Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Suicídio, sexualidade e gênero na juventude

A urgência do debate e o início de uma discussão. Por Thiago Nagafuchi

Reza a lenda que Chico Buarque escreveu a canção “Mar e Lua” após ler uma crônica de duas amantes que se matam em um rio por conta de um “amor proibido”. A música foi composta em 1980 para fazer parte da peça Geni, de Marilena Ansaldi. Na música, as amantes foram “ficando marcadas, ouvindo risadas, sentindo arrepios, olhando para o rio tão cheio de lua e que continua correndo pro mar. E foram correnteza abaixo, rolando no leito, engolindo água, boiando com as algas, arrastando folhas, carregando flores e a se desmanchar. E foram virando peixes, virando conchas, virando seixos, virando areia, com lua cheia e à beira-mar.”

 

Essa vibrante e viva poética de Chico Buarque é atemporal; a temática, mais de 30 anos depois, também continua atual. Essas crônicas da vida real continuam a assombrar em jornais e portais com o consequente tremor da alma quando lemos que mais uma pessoa jovem tirou sua própria vida por conta de motivos ligados ao seu gênero ou à sua sexualidade. E na urgência dos compartilhamentos e o forte apelo às imagens tão atual, é sinal dos nossos tempos a possibilidade de até mesmo assistir vídeos de suicídio que vagueiam feito fantasmas pela internet.

 

Como não sei fazer música nem poesia, feito Chico, decidi estudar esse tema na minha tese de doutorado. Não que seja fácil. Aliás, provou ser tarefa bastante difícil. Nesse texto, meu objetivo é mostrar um (breve) apanhado geral de algumas reflexões que venho tendo no decorrer da investigação. Entrei esse ano no programa de doutorado em saúde pública da Universidade de São Paulo com o objetivo de fazer essa pesquisa.

 

O suicídio é o resultado de uma ação que tem por motivo a extinção da própria vida. É um tema complexo que gera discussões em diversas áreas do conhecimento, como a filosofia, a psicologia, a saúde pública, a medicina etc. Tem sua área específica de estudos chamada de suicidologia. Mesmo assim, existem poucos estudos específicos que tratem do suicídio fazendo uma relação com gênero e sexualidade, talvez porque o suicídio ainda é considerado um tabu, algo que muitos evitam discutir (para uma discussão filosófica e histórica do suicídio, indico este link).

 

O contexto do suicídio de jovens não heterossexuais

 

Neste ano, o site Quem a homotransfobia matou hoje?, que se dedica a contabilizar casos de violência e assassinato de gays, lésbicas, travestis e transexuais em portais de notícia, registrou nove casos de suicídio no Brasil. A informação é possível por meio de uma ferramenta de filtro disponível no portal. É, basicamente, o único lugar em que é possível obter esse tipo de informação e, como só registra as informações da imprensa, muitos outros casos permanecem desconhecidos.

 

Vamos lá: de acordo com uma pesquisa francesa (Homosexualités et Suicide, de Eric Verdier e Jean-Marie Firdion, de 2003), as chances de jovens gays, lésbicas, bissexuais e transexuais se matarem são até sete vezes maiores que de um jovem heterossexual e, ainda, essa tentativa tende a ocorrer durante a juventude. Além disso, a letalidade de atos suicidas desse público é também maior, o que quer dizer que o jovem não heterossexual não só tem chances maiores de se matar como, também, escolhe formas mais letais para tal objetivo.

 

De todo modo, o número de suicídios e tentativas é subestimado, principalmente porque os dados de mortalidade não incluem informações de orientação sexual e identidade de gênero. Além disso, é impossível estimar com exatidão a taxa de suicídio de pessoas não heterossexuais, em especial a população mais jovem, porque muitas vezes essa informação é escondida ou, até mesmo, desconhecida, como, por exemplo, casos de suicídio que são considerados acidentes.

