Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Militância sem fronteiras

Na Catalunha, associação de imigrantes LGBT desenvolve ações de acolhida e integração cultural. Por Lia Urbini, de Barcelona

A Acathi (Associação Catalã pela integração de Homossexuais, Bissexuais e Transexuais Imigrantes) surge em 2002 a partir de um fórum de discussão LGBT. Como muitos de seus integrantes eram imigrantes ou se interessavam pela especificidade dxs LGBTs imigradxs, organizaram-se na associação com o intuito de concentrar esforços em torno das situações que envolvem direta ou indiretamente essa população. Há mais de dez anos elxs desenvolvem ações relativas ao processo de acolhida e adaptação cultural, tendo em vista que muitxs LGBTs imigrantes já vêm de contextos de estigmatização ou ilegalidade em virtude de sua orientação sexual e, ao chegar na Catalunha, se deparam com uma série de questões com a nova condição de emigradxs.

 

Geni, piruetando por aí, resolveu puxar conversa com Rodrigo Araneda, atual presidente da associação.

 

catalunha

 

Geni: Em geral, qual a nacionalidade das pessoas que procuram a Acathi?

 

Rodrigo Araneda: Nós estamos há 10 anos, quase 11, funcionando. No começo, sobretudo, eram pessoas latino-americanas. E pessoas latino-americanas que vinham principalmente de países como Argentina, Peru, Chile, Brasil. Mais adiante, também do Equador. Atualmente, temos uma variedade de nacionalidades, já não apenas da América Latina, mas também de muitos outros lugares.

 

No início, estávamos em um espaço que se definia como LGBT, e isso impedia o acesso de gente que tinha medo de ser vista como LGBT. Então, agora estamos em centro cívicos e espaços que são muito menos visíveis.

 

Geni: E quais são os motivos que levam essas pessoas a migrar?

 

Rodrigo: Em Barcelona, a maior comunidade estrangeira que existe é a italiana. É uma comunidade muito numerosa, e que é constituída também por um grupo muito importante: o dos argentinos que têm nacionalidade italiana. Mas tem aumentado bastante a população chinesa, a paquistanesa – que é muito concentrada no centro da cidade –, a filipina. No nível da cidade logo vem o coletivo marroquino, o coletivo latino-americano, com um número grande de equatorianxs, bolivianxs e colombianxs.

 

São diferentes projetos migratórios. Algumas comunidades têm um projeto migratório econômico: vir, trabalhar, juntar um dinheiro e voltar ao seu país de origem, fazer uma vida diferente em seu próprio país. Geralmente quem tinha esse projeto migratório eram pessoas de países latino-americanos, como Equador, Bolívia. Há gente que, com o tempo, revoluciona seu projeto migratório e decide ficar porque vê uma diferença na qualidade de vida com relação à que tinha em seu próprio país.

 

Tem os projetos migratórios de pessoas – sobretudo paquistaneses e chineses – que vieram de lugares menos urbanizados, como o campo, e que encontram uma possibilidade de desenvolver uma ascensão social ao migrar. Isso lhes permite, digamos, diferenciar-se um pouco dos que têm a possibilidade de não migrar. No caso dos paquistaneses, outro exemplo muito interessante é que a grande maioria são homens. Eles vêm normalmente para gerar um capital, criar um negócio para poder casar-se e desenvolver seu projeto de vida. Quando as mulheres paquistanesas vêm para cá, ela são muito valorizadas. São mulheres estudadas e na hora de casar elas têm um valor muito alto para os paquistaneses, isso gera uma elevação do status social. Também existem os coletivos que migraram por razões de perseguição. Os colombianos, por exemplo, em sua grande maioria vêm fugindo das perseguições no campo, perseguições políticas. Esses já não querem voltar para o lugar de onde vieram. E temos a questão do asilo e do refúgio. Aqui em Barcelona temos gente solicitando exílio por orientação sexual e identidade de gênero, coisa que em outros países não se vê.

 

Geni: Um dos projetos da Acathi é o ensino da língua catalã. O idioma é uma ferramenta de integração? Como fazem com os imigrantes que não falam nenhuma língua de origem latina?

 

Rodrigo: Esse é outro tema. Temos cursos de catalão, mas também temos de castelhano, de inglês e as vezes alemão. Tivemos um pouco de russo também. E chamamos de competências linguísticas. Por quê? Porque se você está em outro país e necessita de um serviço, você precisa de uma ferramenta que te permita mover-se. E a primeira, que te permite a independência, é a língua. Nós não promovemos diretamente o catalão às pessoas que não falam nenhuma língua latina, nenhuma língua que não seja espanhola. Por quê? Porque acreditamos que uma pessoa que chega à Espanha, e que esteja em Barcelona, nem sempre deve ficar por aqui por toda sua vida. Então o que fazemos é oferecer os dois ao mesmo tempo, castelhano e catalão. O catalão te dá outro nível de aceitação cultural. O que acontece é que se essa pessoa imigrante vai buscar um trabalho e tem alguns rudimentos do catalão será recebido de uma maneira diferente da que não tem. Então é uma ferramenta de inclusão.

