Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

entrevista

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Um poema com muita pele

As armas e a poesia de Miriam Alves, escritora que há 30 anos produz literatura negra do Brasil para o mundo. Por Carolina Menegatti, Gui Mohallem e Marcos Visnadi

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No mês de outubro, aconteceu a tradicional Feira de Frankfurt, na Alemanha, grande evento do mercado editorial mundial. Como país homenageado, o Brasil enviou uma delegação de 70 escritorxs – a maioria, brancxs. O fato gerou muitas acusações de racismo, que foram rebatidas pela ministra da Cultura, Marta Suplicy: “O Brasil vive um momento de transformação e nas próximas gerações teremos número maior de negros participando. Hoje, infelizmente, não temos”.

 

“Vou fazer até o sinal pra Marta!”, diz Miriam Alves, punhos cerrados formando uma banana em direção à nossa câmera. Aos 61 anos de idade e 30 de carreira literária, podemos dizer com tranquilidade que Miriam é uma das principais escritoras brasileiras, traduzida na Alemanha, nos Estados Unidos, entre outros países. Nos anos 80, ela fez parte do Quilombhoje, coletivo de escritorxs de São Paulo que há 35 anos mantém os Cadernos Negros, publicação anual que é exemplo de resistência dentro de um sistema literário comercial que ainda hoje nega a existência de escritorxs negros no país.

 

Se você não conhece Miriam Alves, portanto, não é por acaso: “As editoras no Brasil são cinco famílias que detêm o monopólio. Você acha que nós optamos por fazer os nossos próprios livros porque a gente gosta de vender a nossa geladeira pra pagar a editora? Não! É porque o bloqueio editorial começa aqui. E, quando a Marta fala lá na ponta, o bloqueio começou aqui.”

 

Miriam escolheu dar a entrevista para a Geni na lanchonete Ponto Chic, no largo do Paissandu, tradicional ponto de encontro de pensadorxs e lutadorxs no centro de São Paulo. Enquanto um protesto do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto acontecia do lado de fora, conversamos sobre seu trabalho literário, sua militância no movimento negro e as mudanças no Brasil nas últimas décadas, principalmente quanto às relações raciais.

 

A fala de Miriam vai, volta e nunca se perde. Entre piadas e histórias de arrancar lágrimas, ela nos guia sempre com a força e a liberdade de quem materializou, em versão ampliada, as lutas diárias para ser mulher e negra em um país onde ser negrx – em suas palavras – requer uma dose de sarcasmo. Ela ri, provoca, corta e xinga logo o que lhe parece dúbio, como a necessidade de legitimação acadêmica da sua escrita, vinda daquelxs que ainda insistem em renomear o que se autobatizou.

 

A escrita de Miriam Alves é um canto de guerra, tão brava quanto ela mesma. Mas Miriam é muitas, escreve e vive em heterônimos. Entre um chope e outro, ela conta que Miriam Aparecida Alves é uma pacata e humilde mãe de santo que passa os dias conversando com suas plantinhas e cuidando de suas minhocas. De passagem, nos fala também de Zula Gíbi, seu heterônimo responsável pela maior parte da pouca literatura homoerótica que os Cadernos Negros já publicaram. Zula apareceu depois que Miriam sofreu uma ameaça de um leitor que, após conhecer um de seus contos lésbicos, queria bater nela. Por essas e outras, a autora sabe que a literatura, assim como a sociedade, não é um lugar pacífico: “Leitura se dá assim: o que eu coloquei falando com o que você tem aí dentro. Pode sair um tapa na minha cara. Ou, como já aconteceu, beijos à força”.

 

 

MA-montageComo foi quando a Zula Gíbi apareceu nos Cadernos Negros?

 

Eu achava muito interessante essa história. A Zula saiu em alguns Cadernos Negros, e os contos dela causaram celeumas, porque os Cadernos tocavam em erotismo, mas não em homoerotismo, nem de uma forma tão explícita como Zula Gíbi toca, em “New York” e outros contos. E a Esmeralda [Ribeiro], o Márcio [Barbosa] e a Sonia [Fátima da Conceição, então editorxs dos Cadernos Negros] nunca falaram nada. Só que começou a causar algum problema. A Esmeralda dizia: “Pô, fica todo mundo perguntando quem é Zula Gíbi”.

 

Aí um belo dia eu contei pra uma escritora amiga, ela contou pra um pesquisador, e esse pesquisador orientava teses. Daí foi um prato cheio. A amiga dizia que não tinha falado por maldade, e não falou mesmo. O pesquisador pra quem ela contou foi Eduardo de Assis Duarte, que fez aquela antologia com cem nomes de escritores negros [Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica, editora da UFMG, 2011]. Como tem muito escritor com pseudônimo, ele perguntava pra ela: “Quem é fulano? Quem é fulana?”. E ela deixou escapar: “É a Miriam”. Fiquei brava com ela… mas passou.

 

Quando foi isso?

 

Essa antologia levou dez anos pra sair. Então foi há uns 12 anos. Porque era quando o Eduardo ainda estava fazendo aquela pesquisa de ver quem é quem, se estava vivo, se estava morto…

 

Então foi lá pros anos 2000, mais ou menos?

 

Mais ou menos. E as referências que eles tinham eram nós, os escritores da ativa. Ele levantou uma lista de 500 e poucos nomes, saíram cem [na antologia]. E com a Zula Gíbi era engraçado, porque era um segredo. Todo mundo achava que eu achava que eles não sabiam que a Zula era eu. Ficou ao contrário: eles sabiam, mas não queriam dizer que sabiam que era eu [risos]. Então ela passou a ser uma figura muito interessante, eu brinquei muito com isso. Você chegar num congresso que tem as mesas LGBT, o povo falando sobre Zula Gíbi, e, saindo, eu dizia: “Zula Gíbi sou eu”, e o povo: “Filha da puta!” [risos]. A única coisa que eu pedia aos pesquisadores era: não me compare comigo mesma.

 

Com a Zula Gíbi?