 

Desconstruindo mitos

 

Existe um mito por trás do suicídio que deve ser voluntariosamente desconstruído, pois uma das coisas que mais ouvi quando falei sobre meu tema de investigação foi: “Mas, fulano se matou porque é fraco!”, e sua vertente mais especializada, que ouvi de uma profissional da saúde, “quem tenta se matar é histérico!”, o que me causou um certo espanto. É fato que existem condições da saúde mental que influenciam na suicidabilidade de um sujeito, como depressão e esquizofrenia. Porém, minha intenção de pesquisa é investigar o fenômeno dentro das searas das ciências sociais, tratando o suicídio enquanto um fenômeno social e cultural.

 

Acho, pelo contrário, que é preciso muita força para se matar, penso na coragem que eu deveria ter para me jogar de um prédio – morro de medo de altura. Mas, aqui, não quero fazer julgamentos na base do que considero ser “fraco” ou “forte”, principalmente porque o sofrimento não é mensurável: imagine tentar medir o sofrer de outrem pela sua medida de sofrimento? Não é parecido com o que nos fazem quando nos dizem que devemos ser de determinado gênero?

 

É por isso que outra coisa que vem muito me interessado na pesquisa é o sofrimento social. Na antropologia crítica da saúde, esse termo se refere a danos devastadores que a força social (sejam poderes institucionais, normas sociais, e por aí vai) pode infligir na experiência humana. Um exemplo de sofrimento social é a patologização do transgênero enquanto um transtorno de disforia de gênero no DSM1. Em uma mão dupla que obriga um diagnóstico para a mudança de sexo e que tem em sua base uma clara definição de que somente os dois gêneros pressupostos são “saudáveis”, a patologização é uma clara demonstração de como um poder institucional (a medicina, no caso) pode agir nas esferas pessoais e subjetivas dos indivíduos. Se, por um lado alguém tem que se reconhecer “doente” (em um gênero não-conformado), por outro, depende que essa “doença” seja legitimada pelo Estado para conseguir a cirurgia de forma gratuita pelo SUS. Lembrando que só recentemente foi reconhecida a cirurgia MTF (male to female, em inglês).

 

Outro exemplo é a violência da discriminação contra sujeitos que apresentam algum traço que remeta a qualquer coisa fora dos padrões da heterossexualidade – assim mesmo, de forma que fique claro que nem mesmo uma pessoa heterossexual cisgênero está livre das diversas facetas daquilo que costumamos chamar de homofobia. São das normas de gênero, por exemplo, que surgem padrões de masculinidade hegemônica. Judith Butler considera que a norma opera dentro de práticas sociais como o padrão implícito da normalização, ou seja, cria uma variedade (muitas vezes inatingível) de masculinidade que subordina as outras variedades, criando uma categoria absoluta e hierárquica do que é ser masculino. Além disso, mesmo que a norma seja aparentemente invisível ou imperceptível, ela garante um grau social de inteligibilidade que nos faz pensar que estar fora da norma é, ainda, estar sob sua medida. Por exemplo, ser “bem masculino” depende do que é entendido como o que é ser masculino (ver Undoing Gender, de Judith Butler, 2004).

 

Da mesma forma, por mais que pareça óbvio, quero chamar a atenção de que as variadas fontes de violência não são exclusividade de vilões sociais defensores de um pretensamente legítimo orgulho heterossexual. Apareceram em alguns estudos recentes sobre como a operação de certas práticas afetivo-sexuais da homossociabilidade pode ser fonte de determinados tipos de sofrimento; dos chats aos sites de encontro e os aplicativos de celular que usam geolocalização, da sempre presente efeminofobia até a construção no ideário de corpos que, somente eles, podem garantir graus de sucesso da vida afetivo-sexual (sobre o assunto, indico a tese Os meninos: Corpo, gênero e sexualidade em e através de um site de relacionamentos na internet, de Luiz Felipe Zago).

