Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Pra todo mundo

A militância cotidiana de Paula Beatriz de Souza Cruz, diretora de escola pública em São Paulo. Por Carolina Menegatti e Marcos Visnadi

A primeira dúvida que surge quando sabemos que uma mulher trans é diretora de escola é: o que ela faz para combater a transfobia no ambiente escolar? Para Paula Beatriz de Souza Cruz, no entanto, essa é uma entre as muitas questões que devem ser respondidas. “A gente tem vários tipos de diversidade – religião, sexualidade, raça, portadores de necessidades especiais –, e todos estão inseridos na escola, principalmente na pública, por ela ser laica.” Como educadora, ela se dedica a discutir constantemente esses tipos de diversidade. Como militante, sua luta contra a transfobia ultrapassa os muros da escola.

 

Paula esteve presente nas primeiras paradas do Orgulho LGBT de São Paulo, quando o protesto ainda não tinha se tornado um dos principais eventos turísticos do município. Este ano, ela participou da campanha que enfrentou a invisibilidade trans dentro do próprio movimento LGBT e fez com que, pela primeira vez, a parada tematizasse a luta desse segmento, numa campanha pela aprovação da Lei João Nery, que possibilitaria a mudança do nome social com apenas uma solicitação no cartório de nascimento dx requerente.

 

Apesar de ter se candidatado a vereadora nas eleições de 2012, Paula diz que gosta mesmo é do ambiente escolar. E é nesse ambiente que ela tem se destacado, aliando a militância trans à sua experiência de professora e de gestora.

 

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Você sempre quis ser professora?

 

Sempre. Uma tia minha, já falecida, falava que eu fui a única que cumpriu com o que falou quando era criança.

 

Gostava da escola?

 

Sim, gostava, era boa aluna. E brincava muito de escola, sendo professora, diretora, sabe assim? Gostei mesmo desse ambiente.

 

Você começou o processo de transexualização já adulta, não?

 

Isso. Em 2007 foi o ápice, o momento em que fiz a cirurgia da prótese, a rinoplastia. Mas eu nasci trans [risos]. Aí fui aguardando um período. A identidade mesmo veio na fase adulta já. Sempre fui ativista, sempre assumi a homossexualidade, nunca escondi. Depois vi necessidade de exteriorizar a Paula. Eu gosto de falar assim, porque na verdade ela foi exteriorizada, sempre esteve presente em mim.

 

Era mais fácil se assumir gay do que se assumir como mulher trans?

 

Era um momento difícil aquela época. Eu peguei uma fase em que não se falava em homossexualidade, mas em homossexualismo, ou seja, era uma doença. Tomei até medicação para reverter esse quadro.

 

Quem prescreveu essa medicação?

 

Psiquiatra, psicólogo. Era porque tinha o CID [Classificação Internacional de Doenças] e [a homossexualidade] era entendida como uma doença. Não culpo, pois depois tive a oportunidade de participar de terapias, e isso realmente mudou: saiu o “-ismo” e entrou o “-dade”. Não é mais visto como doença, agora trata-se da questão de identidade de gênero.

 

Eu fui saber só na sétima série que tinha genitália de menino e não de menina. Até então, eu me via menina. Aí, estudando o corpo humano, a professora mostrou a genitália masculina, a genitália feminina, e eu fiquei olhando aquilo… Não tinha internet, mas tinha livros. Corri até a biblioteca pra buscar informações, porque minha mãe nunca teve o hábito de ficar nua na minha frente, nem meus irmãos.

 

Minha família já percebia a minha diferença, pois sou a caçula de seis irmãos, mas eles não alimentavam nem condenavam a situação. Nunca ficaram com piadinhas. Inclusive, um irmão me colocou na capoeira e falou: “Não estou pondo você na capoeira pra você virar homem ou alguma coisa nesse sentido, mas pra aprender a se defender, porque o mundo é meio assim, cruel, de agressão, então pelo menos você vai saber se proteger”.

 

Que legal.