 

É, não me compare comigo mesma, a escrita de Miriam Alves e a escrita de Zula Gíbi. São escritas distintas, não só pelo tema, pelo erotismo. São escritas distintas, eu sinto distintas.

 

Quando você começou como Zula Gíbi, você tinha uma proposta de começar outro tipo de escrita ou isso foi acontecendo?

 

Na verdade, eu sou uma pessoa provocadora na minha escrita. Quando as coisas estão muito certinhas, eu sempre acho que falta uma pimenta. Então o que aconteceu foi: eu tenho um grande amigo chamado Rick Santos, que tem um livro [A escrita de Adé, editora Xamã, 2002] com o Wilton Garcia, da USP, e os dois são da Abeh [Associação Brasileira de Estudos da Homocultura].

 

O Rick Santos, gay, militante nos Estados Unidos, me propôs um desafio: “Ai, Mirianzinha, é o seguinte, você diz que Cadernos Negros é a história do negro em poesia, em verso, é a interioridade… Não tem negro gay? Não tem negra lésbica? Não tem nada disso nos Cadernos Negros”. Ele também era provocador. Então eu disse que ia escrever um conto homoerótico – escrevi, aquele que quase apanhei – e a mulher seria ele.

 

Entre essas e outras, ele me fez outra provocação: me inscreveu em um congresso da Abeh, lá em Niterói. E eu falei que não escrevia sobre o tema, não sou pesquisadora, não sabia o que falar. Ele estava nos Estados Unidos, a gente se correspondia por carta. Ele dizia: “Miriam, eu briguei por você, os meninos não te conhecem”. Eu era a única mulher, e a única mulher negra nessa história. Ele me botou no fogo… Bom, eu também não sou de fugir da raia. Veio a passagem, pensei: “Vou fazer o que eu sei”. Não sou pesquisadora, por mais que o povo diga que eu escrevo ensaio. Então escrevi um diálogo com Zula Gíbi, eu falando com a Zula. Tem no livro do Rick, A escrita de Adé. E a Zula Gíbi colocava as questões do Rick, de que os Cadernos Negros não têm homoerotismo. Aí, naquele diálogo, descobrimos que tem – um poema de Marisa Tietra, entre outros.

 

Mas o que aconteceu com essas pessoas? A mesma coisa que aconteceu comigo, principalmente com as meninas – os meninos, não sei. Uma pressão sobre o tema. E a gente fica meio de saia justa, sabe? Ser pega pelada de perna aberta, no meio do Paissandu? A coisa fica meio ruim. Com o perdão da palavra, é uma curra literária.

 

Mas aconteceu com outras o mesmo que aconteceu com você? Porque você sofreu uma agressão…

 

É, uma agressão verbal, uma ameaça. Com elas foi um constrangimento. Porque não era só o homoerotismo, era o erotismo em si. A Marisa tem poesias lindas eróticas. Não sei se isso ainda acontece. Com a estrada que eu percorri, 30 anos depois, com 61 anos de idade, eu tenho o direito de mandar o povo à merda, coisa que já fiz. Mas quando você tem 30, escritora em um bando de homens… Há 30 anos atrás não imaginaria essas coisas que vocês vêm me entrevistar. Agora, você num grupo de escritores, homens, negros, batalhadores de uma causa, falando de homoerotismo…

 

Primeiro que literatura, para o movimento negro da época, era uma causa menor. “Enquanto a gente tá lutando pela causa, vocês tão fazendo poesia.” Então a gente já era menor na história. E, dentro disso, o erotismo. Tanto que, no nosso começo, nossas poesias eram poesias de combate. Não é que a gente não faz poesias eróticas e de amor, é que a gente não publica. E a Marisa publicava, publicou.

 

Eu fico sem graça de falar sobre essas outras escritoras, porque eu falo com elas, elas não estão no Brasil, não têm mais esses nomes, que eram nomes poéticos. A Marisa está em Londres. Com essa coisa do Facebook a gente acha todo mundo. “E aí, você tá escrevendo?” “Tô escrevendo, mas não tô publicando.” E não se conversa mais no assunto. Existe uma pressão, são poucas que não morrem na praia. Desse movimento todo, as que estão na ativa lá do começo somos eu e a Esmeralda. Nem todas falavam de erotismo ou homoerotismo. Já era difícil falar do que a gente chamava das questões específicas do ser mulher, aí entrar com o erotismo pela versão feminina é complicado, hein!

 

E comigo aconteceu esse probleminha [a agressão homofóbica]. Não digo o nome da pessoa, pois é meu amigo até hoje e descobri que o problema não era com o meu conto, era com a sexualidade dele. O problema é dele, não é meu. A gente, como escritor, não sabe o que abre no outro. Aí ele dizia assim: “O povo vai achar que você é [lésbica]! Eu sou apaixonado por você. Eu quero te comer!”. Você percebe? Aí você vai esticando o assunto, descobre que o cara escreveu uma coisa homoerótica aqui e ali… Como assistente social, fui percebendo que o caminho era outro. Não era o que ele estava me dizendo, que ele queria me bater, era uma questão de aceitação.

 

Mas eu não sou psicóloga, gente, sou escritora! Vai procurar tua turma, entendeu [risos]? Enquanto escritora, a gente mexe com o que está dentro das pessoas, você é a fala escarrada do silêncio, do ocultado. Mas não é o ocultado dentro das casas, é o ocultado dentro de você. Leitura se dá assim: o que eu coloquei falando com o que você tem aí dentro. Pode sair um tapa na minha cara. Ou, como já aconteceu, beijos à força. Você passando, a pessoa te dá um beijo e você não sabe por quê.

 

[Enquanto pedimos quatro chopes e dois baurus, Miriam lê no guarda-mesa o nome do escritor Ignacio de Loyola Brandão e comenta que participou com ele de uma mesa sobre literatura brasileira nos Estados Unidos.]

 

Isso é uma coisa curiosa: parece que sua recepção nos Estados Unidos é muito maior do que aqui. Aqui você estaria em uma mesa com o Ignacio de Loyola Brandão?

