cabisbaixa voltei para casa limpando as marcas deixadas em meu corpo e as lágrimas que ainda caiam do meu rosto”, disse ela em seu blogue, ao relatar seu primeiro programa.

 

Gabriela não queria desistir: “Apesar de tudo eu decidi meu destino. Não iria desistir, não antes de conseguir uma boa grana e ter oportunidades melhores”. Ela fazia curso técnico de farmácia e sonhava, talvez, em produzir elixires que extirpariam as mazelas alheias (a vida tem dessas estranhas ironias). A maior de todas elas, porém – a desumanidade – dificilmente conseguiria curar.

 

O índice de transexuais que se suicidam por não conseguirem aguentar a pressão da sociedade e o preconceito é assustador: para se ter uma ideia, nos Estados Unidos, a taxa de suicídio entre transgêneros é 26 vezes maior do que no restante da população.

 

Meu grande desafio nesta vida até agora tem sido transformar um grito imenso (que fica preso em minha garganta a cada fato escabroso com que me deparo) em palavras, que parecem ser sempre insuficientes para dizer o meu horror, e jamais revelam o essencial do que eu gostaria de dizer. Lidar com essa impossibilidade me impele, na maior parte das vezes, a permanecer num árduo silêncio – que eu rompo, simplesmente porque é o que me resta fazer.

 

Gabriela não suportou o peso do olhar alheio, dos risos, do escárnio, da família, e foi: transformou em pretérito perfeito o seu precioso gerúndio, e agora virou era – um longínquo, extenso e infinito imperfeito.

 

Foi assim com Gabriela, mas também (é assim todos os dias) com Patrícia, Alessandra, Pamela, Daniela, Fernanda… A lista com os nomes daquelas que são apedrejadas cotidianamente por ousarem admitir que não são, mas que querem seguir sendo, é tão imensa quanto a minha indignação.

 

As pessoas parecem se apegar tanto a essa terra firme que ora chamam “homem”, ora “mulher”, que qualquer mínima variação (diferença) as desestabiliza. Elas se esforçam tanto para permanecer e se mostrar estáveis (imóveis) nesses continentes que criaram para si, que ignoram totalmente que, para caminhar, é primordial saber oscilar, se desequilibrar. O que é uma caminhada senão a alternância infinita de passos – pé cá, pé lá –, um eterno desequilíbrio?

 

Que cada um queira permanecer parado, não me incomoda, já que a incapacidade de se mover nessa areia movediça que chamam de sexualidade humana é algo que se deve resolver consigo. Mas ninguém tem o direito de cimentar o terreno arenoso no qual o outro aprendeu a rodopiar.

 

E cá estamos nós, na Geni, tentando aprender a dançar, lutando contra a sedimentação de um terreno que é, desde sempre, poroso e instável.

 

Se ainda estivesse viva hoje, Simone de Beauvoir talvez mudasse sua célebre frase e diria: “Ninguém nasce humano: torna-se humano”. Falta noção à humanidade, mas falta, sobretudo, humanidade ao mundo.

 

***

Pronto: fiquei emotiva, borrei a maquiagem e me caguei todinha. Mas já passou, e eu voltei (AINDA MAIS NERVOSA) para sentar a mão na cara desse povo notionless.

 

Acredito que, mesmo com esses poucos textos que escrevi por aqui, vocês já tenham percebido isso: sou uma pessoa indignada. Fico tão aturdida com todas essas coisas ruins que somos forçadas a presenciar diariamente, que ficar calada, no meu caso, nem de longe é uma possibilidade.

 

Como a humanidade não tem noção 24 horas por dia e 7 dias por semana, a gente aqui na revista acabou achando melhor ter um veículo de comunicação mais just in time com vocês (a gente é superchique, falamos inglês e tudo) e, a partir deste mês, eu vou passar a ter um Tumblr, cujo endereço é este aqui: http://neusasueli.tumblr.com.

 

Vocês façam o favor de acessar esse treco, porque senão eu viro um arquivo.zip e me mando por e-mail só para enfiar a mão na cara de cada um! Grata.

revista geni cecilia silveira NEUSA SULEI ( PERSONAGEM)

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Ilustração: Cecilia Silveira.

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