 

Geni: Gostaria de ouvir de você alguns exemplos concretos vindos do contato com os imigrantes que pedem asilo por conta de sua orientação sexual.

 

Rodrigo: É um tema bastante variado. Dependendo do país de onde você vem, existe um tipo ou outro de perseguição e uma visibilidade geral dessas pessoas ou não. Por exemplo, o caso de Honduras. Muitas pessoas nos solicitaram asilo, muitas o conseguiram principalmente pelo fato de serem perseguidas como ativistas. Lá, houve um caso em que um coletivo, uma associação LGTB, teve quase metade dos seus integrantes mortos. Então estamos falando de um perigo iminente: se você é ativista em Honduras, corre o risco de ser mortx. Já em outros lugares, como nas ex-repúblicas soviéticas, as condições sociais estão piorando, e isso pressiona as pessoas para que haja uma rejeição social potente. Pode haver perigo [de discriminação], principalmente se forem cidades menores, onde a rejeição se converte em agressão direta. Alguns meninos desses lugares, que estão vivendo aqui, tiveram dificuldades com esse tipo de rejeição.

 

Temos também muita gente que chega da África. Para muitos africanos, é extremamente difícil chegar até aqui: normalmente os exilados vêm pelas Ilhas Canárias. Então temos uma lacuna acerca das informações sobre exílio de determinadas partes do mundo. E há o caso do Líbano e do Afeganistão: para pessoas de lá, é mais fácil obter asilo de outros tipos do que solicitar abertamente o asilo em virtude da orientação sexual. Além dessa dificuldade, outros estados exigem provas de que você está pedindo o asilo por causa da orientação sexual. Como você pode demonstrar isso?!

 

Geni: As pessoas que mais procuram a Acathi se identificam como homens, mulheres, trans…?

 

Rodrigo: Em princípio, segundo o que sabemos (porque não tem como saber tudo), conhecemos mais casos de meninos. Depois, meninas e depois, trans. Ainda que a perseguição a transgêneros seja maior, acredito que as pessoas trans são as que têm menos possibilidades de sair do país ou inclusive de ter conhecimento da possibilidade de solicitar o asilo. Isso faz parte da exclusão em que vivem.

 

Geni: No Brasil temos muita homofobia, transfobia, mas também há um apoio do governo para alguns eventos específicos, como por exemplo a nossa Parada do Orgulho LGBT, que em São Paulo creio que mova mais gente, mais turismo e mais dinheiro do que o Carnaval, por exemplo. Mesmo se não for um governo que declaradamente apoie as causas LGBT, ele apoia esses eventos que movem dinheiro. O que acontece aqui, em relação aos governos eleitos e o suporte às causas LGBT?

 

Rodrigo: Eu queria diferenciar duas coisas sobre isso. O caso do governo autônomo da Catalunha e o governo central. Algumas coisas que estamos conquistando são tributárias aos trabalhos das associações, que aqui são bastante fortes e que possuem incidência política para conseguir mudanças. Isso não veio acompanhado de recursos no início. Nas marchas, por exemplo, aos poucos foram se agregando temas, a questão do casamento, uma série de mudanças. Houve sensibilidade de alguns governos municipais, e nesses lugares se desenvolveu um plano LGBT. Então não é somente apoiar a festa e os eventos da grana, mas apoiar o coletivo como um todo. Há alguns anos a prefeitura de Barcelona elaborou um estudo sobre as necessidades do coletivo LGBT. Com base nessas necessidades se desenvolveu um plano de ações, supervisionado pelas entidades. É outra forma de pensar. Há o plano as festividades e a questão da atratividade turística. Madri, que possui a maior parada da Espanha, ainda que em termos turísticos esteja bem, enfrenta o governo do Partido Popular [partido conservador espanhol]. Então, mesmo como evento turístico, houve cortes do governo, porque o tema do orgulho gay não se concilia ideologicamente com os planos do partido. Em Barcelona é diferente. Há subsídio para parada mais empresarial, a maior, que possui algum caráter reivindicativo, mas que ainda é bastante comercial, e também pra parada que chamamos de libertação LGBT, que é mais associativa, mais reivindicativa. Temos as duas coisas e ambas são subsidiadas.

 

Geni: E que outras associações se aproximam de vocês?