 

Mas graças a deus nunca precisei usar [risos]. Sempre vi a capoeira como uma dança mesmo, que é o que eu gosto. Nunca houve um ato homofóbico que eu necessitasse recorrer à força física.

 

E na escola não tinha, entre colegas, quando você era criança, algum tipo de agressão?

 

Até a quinta série, quando eu estudei em escola pública, tinha as piadinhas, os palavrõezinhos que estereotipam. Mas eu reagia, não me intimidava. Não ficava com medo, eu enfrentava, tinha uma ação. E não tinha a capoeira ainda [risos]. Minha mãe trabalhava na escola, e colegas que eram muito próximos iam lá falar “olha, estão xingando disso, daquilo”, se sentiam comovidos. Aí minha mãe resolveu me colocar em uma escola particular, de tradição católica, inclusive. Lá não tive grandes problemas, com aquele grupo foi muito bom. A gente se encontra até hoje, somos amigos no Facebook, temos contato… Tive problemas mesmo quando tomei a medicação para “virar homem”. Nessa época eu tinha uns 10, 11 anos.

 

Em transexualidade nem se falava?

 

Não. Eu fui saber que era possível se trajar como mulher quando fiz 18 anos, indo em boate. Assisti ao show de transformistas, e ali vi a possibilidade de me vestir como mulher – foi aí que comecei. Na verdade, fui transformista por muitos anos, fazendo show. Eu tinha duas identidades. Tinha hora que eu precisava tirar tudo e falava “vou guardar a Paula”; outra hora era “agora vou tirar a Paula da mala”. Todo mundo dizia “sair do armário”, e eu brincava dizendo “tirar da mala”. Eu tinha uma mala em que carregava todos os meus apetrechos.

 

Em 2004, 2005, senti necessidade de me apresentar socialmente como Paula Beatriz, pois me arrumar como mulher só para fazer um show ou participar de um evento já não estava mais me agradando, me satisfazendo. Foi quando procurei primeiro a minha médica, e lhe disse que queria tomar hormônio. Ela perguntou: “Hormônio? Mas pra quê?”, e eu falei: “Ah, hormônio feminino”. “Até que enfim resolveu?”, ela disse, afirmando que o hormônio ia ajudar em algumas coisas. Ela me encaminhou para uma endocrinologista. “Porque até então, Paula”, disse a doutora, “eu não via um paciente, mas uma paciente.” Quando entrei na sala da endócrino e falei o porquê de eu estar ali, ela disse: “Nossa, até estranhei: eu chamando um nome masculino e você entrando!”. Ela não viu nenhuma ligação entre o sexo masculino e a minha presença.

 

Já era a Paula…

 

Já era a Paula.

 

Você foi bem recebida pela equipe médica, então?

 

Muito bem recebida. Tem a UBS [Unidade Básica de Saúde] perto de casa, onde pego a medicação. Nunca tive aquele susto. As pessoas geralmente reagem bem, mas em virtude de quê? Eu acredito que das paradas gays, que realmente alavancaram – já estamos indo para a 18ª [em São Paulo] –, as ONGs que desenvolvem trabalhos de conscientização, isso tudo vai abrindo as discussões, novos pensamentos, como a própria psicologia, a psiquiatria, as ciências mudam também.

 

Você mencionou a parada. Este é o primeiro ano que a parada daqui de São Paulo vai ter o tema da transexualidade.

 

É, mas isso depois de muita briga. Você até viu lá no Facebook, eu pus a minha foto pedindo a aprovação da lei denominada João Nery. Por exemplo: eu tenho o meu nome e o sexo alterados, mas tive que contratar um advogado, elaborar uma petição, entrar com um pedido no fórum… demandou um ano e meio para ser procedente. E isso porque caiu com um juiz não fundamentalista, que teve todo um entendimento, e deu sentença favorável, mas tenho conhecidas que não tiveram essa mesma sorte, precisaram ir até segunda instância pra poder conseguir a operação.

 

Você teve problemas burocráticos por ser concursada?