 

Amplificando

 

O sujeito moderno está em contato com as mais diversas variedades de formas de vida, possibilidades de violência e insegurança e formas políticas e ideológicas de dominação. Pensar no suicídio como uma injustiça social muitas vezes implica aceitar que muitas pessoas vivendo às margens vislumbram um caminho pré-definido de falta de esperança e perspectiva. É importante assimilar que aspectos como diferenças históricas e culturais influenciam na construção do que é ser um ser humano, diferenças transculturais de cognição, afeição e ação e as particularidades de cada indivíduo, como aspectos que atuam diretamente em suas subjetividades. Por sua vez, a subjetividade é a base na qual se coalescem longas séries de mudanças históricas e aparatos morais, que transformam as criações de novos tipos de desejo, que perpassam os interesses comerciais, para estruturar novas formas de sentir e viver, que por suas vezes, mudam o mundo. De todo modo, a despeito de ser uma estratégia de existência, a subjetividade também é o meio e o material governamental de instituições como o Estado, a Ciência/Tecnologia ou a Medicina. Dessa forma, o gênero e a sexualidade não podem ser entendidos como instrumentos de controle social?

 

Acredito na urgência dessas questões e na importância de se iniciarem discussões que levem em consideração as mais diversas possibilidades. Recentemente, por exemplo, o que chamou bastante atenção foram os dois casos de suicídio de jovens vítimas do revenge porn que tomaram os noticiários. Parceiros anteriores irritados acharam que seria uma boa forma de se vingar mostrando a intimidade das garotas. E, mais uma vez, como são esperados nos comentários de internet, como nos casos de estupro, milhares de mensagens culpando totalmente as vítimas – “quem mandou se filmar (ou deixar filmar) fazendo sexo com outros dois homens ao mesmo tempo?”. Evidenciam-se os recortes de gênero e sexualidade dos dois casos, o machismo exacerbado em que ainda o homem leva vantagem naquilo que é desvantagem para a mulher: o sexo pelo sexo.

 

Às vezes me pego fazendo essa pergunta retórica: “Por que fui escolher esse tema?” – porque, sim, no começo foi muito doloroso sentir o peso de um mundo que é também o meu mundo e, depois, porque objetifiquei tudo isso em modo de suspensão, como me pede a ciência e como me pede o meu bem-estar ao falar de um tema nada confortável. No entanto, percebo o quanto esse tema é importante para inserir o assunto na agenda de discussões tanto das diversas áreas acadêmicas quanto dos mais diversos movimentos sociais; talvez por ser um campo minado, que carece de pesquisas e reflexões. Precisamos entender a complexidade do assunto para pensarmos metodologias de prevenção de suicídio de grupos sociais já tão estigmatizados.

 

Concluindo

 

Tudo isso é dito no atual contexto em que não contamos com instrumentos institucionais de proteção da população não heterossexual e de trangêneros – a votação do projeto de lei complementar que criminaliza a homofobia acabou de ser adiada mais uma vez. E, sem proteção, essa população tem que conviver diariamente com as violências visíveis e invisíveis, nos discursos diretos ou nas entrelinhas, com a exclusão e com a falta de oportunidades e em diversos níveis sociais e culturais; violências que resultam no medo,interferem na subjetividade e petrificam os alicerces das experiências humanas, recortando em lâmina fria as nossas diversas possibilidades de autonomia enquanto sujeitos.

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Proponho, finalmente, repensar o termo homofobia (ou, talvez, refletir sobre termos que espelham a semântica da violência contra jovens não heterossexuais e não cisgêneros): mais que sugerir que exista uma estranheza ou não-aceitação de determinadas experiências de vida, o termo deveria englobar os mais diversos tipos de violência (objetiva ou subjetiva) e dar conta das mais diferentes formas de sofrimento que são gerados de discursos preconceituosos e discriminatórios, porque são formas ardilosas de violência que acometem consubstancialmente o que é, para cada um de nós, sermos humanos – com toda a subjetividade que advém do simples fato de estarmos aqui, vivos.

 

Thiago Nagafuchi (nom de guerre: Thiago Zro) é doutorando em saúde pública na Universidade de São Paulo. Sonha em ser escritor e, quem sabe um dia, escrever um livro sobre tudo. Ou não.

1 DSM é a sigla para o inglês Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, o mesmo que em sua primeira edição de 1973 diagnosticava a homossexualidade como doença e que, em sua segunda edição, em 1987, ainda persistia em uma classificação da homossexualidade egodistônica como um transtorno e que, ainda, de novo, em sua quinta edição em 2013, mantém a disforia de gênero como transtorno mental.

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