 

Rodrigo: Fazemos um trabalho em rede. Como somos uma associação de LGBTs imigrantes, trabalhamos com muitos temas que são transversais. Então estamos integrados no Conselho de Imigração da cidade. Também fazemos parte do Conselho da Juventude, que agrupa as entidades de jovens, e do Conselho LGBT da cidade, da federação estatal de gays e lesbicas e da ILGA. Em outros âmbitos, trabalhamos o tema da acolhida, então participamos do acordo mais geral que se chama acordo para uma Barcelona inclusiva, e com isso trabalhamos com uma série de entidades que se relacionam com a inclusão. Não somente a imigração mas também outras inclusões. Relações de gênero, sem teto, etc. Trabalhamos o tema da saúde em outros âmbitos que não só o LGBT, também porque o acesso à saúde é uma questão importante para os imigrantes. E em relação aos esportes. Porque pensávamos: de que forma podemos chegar aos coletivos aos que não estamos chegando? E uma das formas foi pelo esporte. Assim formamos nossa equipe de futebol feminino. Trabalhamos temas relacionados aos estereótipos em relação às pessoas imigradas. Tentamos estar envolvidos na maior quantidade de temas possível para que se visibilize tanto o tema LGBT como o tema da imigração. Formamos parte de uma federação internacional europeia sobre interculturalidade, que trabalha não só imigração mas também relações de gênero. Temos contato com a população cigana, e tentamos trabalhar conjuntamente com eles esse tema de gênero.

 

Geni: E como é a relação com outros movimentos sociais?

 

Rodrigo: Muitas das pessoas que estão envolvidas com a questão LGBT pensam que as associações LGBT são para pessoas LGBT. E nós pensamos, há muito tempo, em como funcionar ao contrário. As associações LGBT nascem do âmbito LGBT, mas fazem um serviço para toda a sociedade. Então é uma luta de toda a sociedade, do contrário não temos a cumplicidade de outros coletivos. Com o tema da imigração conseguimos a colaboração de outras entidades ao demonstrar que não estamos trabalhando por algo que vá contra o que eles buscam, ao contrário, estamos na mesma busca. Creio que esse é um âmbito muito importante pra trabalhar.

 

Outro tema é a inclusão comunitária das associações. Nossa sede original fica num bairro que não é no centro de Barcelona. E o que fazemos é trabalhar nos bairros para visibilizar o tema LGBT, colaborar por exemplo no Dia da Mulher e fazer entender que o Dia da Mulher não é um dia somente para a mulher, mas sim uma festividade de todos. Trabalhar temas relacionados aos bairros, aos problemas locais. Se ficarmos somente entre nós mesmos, se nos fecharmos entre quatro paredes, seremos os únicos que poderemos nos defender quando alguém nos atacar. Aqui, fazemos o contrário. Assim, quando nos atacam, outras pessoas também nos defendem.

 

Geni: E pensando desse modo, aproveitando o contexto da proposta de lei de revogação do aborto do Gallardón, como vocês lidam com isso, mesmo não sendo um tema usualmente relacionado com as reivindicações LGBTs? Como evidenciar que a nova lei do aborto afeta esse recorte populacional LGTB?

 

Rodrigo: Muitos coletivos já começaram a entender isso, que não se trata de defender apenas os direitos estritamente ligados à população LGTB. Como o acesso a saúde afeta a todos, todos precisamos defender o direito à saúde aos imigrantes. Temos que defender o acesso à saúde para todas as pessoas. As mudanças que estão acontecendo tocam em pontos tão sensíveis que as pessoas estão entendendo. Antes era mais assim: “isso não me afeta, não vou me mobilizar”. Mas a nova lei do aborto é uma vergonha, o direito ao aborto é um avanço que foi conquistado com trabalho conjunto, é resultado de muita mobilização da sociedade. Retroceder a um modelo de 70 anos atrás ou mais… assim vamos pra onde? Então ficar de braços cruzados é uma realidade que não pode ter lugar em nenhum coletivo.

 

Geni: Quando você me diz que existem restrições por parte do governo, inclusive relacionadas à parada do orgulho LGBT, isso me faz perceber que não se trata apenas de reformas sociais que aparecem com a crise. Se o PP opta por não apoiar a parada gay, e com isso ela perde dinheiro, está claro que não se trata apenas de reduzir gastos com investimentos considerados “supérfluos”. É uma decisão conservadora consciente, que inclusive custa dinheiro…

 

Rodrigo: Sim. Temos que pensar que o Partido Popular é um partido de direita e moralizado pela Igreja. Ele está envolvido com a Opus Dei e tem uma visão católica ortodoxa. Qualquer elemento que vá contra essa visão será negativo. Tratam do aborto falando que o óvulo já é vida! É a base da igreja, e se as pessoas não estão de acordo é preciso fazer uma lei impositiva. Não é assim. A sociedade chegou a um acordo sobre o aborto com a lei que tínhamos antes e agora essa lei é uma imposição. Se você não quer abortar, não aborte, mas não imponha isso às que querem abortar. Essa posição do governo se baseia em pressupostos morais de uma minoria social, não de uma maioria. A maioria se posicionou favorável ao aborto legal e é por isso que era assim antes.

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