 

Até meu nome ser mudado oficialmente por um juiz, eu tinha que carimbar com o nome anterior. Quem sabe da minha história, tudo bem, mas as pessoas que não sabiam ficavam até meio constrangidas, sabe?

 

[Coincidentemente, um aluno entra para pedir o carimbo e a assinatura de Paula em seu caderno.]

 

Você percebeu agora o carimbo, né? Ele está vendo uma mulher. Se eu pusesse o carimbo anterior… Acho que essa questão não tem que estar tão exposta para todos. Apesar de que eu não escondo e realmente assumo a minha transexualidade: sou transexual. Porque [no documento] está lá: sexo feminino. Consegui mudar meu nome para Paula Beatriz de Souza Cruz. Agora vou me tornar invisível? E abandonar quem quer lutar, porque eu já consegui o meu?

 

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Dentro das esferas estaduais e municipais nunca houve o “vamos puxar ela pra uma salinha, pra ficar trancada, escondê-la”. Não, muito pelo contrário. Em 2007, quando fui fazer a cirurgia, tive o convite de ir para a Supervisão de Ensino. Fui supervisora, responsável pelo Programa Escola da Família e também coordenadora de avaliação do Saresp [Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo]. Ia em grandes reuniões com pessoal que vinha do interior, tinha que lidar com universitários. A dirigente me deu algumas atribuições que eram inerentes à função e que me deixavam em contato com os demais.

 

Houve muito apoio de muita gente, quando decidi fazer [a operação]; os colegas diziam “nossa, até que enfim! Que legal que você vai fazer!”. Quando decidi exteriorizar a Paula, falei pra todo mundo. Não foi uma coisa de sumir um dia pra fazer a cirurgia e depois de 30 dias voltar a Paula exteriorizada. Houve todo o trabalho, muita gente acompanhou o processo junto comigo, tive muito apoio da minha família, de colegas de trabalho, amigos. Eu falava: “Parece que vocês esperavam mais a coisa acontecer do que eu mesma.

 

Geralmente as histórias que se ouve de transexuais são bem diferentes disso, né?

 

São.

 

Você acha que as histórias de violência e rejeição são mais comuns ou são só as que aparecem mais?

 

São mais comuns, a violência é maior. Eu tenho sorte, porque com a maioria a exclusão começa na própria família, com a não aceitação. Ter uma família e a família não te reconhecer, isso já vai acarretando problemas. São poucas que conseguem um trabalho em empresa privada. Eu sou concursada; no setor público, se eu fizer o que determina a legislação, não tem porque responder processo administrativo e ser exonerada. Conheço outras que também estão no serviço público. Em empresas privadas, conheço poucas que foram realmente contratadas.

 

Não dá pra fazer militância dessa forma.

 

Não dá, não tem como você se construir.

 

Vejo que o serviço público está mais preparado, ainda mais o de São Paulo. Tanto no nível estadual como no municipal há o decreto do nome social, do uso do nome social. Existe um trabalho intenso sobre a questão de gênero, a identidade de gênero, e São Paulo, a maior metrópole do Brasil, tem que ser mesmo o carro-chefe dessas questões. Agora está mais centrado na escola também, pois existe o cadastro de alunos, e aí não tem como pôr o nome social, mas já está tramitando no Conselho Estadual de Educação sobre como vai ser pra poder colocar o nome caso haja necessidade.

 

Antes de o meu nome ser alterado civelmente enquanto servidora da gestão pública, eu já tinha lá o nome social e a identidade de gênero. No cadastro eu existia, e existem outras também. Algumas, quando conseguem isso, preferem se tornar invisíveis e não querem que ninguém nunca saiba que um dia tiveram um nome masculino. Respeita-se, mas com isso a militância fica muito difícil. “Sou mulher, mulher, mulher, mulher, mulher, mulher”, dizem. Na verdade, acho que é transexual: eu sou transexual, nasci transexual e vou morrer transexual. O que eu consegui com a alteração do nome, de mudar para o sexo feminino, foi ter as vantagens idênticas às de uma mulher. Porque uma transexual mulher é uma mulher.