 

Jamais! Nunca cheguei perto, nem como tiete. Eu estava em uma mesa com ele e João Almino, chamada “Conference on Brazilian Writers and Their Translators” [em 16 de novembro de 2010, no Center for Translation Studies, School of Literatures of Illinois at Urbana-Champaign], na mesma categoria de escritores, falando com o mesmo púbico. Fomos no mesmo avião. E, no jantar de recepção, estávamos lá, dois escritores, eu escritora, a única negra. Sabe como eu me sinto nessas ocasiões? Um bichinho do zoológico.

 

Eles sabiam que a Miriam Alves ia, mas não tenho certeza se eles sabiam que a Miriam Alves era eu. Aí a professora responsável pelo evento faz aquele discurso, depois cada um dos convidados fala um pouquinho. Eu falei que, além de estar muito emocionada de estar ali, perante escritores que me dediquei a ler na minha juventude, eu entre meus ídolos da literatura, me sentia uma ilustre desconhecida.

 

Olha, gente, pra ser negro no Brasil a gente tem que ter um senso de… Eu não gosto da história do jogo de cintura, mas tem que ter uma ginga de capoeira, tem que ter um senso de humor cáustico, uma forma de se safar de situações. Principalmente quando as pessoas te olham pensando: “Não é próprio você estar aqui, o que você está fazendo numa mesa de literatura no meio de uns nomões, se a gente nunca te viu? Como é que você caiu de paraquedas nesta conversa?”. É que nos Estados Unidos eu sou conhecida, assim como os demais escritores, nos meios acadêmicos, e quem nos convida são organizações acadêmicas. Poucos são os que têm sucesso de venda com o público geral. Paulo Coelho é um deles, Jorge Amado é outro, mas a maioria é conhecida mesmo pelo público acadêmico.
 

Tem outra situação interessante: em 1995, estive na Áustria, juntamente com outros escritores negros, numa conferência. Marina Colasanti e João Ubaldo Ribeiro também faziam parte da comitiva e nós ficamos no mesmo hotel, fizemos parte da mesma atividade. Mas, quando João Ubaldo vai no [programa do] Jô, dá uma entrevista como se fosse o único convidado e tivesse ido sozinho.

 

No exterior, vocês estão na mesma categoria, a de escritores brasileiros.

 

Pois é, na mesma mesa. Naquela conferência com o Loyola Brandão, cada um de nós tinha o seu tradutor – líamos em português e o nosso tradutor traduzia, era uma faculdade de tradução. E começa com João Almino lendo o conto dele, um conto intimista, em que ele usa um pseudônimo feminino, quase um heterônimo. Um conto existencialista, mais na linha de Clarice Lispector. O cenário é a lareira, o gatinho, e a personagem faz quase um monólogo. O Loyola lê um texto muito interessante, acho que se chama “Memórias de um anônimo”, a história de um ser que faz de tudo pra ser famoso e não consegue. É muito engraçado, eu sou fã dele, e a plateia se debulhou na gargalhada. Ao ser lido em inglês, a plateia ria de novo – muitos dos presentes entendiam português.

 

Chega a minha vez de ler o meu conto, um continho curto chamado “Brincadeira”, com o meu tradutor, o Rick Santos. A história é de uma criança, de uma família negra com vários filhos. O caçula se dá bem na escola e os pais, que são operários, se esforçam para que ele seja o único intelectual da família. Não é a minha história, não é autobiográfico, tá? Todo mundo pergunta, mas não é. Eu uso o conceito de escrevivência da Conceição [Evaristo] para escrever a vivência dos outros. É que eu trabalhei muito tempo como assistente social em um hospital infantil, tenho um arsenal bom de histórias de vida.

 

O menino se chama Joãozinho, Zinho, os pais veem que ele tem esse feeling para o estudo e resolvem investir e compram todo o material escolar novo, no crediário, à prestação, e tem toda uma conversa de um pai falando com outro. O menino fica superfeliz porque vai ser a primeira vez na vida que ele vai usar material novo, ele sempre usa material antigo, riscado, sujo. No dia da aula, ele vai com o material todo lindo, maravilhoso, rindo. No caminho, encontra três meninos que fazem bullying com ele e dizem: “Ei, Mussum, tá feliz hoje? O que é, Mussum, ficou nervosinho? Não quer um mézinho para refrescar?”. Ele ignora e segue seu caminho. Moral da história: os meninos o cercam, derrubando-o. Livros e cadernos espalhados no chão da rua enlameada. “Zinho não mediu tamanho nem idade. Levantou-se. Uma força ancestral cortou-lhe por dentro. Trazia consigo a força de Ogum. Armou-se com pedaço de pau. Atingiu um deles na perna, derrubando-o. Continuou fazendo justiça. Empunha a lei. Batia. Batia Batia, ignorando os gritos vindos do chão. Os outros tentaram apaziguá-lo: ‘ei menino é brincadeira’. Inutilmente, tentavam segurá-lo. Zinho não parava. Batia. Batia. Batia. O rosto do garoto atingido inundou-se de sangue. O branco da pele e o vermelho misturando-se. Correndo na lama, o sangue tingia o material escolar novinho, melando o sonho de João, Raimundo e Josefa.” Além da dramaticidade da descrição, eu li com performance. Não sou só palestrante, sou performista. A plateia estava assim [faz expressões de uma pessoa alegre até chorar compulsivamente. Risos]. A segunda parte da piada é que meu tradutor também é dramático, ele batia na mesa: “Bateu! Bateu! Is dead[risos].

 

A plateia não era só de americanos, tinha brasileiro no meio, argentinos. Aí levanta um e faz a pergunta da minha vida, que não é uma pergunta, é quase um discurso. Fala em espanhol, depois traduz para o inglês e para o português: “É muito interessante estar nesta palestra, sabe por quê? Porque eu vejo nitidamente três Brasis, um Brasil que não se conversa”. O Brasil do João Almino é o Brasil da lareira, do gatinho. O do Loyola é cheio de picardia, mas é de uma classe média. No meu, o menino só queria estudar. E foi um auê, todo mundo começou a discutir.

