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TUTTOMONDO | Sem assunto
O que fazer com a vida. Por Marcos Visnadi
Com a carga viral zerada, a gente já não fala mais de HIV, diz o médico.
Tem todo o resto, milhões de coisas pra falar. Uma amiga leu na minha mão que vou viver muito tempo. Trecho de A doença, uma experiência, de Jean-Claude Bernadet (ele estava fazendo um filme, muito doente, achando que ia morrer, terminou o filme e não morreu): “Comento meu estado com o médico, dando ênfase ao filme. Depressão, stress e afundamento do sistema imunológico formam um triângulo cujas pontas se alimentam reciprocamente. O médico sintetiza a situação, Você está com depressão pós-parto, Você se programou para morrer depois do filme e agora não sabe o que fazer com sua vida”.
O que fazer com a vida. Sem data de expiração visível, ir a outros médicos, descobrir novas tocaias do corpo. Diz que Francisco de Assis chamava o corpo de “meu irmão burro”. Nossa parte bicho: meu cachorro deita no meu colo, se aninha e me morde. Conforto, prazer, de repente uns dentes que a gente não vê de onde vêm. Quando dou bronca, ele finge que não estava fazendo nada e começa a me lamber. Sacana. Meu igual, meu irmão.
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O nome desta coluna é por causa de um mural de Keith Haring, o último que ele fez pra durar, na parede exterior de uma igreja católica na Itália. Tuttomondo, todomundo. Tenho pavor desse monte de escritos sobre a aids que usam a palavra “positivo”. Os que falam em “vida” também abundam. Tentativa de compensar o estigma? Caem no mesmo que toda a publicidade, toda essa felicidade compulsória de refrigerante academia antidepressivo. “Católico” vem do grego katholikós, quer dizer “universal”. A igreja é uma indústria de cadáver. A gente também é. Mas o Keith pegou um outro lado do universo. No fim, tudo quer dizer: tamojuntx.
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Algumas pessoas ficaram bravas comigo desde que comecei a escrever sobre ter aids. Me acusam de tempestade em copo d’água, de autopromoção em cima de um tema literário desatualizado, porque hoje em dia (odeio a turma do “hoje em dia”) tá tudo bem (pior é a turma do “tá tudo bem”).
Aqui mesmo, um leitor disse: “Ninguém escreve poesia quando descobre uma hérnia de disco”. Fiquei com raiva dele, mas nesse caso ele pode estar certo. Faz meses procuro um poema sobre hérnia de disco e não encontro. Como desde que o samba é samba as pessoas escrevem sobre qualquer coisa, ainda não perdi as esperanças de ler essa hérnia em versos. Agora, dizer que alguma doença não seja tema de poesia é incorreto. Pensei em citar o Manuel Bandeira, tuberculoso –
“Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.
A vida inteira que poderia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.”
(“Pneumotórax”)
– ou, se preferirem, mais banal e estrangeira, a Sylvia Plath com febre –
“Meu bem, passei a noite
Me virando, indo e vindo, indo e vindo,
Os lençóis me oprimindo como o beijo de um devasso.
Três dias. Três noites.
Limonada, canja
Aguarda, água me deixe enjoada.”
(“Febre 40º”, tradução de Rodrigo G. Lopes e Maurício A. Mendonça)
–, mas, como a doença é só uma das máscaras do corpo (embora ela às vezes vire uma burca inteira), quero citar mesmo a Wislawa Szymborska, saudável e morta até onde sei, que desde o mês passado não paro de ler:
“Nada mudou.
Além do curso dos rios,
do contorno das costas, matas, desertos e geleiras.
Entre essas paisagens a pequena alma passeia,
some, volta, chega perto, voa longe,
estranha a si própria, inatingível,
ora certa, ora incerta da sua existência,
enquanto o corpo é, é, é
e não tem para onde ir.”
(“Torturas”, tradução de Regina Przybycien).
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Nesta coluna, porém, não tenho a menor intenção de fazer poesia. Quando nós da Geni não encontramos ninguém mais pra escrever sobre a aids, quis me arriscar porque achava importante que se publicassem textos sobre o assunto – principalmente para as pessoas que estão recebendo seus diagnósticos agora (sou solidário, scusi). Mas também porque imaginei que escrever e ser lido fosse me ajudar a entender melhor essa tal de soropositividade.
Ainda que hoje em dia (!) esteja tudo bem (!!!), não houve uma vez que eu tenha contado do meu diagnóstico pra alguém e que isso não resultasse algum tipo de comoção. Por sorte (?), com exceção das pessoas que ficam bravas com os meus textos e do pé na bunda que levei de um namorado, as reações foram todas positivas (ai!), de apoio. O fato de haver sempre uma reação, no entanto, me faz acreditar que a aids não é essa calmaria toda que querem pintar por aí. Ter gastrite é menos chato.
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Minha linha da vida é funda e longa, embora aqui e ali interrompida. A gente poderia carimbar nossas mãos nas paredes, como fizeram nas cavernas gente como a gente, há muito tempo atrás, e garantir um futuro nos olhos dos arqueólogos e nos livros escolares de história, as linhas da vida ausentes na palma de tinta.
Não vejo motivo pra comemorar, mas agradeço ao calendário cristão o fim de mais um ano.
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Ilustração: Gui Mohallem.