 

E quando você começou no movimento LGBT?

 

Com a parada.

 

Fazendo show?

 

Fazendo show, participando nas ruas. Quando iniciou, aliás, a [Avenida] Paulista era vazia, a gente ia pelo chão mesmo. Hoje eu já não vou tanto, com aquele tanto de gente, aquela aglomeração, ter que subir em carro, ai… [risos]. Tenho saudade daquele movimento. Quando iniciou, a parada era pautada politicamente, e depois isso foi se perdendo muito. Hoje é um grande evento de São Paulo, porque arrecada muito dinheiro. Não era esse o princípio da parada gay. Acho que a gente está pegando aquele dia para a visibilidade, nós existimos aqui, temos os mesmos direitos, dignidade, temos que ser respeitados. Tudo isso tinha que ocorrer.

 

Ela perdeu o caráter político?

 

Perdeu, acho que ficou muito no financeiro. Até com a própria Associação [da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo], você vê a dificuldade que foi: tinham pautado anteriormente para o tema ser a questão das travestis e transexuais, pela lei João Nery…

 

Eu acabei nem explicando [sobre o processo jurídico de alteração do nome], né? Eu tive que entrar com outro processo. E o projeto de lei João Nery garante o quê? Que a transexual mulher ou o transexual homem que queira a retificação de seu nome não precisa de um advogado, não precisa de um juiz. Ela vai ao cartório de seu registro para requerer isso, mas com fundamento na lei, que hoje não existe. Não precisa de toda aquela demora que eu tive, que outras tiveram. E é denominada lei João Nery porque ele que é o precursor. Facilitaria muito, porque nem todas têm condição de pagar um advogado.

 

Isso elitiza o direito, né?

 

Você tem que pagar o advogado. Além de ter que contar com a sorte de quais profissionais vão mexer no seu processo. Então, com certeza estarei na parada deste ano, porque quero que essa lei seja aprovada. Não sou uma ativista tão presente, até por causa da minha jornada de trabalho, mas pelas redes sociais, no que eu posso, estou.

 

Você participa de algum grupo?

 

Diretamente, de nenhum grupo que trata do tema, mas tenho conhecidos lá dentro [do movimento], estamos sempre trocando figurinhas. Tanto que, nesse manifesto [para que a parada adotasse a aprovação da lei João Nery como tema] que estava circulando para assinatura, alunos meus héteros me perguntavam “qual o link? Já assinei, já assinei, já assinei…”. Ou seja, não foram só homossexuais, transexuais, travestis que votaram pelo tema, heterossexuais também, porque conhecem, sabem que a causa não é brincadeira. A participação política é de todos, a gente não pode querer que sejamos só nós, a gente tem que estar no mundo. Este mundo é constituído por todos.

 

Como você vê o movimento LGBT especificamente? A gente vê muitas denúncias e reclamações de transfobia – e no caso da parada isso foi bem explícito.

 

A transfobia é muito grande. Sempre existiu esse estereótipo, por exemplo, de ter medo de travestis, porque travesti anda com gilete na boca – um mito tudo isso. Dentro do próprio grupo existem as diferenças: a gay que é feminina, o gay que é másculo, o urso… Isso começa a dividir o próprio segmento, o próprio movimento; e as que sofrem mais com isso são as travestis e as transexuais.

 

Às vezes travestis e transexuais parecem ser um grupo menor na constituição, mas são um grupo até maior, e foram as primeiras a dar a cara a tapa, a estar nas ruas”

 

Às vezes travestis e transexuais parecem ser um grupo menor na constituição, mas são um grupo até maior, e foram as primeiras a dar a cara a tapa, a estar nas ruas, até mesmo as profissionais de sexo. Elas estão ali, enquanto muitos se mantêm no armário, na gaveta, na mala. Muitas não se interessam [pelo movimento], é verdade. Mas, também, não se apresentam políticas para transexuais e travestis em horários pertinentes – marcam eventos no horário em que elas estão trabalhando. Como elas vão participar? Aí dizem: “Ah, mas se marcar outro horário elas também não vão vir, porque não têm interesse”. Se marcar apresentação de projetos no horário em que elas têm justificativa para não participar, é lógico que não vai ter quórum mesmo. E o ganha-pão delas? Tem que marcar à tarde, para que elas trabalhem, durmam e venham antes do trabalho.