 

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Como você ficou conhecida nos Estados Unidos?

 

São essas coincidências da vida. Um amigo meu, Paulo Colina, que já faleceu, foi pros Estados Unidos e, quando voltou pra cá, tinha que fazer a contrapartida: quando viesse alguma delegação de lá, ele tinha que apresentar alguns escritores.

 

Alguns não aceitaram o convite, como por exemplo o pessoal do Quilombhoje. Além disso, o Paulo tinha que apresentar também uma escritora, o que era do interesse de alguns professores que faziam parte da delegação. Na mesa, estávamos eu, Oswaldo de Camargo, Abelardo Rodrigues e Paulo Colina. Eu tinha uma fala diferente das falas deles. Ao me apresentar, o Paulo disse: “Temos uma mulher para enfeitar a mesa”. Fiquei puta da vida, comecei a colocar livros sobre a mesa dizendo: “Eu sou mulher escritora! Eu enfeito a mesa com livros, palavras e poemas”. Pá! Até hoje quando me lembro fico brava. Não vem pra cima de mim com frases machistas!

 

Tinha uma negra na plateia, uma das maiores pesquisadoras americanas de literatura negra, Carol Boyced David. Uma negra lindíssima, desse tamanho, de uma dignidade, uma rainha! Ela entra e eu penso: “Meu deus do céu, de onde saiu essa deusa?”. Ela era imensa. Eu ali, brigando com as minhas sombras, e era a época em que eu estava organizando uma antologia de mulheres negras escritoras, que foi publicada só nos Estados Unidos, faz mais de 12 anos que está sendo estudada nas academias. E nenhuma editora querendo, nem escritores querendo, nem as minhas amigas escritoras negras achavam que daria certo. Quando uma das mulheres pesquisadoras perguntou se existiam escritoras negras no Brasil, alguns diziam: “Não, e [as que tem] não são muito boas”. Aí eu coloquei a coletânea inédita em cima da mesa. Pá! Só ali eu tinha 50. Se são boas ou não, não cabe a mim analisar nem canonizar ninguém.

 

A Carol Boyced David ficou muito impressionada com a minha putice na mesa [risos]. Só que tinha um problema: a Carol não falava português, eu não falava inglês. Ela mandou um recado dizendo que queria me entrevistar. Como? Ela não sabia falar, mas sabia ler português. Também sei ler inglês, não sei falar. Aí foi muito interessante, a gente apontando palavras que formavam frases pra gente conversar. E ela disse assim: “Eu vou te levar para os Estados Unidos”. Não era a primeira vez que um pesquisador americano aventava esse convite, coisa que já estava me deixando irritada. Eu respondi: “Vocês acham que todo brasileiro quer ir pro seu país. Eu não quero ir pro seu país. Eu quero ficar no meu, é no meu país que eu tenho que acontecer, que têm que me conhecer”.

 

Ela queria te levar para morar lá?

 

Não, para palestra, pesquisa. Mas não era a primeira pesquisadora, pesquisador que chegava dizendo que ia me levar para os Estados Unidos, sabe? Tô nem aí pra vocês, o sonho da América não é o meu sonho, não é mesmo! Eu sempre falei e sempre falo: eu quero que o Brasil saiba da minha literatura, dos meus colegas escritores. Essa coisa que aconteceu em Frankfurt. Vou fazer até o sinal pra Marta [Suplicy]. Tomou! Eu quero ser conhecida aqui, mas a gente é conhecida lá. E não é só na Alemanha, não.

 

Você acha que se fosse o Gilberto Gil, como ministro, seria diferente?

 

Eu conheci Gil pessoalmente, mas não era ministro ainda, aqui em São Paulo, quando ele estava lançando uma revista chamada Padê. Talvez, provavelmente. Vocês perceberam que diplomacia e política não são o meu forte. Uma meia palavra, meia dúzia, uma coisa que você pode resolver logo num “puta que o pariu”… A minha filha disse que estou falando muito palavrão [risos].

 

Mas voltando pra Carol Boyced David. Ela falou: “Ano que vem você vai”. E ela me deu a notícia, me disse: “Miriam, nos Estados Unidos você já é conhecida”. Agora, como aconteceu, não sei.

 

Os Cadernos Negros já eram conhecidos lá também, não?
 

Os Cadernos Negros saíam aqui e a gente mandava pras universidades de lá. Não sei se houve pinça, ia todo mundo que escrevia. Atualmente não sei como está, mas na época o [escritor paulista, um dos fundadores do Quilombhoje] Cuti mandava.

 

Dali a dois anos eu fui para um congresso de escritoras afro-americanas e caribenhas e fiz um trabalho performático. Já estava brava com outras coisas e levei essa braveza pra lá. Era pra fazer uma comunicação de 20 minutos, eu fiz um livro. Passei um mês escrevendo um livro, até hoje eu publico pedaços desse livro. Foi quando uma pesquisadora tentou dar nome à nossa literatura. Sabe aquela coisa de que, para legitimar, você tem que nomear, e ao nomear você descaracteriza? Eu sempre brinco, por exemplo: eu não te conheço, você não me conhece. Eu me apresento e digo: muito prazer, meu nome é Miriam Alves. E você responde: tudo bem, daqui pra frente eu vou te chamar de Josefa. Porque você me conhece, agora você mudou meu nome! Em princípio, os pesquisadores estavam fazendo isso, a gente chamava a nossa literatura de literatura negra e os pesquisadores diziam que literatura negra não existia, que literatura não tem cor, então vamos chamar de negritude, negridade… Não, gente, eu estou dizendo que eu faço uma literatura negra!

 

Eu tinha brigado com essa pesquisadora em um centro cultural por causa disso. Ela chegou pra mim e disse que eu nunca seria nada sem alguém legitimar, e o acadêmico é que legitimaria. Eu falei: “Vai pra lá, sinhazinha! Eu não preciso de você pra legitimar, minha palavra legitima!”. Passei dez anos brigando com essa mulher. Nesse primeiro congresso passei a noite inteira escrevendo e desenhando, porque eu tava puta da vida com ela, então peguei [o filósofo francês Félix] Guattari, fiz um emaranhado de coisas e levei pro congresso que a Carol Boyced David me mandou.