 

Você acha que isso é deliberado, proposital, digamos?

 

Acho que não é proposital; para mim, isso nunca foi pensado. É preciso dar mais essa visibilidade às trans. São poucas as que sabem que dia 29 de janeiro é o dia da Visibilidade Trans. Precisa ter um movimento maior, e quem está no movimento não pode desistir.

 

E você é filiada ao PSOL.

 

Sou, desde 2012.

 

Você já participava de algum jeito do partido ou foi convidada?

 

Fui convidada a conhecer o estatuto, o partido. Me interessei, até mesmo porque tenho ali amigos que são homossexuais e que participam do partido, que têm o setorial LGBT. Aí fui me envolvendo, e veio o convite para sair como candidata. No início relutei, mas conseguiram me convencer [risos]. Não que eu tivesse tantas intenções de seguir a vida política, eu realmente gosto de estar aqui na escola, da educação, de estar próxima das crianças, dos professores. Eu gosto de estar neste ambiente, não em assembleia, câmara…

 

Mas você concorreu a vereadora. Como foi a campanha pra você?

 

Uma aprendizagem. Você vê o outro lado, de prestar contas à Justiça Eleitoral, o que pode e o que não pode, coisas com que até então eu não tinha contato. Achava que era só ir nas ruas, fazer boca de urna [risos], que é proibido, né? E hoje percebo por que é proibido, showmício, todas aquelas coisas.

 

Mudou sua visão da política no geral?

 

Mudou um pouco… Tantos candidatos LGBT e nenhum entrou. Isso que eu fico questionando. Porque eu não fui a primeira a me candidatar, existem outros. São Paulo, que tem a maior parada, não consegue eleger um candidato LGBT. Existem os simpatizantes, os que são pela causa, mas, até então, não são homossexuais. E é onde eu volto a dizer que a parada se desviou de todo seu processo de discussão política. “Vamos pra parada, pronto e acabou”, quer dizer, é uma festa. E não “estou aqui porque quero estes direitos garantidos, quero ser respeitado”. A palavra fundamental nessa questão é o respeito. O combate à homofobia, à transfobia, se perde no tempo. Os temas que são propostos pela diretoria da Associação não vão ao encontro das reais necessidades, e fica-se num “vamos só gerar lucro pro município”.

 

Você participou do movimento negro alguma vez?

 

Não, nunca participei. Mas, você veja: mulher, negra, transexual… é tudo acentuado. E se eu vir que estou sendo ofendida, que está sendo descumprida a legislação, eu não vou me fazer de coitadinha. Você tem que peitar pra coisa se mexer.

 

Por exemplo, eu tive um problema aqui em 2006, quando ainda estava na transição. Não foi pai de aluno, não era ninguém que convivia comigo. Enquanto eu participava como gestora do Programa Escola da Família, um cidadão entrou aqui e veio me agredir, dizendo como é que eu podia estar na direção de uma escola, se eu era pederasta. Saí da sala, porque ele tinha uma atitude de quem poderia me agredir fisicamente, e nisso estava a polícia visitando a escola. Falei: “Olha, policial, acabei de ser desacatada por esse cidadão”. Esse caso teve que ir pro distrito policial e, chegando lá, o delegado não fez o boletim de ocorrência pra eu ter que representar depois de seis meses, já fez o termo circunstanciado, que é aquele que já vai encaminhado pro juiz. Fui convocada, o cidadão pagou uma pena, prestou serviço comunitário.

 

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A gente viu o cartaz anti-bullying aqui na escola. É uma preocupação sua entrar na discussão com a comunidade escolar sobre os temas da homofobia, da transfobia, do racismo, dos direitos humanos?

 

Sim, é uma preocupação. O bullying generaliza várias atitudes que não são favoráveis, e é por isso que a gente tem que ir no ponto direto: “Por que fez isso?”. Não se deve apenas punir, tem que trazer pro ponto da reflexão. Xingou o colega de bicha, então você vai levar uma suspensão? Não. Por que isso? Porque tem que ter uma discussão.

 

A gente tem vários tipos de diversidade – religião, sexualidade, raça, portadores de necessidades especiais –, e todos estão inseridos na escola, principalmente na pública, por ela ser laica. E eu, como diretora, não posso ficar colocando na frente: “Gente, vocês têm que tratar do problema das travestis”, porque aí parece que eu só estou levantando a minha bandeira. É preciso ter uma visão de mundo, de todos os problemas. Não posso ficar só numa situação. Lógico que, se tem essa situação, [as colegas da escola] já me chamam, “Paula, ajuda”, pois sabem que eu vou saber do assunto mais do que elas. Dou suporte material, leitura, pesquisa. Como também com a questão do negro, vamos atrás também.

 

É nisso que escola tem que estar centrada, e muito, a todo momento. Não apenas “vamos agora falar de raça”, “8 de março é dia da mulher, vamos falar de mulher”. Só agora no mês de março vamos falar de mulher? Quer dizer, e o resto do ano, não existe mulher? Aí vem a parada. E no resto do ano, não existem homossexuais e travestis? Quando chega 13 de maio, data da abolição da escravatura, é só ali que se fala da questão dos negros, só se fala dos índios em abril…? E os outros dias do ano? É o que ocorre muito em nosso país: é o momento, e não uma sequência, não existe continuidade. A gente tem que ficar bem atenta a isso. Tem que haver temas constantes, conforme a gente os vivencia.

 

Pensando na escola, mesmo o espaço físico, você acha que é uma estrutura que impede às vezes a discussão de gênero? Ou que deixa os papéis de gênero mais rígidos? Estávamos pensando nos banheiros…

 

O tema não é ainda muito bem pautado, mas isso também precisa ser objeto da formação dos professores. Geralmente o tema sexualidade fica restrito ao professor de ciências que, quando vai tratar da homossexualidade, só cita. Nem o condeno, pois às vezes ele nem tem a formação para isso, e não está seguro. E, se ele não se sente seguro, é melhor não falar bobeira. Você precisa ter discernimento, segurança do tema que você vai tratar. Não é só achismo, precisa ter conhecimento do que é a homossexualidade, a transexualidade, a bissexualidade. E pra isso é preciso uma formação continuada. Às vezes o professor não fala porque também nem sabe como tratar o tema, e acaba abordando-o meio isoladamente, aquela coisa “você agrediu ela, ofendeu, vamos pra diretoria”. Os que têm segurança avançam e os que não têm pensam como podem seguir.

 

É preciso fomentar a discussão, a formação específica de gênero. Eu, por exemplo, fiz um curso pela Secretaria da Justiça sobre identidade de gênero – ainda estava na Supervisão – e, quando cheguei na escola, ouvia falarem muito “opção, opção [sexual]”. Eu falei: “Olha, não é opção, é orientação”. Aí recebi no e-mail a abertura de novas turmas e divulguei pra funcionários e professores. Todos foram fazer, porque é interessante ter também os marcos teóricos. Não é só a Paula, transexual, que convive com eles, que precisa saber.