 

Estávamos num encontro de escritoras mulheres negras e caribenhas, tinha várias pesquisadoras, também negras caribenhas, uma levanta e fala assim: “Eu nunca achei que tivesse negro no Brasil que escrevesse, porque quem vem falar do Brasil aqui são sempre as mulheres brancas, e quando a gente pergunta elas dizem que não existe”. Foi no que a Marta [Suplicy] caiu. E aí eu, Leda [Maria Martins] e Lia [Vieira] dizendo: “Como não existe?”. Não sei se vocês acompanharam, [mês passado] peguei no baú as coisas que fiz e taquei na internet, tudo que tá traduzido, mandando link pra Marta, pro ministério, pra quem quiser. Ó, para de burrice! Diz que não quer levar [os escritores negros pra Frankfurt] que fica melhor. Dizer que não existe… Tá difícil, viu? Com a Seppir [Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, do governo federal] do lado? É só perguntar: existe?

 

Eu realmente comecei a ter maior visibilidade, enquanto pessoa, a partir desse encontro de caribenhas. Depois encontrei uma professora brasileira e fizemos uma antologia, chamada Afro-Brazilian women’s short fiction [publicada em Londres em 2005]. Outras escritoras também já foram fazer palestras e dar aulas no Estados Unidos, como Lia Vieira, Conceição Evaristo, entre outros e outras.

 

Mas, dessa coisa de ser desconhecida, tem uma história bem mais divertida. Ninguém nos conhece como escritoras, não existem escritores negros no Brasil, né? Aí a editora trouxe a Toni Morrison [escritora negra estadunidense que ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1993]. Quando vem a negra estrangeira, a Toni Morrison, ela vai aos jornais, vai aos coquetéis e vai não sei mais aonde, até que chega uma santa hora em que Toni Morrison pergunta se não tem negro escritor no Brasil. O que acontece? A editora ligou para a [atriz e militante] Thereza Santos, que, dentro da Secretaria da Cultura de São Paulo, realizou três perfis de literatura negra, três encontros internacionais grandes. E, a pedido da Toni Morrison, a editora entrou em contato com a gente. Tenho foto com ela e todo o grupo aqui no Piano Bar. Eu ali, tiete, não saía de perto dela. Falei pro meu cunhado: “Leva a câmera e não perde uma foto” [risos].

 

Estávamos num encontro de escritoras mulheres negras e caribenhas, tinha várias pesquisadoras, também negras caribenhas, uma levanta e fala assim: ‘Eu nunca achei que tivesse negro no Brasil que escrevesse, porque quem vem falar do Brasil aqui são sempre as mulheres brancas, e quando a gente pergunta elas dizem que não existe’. Foi no que a Marta [Suplicy] caiu”

 

Dizer que só daqui a umas gerações vai ter escritores negros, gente! Onde ficou o Machado de Assis, o Lino Guedes, sem contar os negros intelectuais que fizeram este país, como o André Rebouças? Onde ficaram?

 

Outra coisa que a Marta Suplicy falou é que o critério para levar escritores foi o sucesso comercial. Já que é uma feira comercial, só foram os escritores mais vendidos, os mais traduzidos.

 

É, é uma feira de negócios. Eu li, o critério é “escritores traduzidos”. Pecou, cara! Cadernos Negros foi traduzido, eu tava com um livro da Geni Guimarães que acabou de ser traduzido pela Africa World Press, a editora me mandou, saiu em julho! A cor da ternura foi Prêmio Jabuti, gente, vendeu pra cacete!

 
A verdade é a seguinte: as editoras no Brasil são cinco famílias que mantêm e detêm esse monopólio e dizem quem vai, quem não vai; quem é e quem não é. Você acha que nós, enquanto escritores, optamos por fazer os nossos próprios livros porque a gente gosta de vender a nossa geladeira pra pagar a editora? Não! É porque o bloqueio editorial começa aqui. E, quando a Marta fala lá na ponta, o bloqueio começou aqui. Só que nós furamos esse bloqueio, com Cadernos Negros e outras publicações. Quebramos, e quebramos legal, a ponto de sermos conhecidos internacionalmente.
 

Tem um poema de Celinha que fala assim: quando você pega Oropa – é brincadeira mesmo – Oceania e Américas, você é conhecido mundialmente. Somos conhecidos na Espanha, na França, na Áustria, somos conhecidos na Alemanha, nos Estados Unidos… Tem muita coisa publicada lá fora que eu não tenho, tem até coisa usurpada. As editoras fazem esse bloqueio, a gente fura esse bloqueio, eu brinco, na nossa própria custa e risco. Porque existe uma demanda pelos nossos textos, tanto aqui dentro quanto lá fora. Vide os saraus que se proliferam na periferia. Estão fechando os olhos à toa. Quer dizer, à toa, não. Literatura, cultura é poder. Você deixa as pessoas fora e diz que é preciso colocar na escola para aprender a escrever, que precisa do Bolsa Família pra primeiro comer, pra depois aprender a ler e escrever. Aí olha uma Miriam Alves e diz: “Como você existe, desgraçada? Eu não dei comida pra você, não autorizei a sua existência. Você não tá na linha de vulnerabilidade? Como?”.

 

Pra você ter essa vivência, tem que ter um cinismo, um sarcasmo. Por exemplo, eu moro num prédio de apartamentos que, quando eu comprei, a coisa estava começando. Sabe aqueles bairros periféricos que têm o primeiro prédio de apartamentos, demorou anos pra vender, pois tinha que assorear os rios. Moro lá há 27 anos. Com essa história do metrô, a vizinhança está mudando, o apartamento está supervalorizado, talvez até eu tenha que mudar de lá. Está vindo um pessoal mais classe média para C, porque a gente era D. Um dia, eu estava entrando no meu prédio, um novo vizinho segura a porta e chama o porteiro porque eu ia assaltá-lo… É assim: “O que você está fazendo aí? O que justifica a sua existência aqui, por que você não está ali?”.

 

Eu olhei aqui [aponta para o guarda-mesa], “ah, eu conheci o Loyola!”. Sabe o que parece? Que eu sou louca. “Interna! Porque nada justifica ela estar com o Loyola Brandão.”

 

Mais uma parte desse “nada justifica”: eu, sabedora de que as escolas públicas estão muito ruins, sempre mantive minha filha na escola particular. Eu comecei a série de viagens, a minha filha chegou lá animada, feliz, orgulhosa, né? Chegava na escola e dizia que a mãe dela era escritora e tinha ido viajar e dar palestra. Eu estava nos Estados Unidos e deixei ela com a minha irmã. Voltei de uma série de palestras e a escola me chamou porque a minha filha estava desenvolvendo uma personalidade mitomaníaca! Mania de mentira, de inventar, mitomania! Aí eu cheguei e falei: “Como assim? A senhora nem me perguntou o que eu faço, está dizendo que a minha filha está mentindo?”. Peguei um monte de livro e levei lá. “Minha filha não é mitomaníaca. Eu sou escritora, o pai dela é escritor, dá palestra.” Gente, minha filha nunca mais teve orgulho de falar que eu era escritora. Eu falava para ela: “Filha, e se eu e seu pai bebêssemos, fumássemos e batêssemos em você?”. “Era uma história que os outros aceitavam, mãe.” Sacou?

 

[Silêncio da Geni.]

 

Me dá uma revolta, uma vontade de choro de revolta, não consigo nem te explicar…

 

Essa é cara que eu vejo nas plateias americanas. Foi essa cara que eu vi quando terminei de falar [o conto] “Brincadeira”. E, se você assistir a uma palestra com a Conceição Evaristo, quando termina está todo mundo com essa cara. E a gente não faz pra dar uma de coitadinho, não. É que bate na consciência essa sociedade brasileira que tem que ser desmontada na base da mentalidade. Copa é bom? É bom. Bolsa Família é bom? É bom. Mas, assim, uma ministra da Cultura falar o que falou… e nem veio se retratar! Ela disse que eu não existo, e eu estava sendo lançada lá! Sabiam que nós estávamos sendo lançados lá? O nosso livro de 1988 que saiu em alemão [a antologia Schwarze Poesie, organizada por Moema Parente Augel] estourou em três meses, houve uma segunda edição e agora eles reeditaram em e-book por causa da procura, nessa feira. A editora estava lançando 16 autores negros. Com esse contexto de literatura negra, a mulher diz que a gente não existe. Aí fiquei puta. E vai dizer que não é comercial? A gente vendeu, em três meses, 4 mil livros.

 

Essa negação da sua filha me pega mais, pois é uma negação cotidiana, né? Não é apenas no momento que a ministra da Cultura diz que não existe.

 

Tem um livro americano antigo, que fala das escolas americanas, se chama Morte em tenra idade [de Jonathan Kozol, 1983]. Ele conta exatamente o processo de apagamento da dignidade dentro das escolas de lá. E eu fiz a analogia, que o apagamento aqui é nas escolas e é no cotidiano. Eu tive um trabalho de fazer com que a minha filha não se envergonhasse de ter pais escritores – isso é louco! – que não fossem bêbados e drogados. Porque ser bêbado e drogado, para negros, é uma história contável.

 

Minha filha ia nas palestras comigo, tem cultura cognitiva muito grande, e teve problema na escola, problema de posicionamento. Minha filha não faz conta, ela calcula. “Você copiou!” Ela não faz aquelas contas com x, ela bate o olho e dá o resultado. Isso sempre, já com cinco anos de idade. Como ela ia comigo lá nas coisas, desenvolveu um lado lá que eu não sei. Ela se reprovou, ela não mostrava que tinha conhecimento. Você tem todos esses problemas, e não é só com a minha filha.

 

Eu tive um trabalho de fazer com que a minha filha não se envergonhasse de ter pais escritores – isso é louco! – que não fossem bêbados e drogados. Porque ser bêbado e drogado, para negros, é uma história contável”

 

Eu trabalhei num hospital infantil. Esse conto “Brincadeira” eu tirei da história de um menino, que até hoje eu choro por ele. O menino era muito inteligente, gostava muito de ler, escrevia e gostava de ficar contemplando. E a mãe comprava livros pra ele ler. Um dia ele escreveu uma redação e a professora duvidou que era dele. O que aconteceu? Ele chegava da escola e vomitava. Como trabalhei no hospital, e na época a gente fazia terapia escolar, esse caso acabou vindo pra equipe. Aí a gente fazia a discussão de caso e eu dizia que aquele menino estava passando por isso porque era negro. E comecei a discutir que ele era negro e a professora duvidava que ele era capaz. Aí perguntavam: “Só porque você é do movimento negro?”. Minha chefe me deu esse livro e disse: “Você tinha razão”, essa morte em tenra idade é por aí.

 

Levavam a criança [pra terapia] pra enquadrar nesse processo de morte cerebral, que é quando você se autodesprestigia, se autodesvaloriza. Pois todo mundo quer ser aceito. E a gente é “aceito”, entre aspas, se pegar o que tá aí. Você tem um lugar pra ser, e esse lugar pra ser é um lugar nenhum. Porque o lugar que eu quero ser é ser escritora, o lugar que eu quero ser é esse. Mas esse lugar não é pra você, não existe.

 

[Passa a manifestação do MTST. Miriam sai para fumar. Pedimos outro chope e uma porção de batatas fritas. Quando ela volta, anuncia que precisa voltar pra casa, para cuidar de suas plantas. Vamos objetivar isto aqui!]

 

Qual seu signo?