 

Muitos fizeram o curso e entraram numa discussão com teoria, com marco. Foi muito interessante pra todos, pois eles conseguiram informações que não são do achismo. Inclusive professores evangélicos fizeram o curso. Sempre pontuam que os evangélicos condenam… Eu tenho vários colegas evangélicos, e temos uma convivência muito boa. Não é de fingimento, por eu ser a diretora – eu não sou tola, a gente percebe quando é bem recebida nos locais. Existe uma convivência, um ambiente em que a transexualidade ou o fato de eu ser negra não vêm em primeiro lugar. Vem a profissional que trabalha na escola. E também não tem a ver com eu ser diretora e ficar pisoteando deus e o mundo, entende? A gente tem que ter uma convivência de harmonia, comprometimento, compromisso, ajuda mútua. Em tudo a gente tem que estar num contexto. Aquela pessoa que não tem oportunidade de conviver com um homossexual, uma travesti, uma transexual, e vai pra igreja, vai ter aquela visão; mas, num momento que ele convive, começa a refletir sobre a informação que é dada pelo pastor, o que está na Bíblia, e passa a ver pessoalmente.

 

Essa é a importância dessa militância cotidiana.

 

Exatamente. Quando gravaram a matéria [do programa A liga, da TV Bandeirantes, exibido em agosto de 2013] perguntaram para alguns pais. Alguns ficaram surpresos, porque não sabiam. E os que sabiam se posicionaram numa fala mais fundamentada: “Eu sei, já conhecia, meu filho já estudou aqui quando ainda era ‘o cidadão’” – [risos] vamos dizer assim. O repórter pergunta para uma das mães e a resposta é: “Tem que respeitar, as diferenças existem e tem que se manter o respeito”.

 

A evasão escolar entre travestis e transexuais é uma situação comum. No seu caso, isso também é oposto do que a gente costuma ver, né?

 

Sim, é o oposto. É como costumo dizer: sou a diferente das diferentes [risos]. A escola às vezes nem exclui porque quer, muitas vezes é por falta de conhecimento, de formação. Então é melhor sair do que ficar e pensar em como tratar o tema. E o banheiro? Qual vai usar?

 

Por exemplo, à noite eu trabalho na rede municipal. No final de novembro, foi uma gay fazer matrícula e a funcionária explicou que ele estava fazendo a inscrição ali, mas isso não queria dizer que ele estudaria ali, porque hoje tem o sistema do cadastro de alunos para compatibilizar as vagas. Poderia ser ali ou em outra escola, para ele fazer o EJA [Ensino de Jovens e Adultos]. Veja, ele foi excluído já lá atrás, na idade regular. Aí ele disse: “Não, mas tem que ser aqui, porque aqui é babado” [risos]. E a funcionária ficou assim meio sem entender. Depois ela me perguntou: “Paula, você viu que é um menino gay. Eu não entendi por que ele disse que tem que ser aqui porque aqui é babado”. Eu falei: “Olha pra mim”. E ela: “Ah, tá, agora caiu minha ficha” [risos]. Se houve a exclusão lá atrás por causa da sua identidade, ele quer voltar agora, mas tem que ser aquela [escola], porque ali já existe uma referência, ele se sente protegido, procura essa proteção. Sabe que ali não vai sofrer preconceito, porque tem a professora e, se acontecer, ela vai ser uma que vai lá e “como é que é?!”. Isso é importante? Pra mim é.

 

E a sala de aula é realmente uma caixinha de surpresas: a professora prepara o plano de aula e, de repente, ele tem que ser alterado, por todas essas circunstâncias. Ele não pode ser estanque, alguma coisa que viu na internet, nas redes sociais, na televisão; os professores têm que estar também atentos a isso porque a criança traz isso. E a criança é a melhor difusora de todas as campanhas. Quando tem campanha antitabagista, coitados dos pais que fumam! Sofrem, porque a criança fica mesmo em cima. A criança leva mesmo, é um transmissor direto de tudo o que ele tem de informação na sala de aula.

 

A sala de aula é um espaço de construção onde se deve ter muito cuidado com o que se fala, o professor deve ter muito cuidado com a sua opinião, pois ele influencia muito na formação daquela criança, que vai repercutir na família, na casa. A sexualidade é um tema muito complexo, e isso gera muitos conflitos próprios e até sociais, como também de contribuição de estudo e reflexão. Ainda bem que eu não sou psicóloga e nem psiquiatra [risos]. São muitas coisas pra eles, tratar da identidade de gênero é muito complexo.

 

A identidade é complexa pra todo mundo, né?

 

Muito, muito…

 

Você ainda se apresenta, faz shows?

 

Não, não mais. Faço muito no aniversário da dirigente, da Maria Lígia, que está organizando a comemoração. Ela liga pra mim e fala “Paula, é seu show”. Porque hoje [nas boates] é mais drag queen, bate-cabelo, e eu não sou esse estilo. Sou mais clássica, Whitney Houston, MPB. A moçada de hoje já não curte muito essa coisa, está ali na boate e entro eu cantando [imita a Whitney] “And I…” [risos]. Vejo umas que ainda estão insistindo, e o povo fica todo assim [cara de tédio], aí entra a bate-cabelo e todos gritam: “Ahhh”. Mas no aniversário da dirigente é MPB mesmo, ela não curte muito bate-cabelo [risos].

E você está gostando dessa exposição, de dar entrevista e tudo mais?

 

Eu estou gostando, pelo menos é uma forma de contribuir. Eu tive sorte de ter recebido entrevistadores com seriedade. Alguns só querem saber do sexo, como é isso, como é aquilo; e outros querem mesmo um conteúdo, tratar um tema. Todos que me procuraram foram nessa linha. Você vai ver A liga, o diretor aqui queria que o Thaíde fizesse umas perguntas pessoais e indiscretas. E o Thaíde não fez, se manteve respeitoso.

 

Falaram que ele viria entrevistar uma transexual em uma escola, uma diretora. Ele veio com um pensamento de que chegaria aqui e encontraria uma loira. Quando entrou e viu uma negra, aí as perguntas na cabeça dele já ficaram embaralhadas. Ele já teve problemas com as questões raciais. O diretor falava pra ele: “Pergunta se ela vai fazer topless”, “Como que ela usa a calcinha”, e em momento algum o Thaíde fez essas perguntas pra mim. Ele fez pergunta de construção, “como você vê a questão da homossexualidade no país?”. E eu falei muito das questões da homofobia, da transfobia, e isso não foi ao ar. A televisão quer mostrar mesmo aquele lado pejorativo, infelizmente, ainda querem ficar mostrando aquela coisa que machuca, que dói, que ofende.

 

Lembro até que lançaram o quadro “Camila quer casar” [apresentado em 2005 no programa Superpop, da Rede TV!]. Ela era linda, uma transexual, e de repente se suicida. Agora, o que causou esse suicídio? Essa exposição de quem quer casar, aí não apareceram os pretendentes em público – porque existem os pretendentes ocultos – e isso deve ter mexido tanto com o emocional que ela pulou do prédio. Não estou querendo dizer que isso foi ou não o motivo, mas ficou a interrogação. Foi realmente depois dessa exposição. E não foi transfobia o que o programa fez? A gente tem que entender também que a transfobia não é apenas agredir fisicamente.

 

Outro dia passou um programa com o tema da sexualidade, e as perguntas eram todas sobre sexo, sexo, sexo; então o João Nery, que estava presente, disse: “Gente, não estou entendendo: só está na coisa no sexo, cadê o ser humano?”. Ele ficou irritado com aquela coisa, e eu pensei “ainda bem que você falou”. Esses programas não fazem a discussão, a reflexão. É a mesma coisa: [imitando a apresentadora de um programa de televisão] “Ah, você era um menino”, “Vou medir a mão: nossa, sua mão é até menor do que a minha”, “Quanto você calça?” “37”, “Nossa, eu calço 41”, diz a apresentadora. Por que essas comparações?

 

Isso é transfobia, não tem outro nome.

 

Exatamente! E ela não percebe, nem as próprias pessoas que estão lá percebem isso. A identidade de gênero não está ligada à sua genitália, tem que estar ali a complexidade, o se entregar, conhecer o próprio corpo – que muitas vezes não se conhece – e se deparar com o outro corpo semelhante ao seu ou diferente. A sexualidade abrange todas essas questões.

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