 

Escorpião. Só que os meus conhecimentos esotéricos estão ligados mais à minha questão cultural, social, cognitiva etc. e tal. Tenho uns poemas que dizem que eu escrevo com duas espadas, porque sou filha de dois guerreiros, Iansã e Ogum, duas espadas guerreiras que se cruzam. Eu não descarto o zodíaco, mas depois de algum tempo comecei a perceber nos meus poemas, nos poemas de Miriam Alves, questões bélicas. As palavras que eu uso são sempre bélicas, minhas metáforas são sempre espadas, facas, balas…

 

Por exemplo, eu tenho um poema curtinho, que adoro, que saiu num papo uma vez em Minas. Alguém fez uma pergunta sobre essa coisa do pesquisador literário: “Eu não posso falar nada sobre você, então?!”. “Não, você pode falar o que quiser sobre mim, só que tem uma diferença:

 

Eu falo
A minha fala
É um falo
que atravessa
as suas certezas culturais.”

 

 

Você pode falar o que quiser, mas eu falo! Esse é um poema bélico, e o próprio falo aí é uma arma de poder. Assumida pela fala, que sou eu, a mulher [risos].

 

Como você começou a escrever?

 

Quando eu tinha 5 anos, fui alfabetizada [risos]. Tenho meus caderninhos desde os 12 anos de idade. Tem aquela coisa que eu falei, do massacre pelo qual todas as crianças passam, mas as crianças negras passam de uma forma diferenciada, porque existe um caminho social que elas têm que seguir, diferentíssimo dos seus universos cognitivos. Então com 12 anos eu comecei a escrever aqueles diarinhos que diziam “essa professora é uma filha da puta” ou “olhei pro menino e ele não olhou pra mim, me chamou disso, daquilo”.

 

Aí meu irmão mais velho pegou meu caderninho. E aquela coisa que era só pra mim foi ridicularizada no almoço familiar. Eu fiquei puta da vida, quis avançar nele e fiquei de castigo. Levei uma repreenda por ser agressiva com um menino, porque com menino você não pode! Aí eu comecei a escrever poesia, pensei: “Vou escrever poema, porque poema ninguém entende” [risos]. Eu achava que poema era aquilo, que precisava do professor pra decodificar, e, se eu não dissesse o que tinha escrito, ninguém ia entender.

 

Na faculdade, comecei a encher o saco dos amigos e das amigas. Ia pro bar, puxava o caderninho e declamava: blá-blá-blá. No intervalo das aulas, sentava na mesa e: blá-blá-blá. “Lá vai ela pegar o caderninho…” As minhas amigas mais próximas diziam: “Eu não entendo nada do que você escreve!”. Eu pensava: “Consegui!” [risos]. As negras diziam isso. Mas as brancas entendiam muito bem. Elas diziam: “Isso não é poema! Você é muito complexada! Seu poema tem muita pele, tem muita dor”. As brancas entendiam.

 

Aí eu não sabia o que fazer com os meus poemas e fui procurar os grupos de poetas que me sugeriram, pra ver se alguém me publicava. Os poetas, normalmente brancos, repetiam o que as brancas diziam: “Não é poema, tem muita pele, tem muita dor”. Eu não sabia! A partir dessa perspectiva é que comecei a ler os meus poemas.

 

Nessa época, em 1974, 1978, o movimento negro estava a todo vapor, e um professor meu, branco, falou: “Por que você não vai no movimento negro?”. “Eu, não! Vou lá pro movimento negro levar porrada?”

 

Essa era a ideia que você tinha?

 

Não, ouve esta parte! Eu dizia: “Não quero saber nada de preto, não!”. Eu sendo negra. Na minha turma tinha 16 mulheres negras, e a gente não queria saber do movimento negro. Até que um dia, na faculdade, conheci uma militante que organizava os bailes do Burro Negro, que era um baile que faziam na Casa de Portugal, um clube no início da avenida Liberdade, com todos os negros que entravam pela primeira vez na faculdade, os calouros.

 

Foi a primeira vez que eu fui numa atividade assim, tinha todas as profissões ali – engenheiro, médico, um monte de assistente social, pedagogas, jornalistas… E ali eu conheci alguns militantes, estudantes de jornalismo negros, que depois a gente se encontrava aqui no viaduto do Chá. Aquilo ficava forrado de negros, que saíam das universidades, passavam ali e pegavam flyers, depois a gente via pra onde ia, qual baile, qual palestra. E foi num desses flyers que eu vi o lançamento do livro do Cuti, o Batuque de tocaia.

 

Aí fomos, eu e minhas amigas negras, e elas disseram: “Agora você leva o seu caderninho e vê se nos livra disso!”. Nesse dia eu não levei, porque estavam enchendo muito o meu saco. E foi a outra surpresa da minha vida: 100, 200 negros lendo poemas, numa coisa chamada roda de poemas. O Cuti tocava atabaque, dava uma pausa, o pessoal entrava e declamava. E poema com muita pele!!! Entendeu? Eu falei: é aqui que vou ficar. E fiquei.

 

Quer dizer, fiquei, saí, voltei, fui excomungada. Porque eu sou uma pessoa muito fácil, muito doce, muito diplomática… [Risos] Não falo palavrão, sempre usei os ensinamentos da mamãe, de que tem que convencer o homem sem gritar, porque ele é que manda…

 

Isso já era o Quilombhoje?

 

Já, mas não com essa organização que tem hoje. Era o segundo livro do Cuti, e ele é que fazia os Cadernos Negros. Eu saí nos Cadernos Negros número 5, e nessa tocada entramos eu, o Márcio, a Esmeralda… que são os que tocam hoje o Quilombhoje e os Cadernos Negros.

 

Como era o movimento negro político? Você chegou a participar?

 

O movimento negro é o MNU, Movimento Negro Unificado. Dentro dessa sigla, tinha todas as tendências, facções, associações. O MNU era mais político. Tem vídeo na internet, eles punham o carro de som, em 1978, e gritavam no megafone: “Nós, os negros, estamos aqui pra dizer…”. Muitos daqueles já morreram. Alguns foram meus namorados! Principalmente os que estavam no megafone [risos].

 

Tinha várias tendências no MNU, os religiosos, o grupo Somos, que era de homossexuais negros. E dentro disso tudo tinha nós, na linha literária.

 

Qual você acha que é o papel da literatura dentro do movimento negro?

 

O movimento negro conseguiu muitas coisas. Isso das cotas, por exemplo, muita bandeira de lá está acontecendo aqui. Mas aconteceu o que acontece com os movimentos: tinha essa coisa da briga na rua, das manifestações, e passou para uma questão burocrática. Porque se acredita que a mudança política se faz dentro da estrutura que está aí.

 

Só que chegou num determinado ponto que só tinha o discurso. E quem registrava esses discursos? Quando alguém perguntava: “O que o movimento negro tem de concreto?”, eles puxavam os Cadernos Negros. Era algo palpável: um livro. E as palavras ali tinham muito a ver. Eu tenho um poema que se chama “MNU” e que está na capa de um livro que saiu, dos 20 anos do MNU. Então você acaba sendo o registro em palavras desse momento.

 

Agora acho que volta a ter um distanciamento, a partir do momento que a camada burocrática não viu o que estava acontecendo em Frankfurt! Você tem uma Seppir e uma Fundação Cultural Palmares e elas não viram isso? Tá lá na Esplanada, dentro do Ministério [da Cultura], lá na ilha da fantasia, pô! E, pra ter Palmares, nós brigamos! A Seppir também foi uma briga. As cotas… Você acha que alguém acordou de manhã, depois de ter uma trepada muito boa, e disse “agora vou dar cota pra preto”?! “Comi minha empregada, agora resolvi”?! É uma briga política. Se o resultado não é o que a gente esperou, é uma briga política.

 

Nós brigamos pra ter gente lá dentro. Se tem um senhor lá que diz: “Vai ter um evento na África, Miriam, tenta entrar lá nessa delegação, esse é o caminho”, a gente vai lá e tenta. Pra isso que servia o negro da casa-grande: pra dar o recado pro quilombo.

 

O movimento negro conseguiu muitas coisas. Isso das cotas, por exemplo, muita bandeira de lá está acontecendo aqui. Mas aconteceu o que acontece com os movimentos: tinha essa coisa da briga na rua, das manifestações, e passou para uma questão burocrática. Porque se acredita que a mudança política se faz dentro da estrutura que está aí”

 

Pessoalmente, quando a questão negra virou uma coisa consciente pra você?

 

Eu não sei o que você chama de consciente. Tem uma música que diz: a vivência do negro é uma vivência guerreira. Eu fui criada numa família que sempre deu esses alertas de preconceito. Sempre houve uma proteção. Eu sempre vi a minha mãe, a minha avó brigando com professores quando tinha alguma segregação. Não queriam que a gente interiorizasse isso como um “é assim mesmo”. Os meus pais sempre disseram: estude e seja algo diferente, porque nós somos negros e temos que estudar pra ser algo diferente. Minha família é de empregadas domésticas e costureiros – meu pai ficou no meio, é alfaiate.

 

Agora, meu pai acho que foi um Black Bloc. Porque ele tacava fogo, virava ônibus. Eu sempre achei que ele fazia isso por farra, porque ele e a minha mãe sempre foram mais dos bailes, do samba. Só depois é que fui descobrir que meu pai conhecia todo mundo da Frente Negra Brasileira. Meu pai era o negro de baile, e eles eram os negros militantes.

 

Quando eu tinha 15 anos, queria ajudar a família e quis ser empregada doméstica, que era uma profissão que passava de mãe pra filha. Minha mãe disse: “Não, você vai estudar e vai ser o que você quiser”. E meu pai dizia: “Não seja um rosto anônimo passeando no viaduto do Chá”. Essa foi a família que eu tive, então eu já tinha uma consciência. Sua pergunta acho que é quando essa consciência se tornou política. Isso foi na faculdade. E essa questão política do movimento negro foi a última coisa que eu assumi do meu momento universitário.

 

Sempre tinha um branco que dizia: “Vai no movimento negro! Por que você não vai lá?”. Porra, vai você! “Você é negra, vai pra lá.” Eu sou negra e vou aonde eu quero! Foi isso que meu pai e minha mãe me ensinaram.

 

E qual o jeito de nomear essa luta? Etnia, raça, ancestralidade…?

 

O professor Eduardo de Assis fez a antologia e chamou de literatura afrodescendente. Eu falei pra ele: “Nomear é uma forma de dominar. Eu me chamo literatura negra”. Mas eu brigo por ideias, ele é um amigão, doei metade da minha biblioteca pra ele. Mas isso não me impede de discordar. Não me torne inimiga, porque eu não brigo com você, eu brigo com ideias! A gente desaprendeu, nesses 20 e poucos anos de ditadura, a discutir ideias.

 

Em relação à literatura negra, ela é autonomeada! Em 1978, um grupo de oito escritores escreveu um livro chamado Cadernos Negros, com uma página e meia dizendo por que aquilo se chamava literatura negra. Aquilo foi um manifesto, não foi um bando de neguinho que disse “eu estou escrevendo e sou negro, então vou chamar isto aqui de negro”. Estava ligado a tudo o que acontecia nas literaturas africanas, no processo de colonização, tudo isso está lá. Quer dizer que além de não existir, quando eu invento alguma coisa eu não inventei direito, pô?! Aí chega o pesquisador e diz: “Não fica bem chamar de literatura negra, não é acadêmico”! Ah… [fecha o punho] Minha fala é um falo que atravessa as suas certezas culturais! Tô cagando e andando pra isso!

 

Descaracteriza a Semana de Arte Moderna! Diz: “Ah, foi a Semana de Arte Mais ou Menos Moderna”. Os caras fizeram um manifesto dizendo o que era, por que era. Eu brinco com o Eduardo de Assis: “Você chama de afroliteratura porque quis me dar um nome mais cristão?”. Vocês sabem a história dos nomes cristãos, né? Os nossos nomes africanos não são cristãos. Quando te passavam pro navio negreiro, você passava a se chamar José dos Santos, Maria dos Santos. Mas o meu nome é, sei lá, Tukakonte. “Ah, não dá pra falar isso.” Não dá pra falar, você, né? Porque, pra mim, “Maria Josefa” é que não dá pra falar, foi difícil aprender.

 

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