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Transversões discursivas e trajetórias traduzidas
No Líbano, uma decisão judicial envolvendo uma pessoa trans no mês de janeiro resultou em narrativas discordantes no meio LGBTQ local e na mídia ocidental. Por Gabriel Semerene, de Beirute
Herança do mandato francês sobre o Líbano (1919-1946), o código penal libanês contém um artigo claramente inspirado em valores ocidentais vigentes à época. De fato, o artigo 534 emprega uma linguagem muito similar àquela do Código Penal de Vichy (1942) e de outros sistemas jurídicos europeus até recentemente, declarando que “toda conjunção carnal contra a ordem da natureza será punida por prisão de até um ano”.
A história da aplicação deste artigo é complexa. Ainda que sua mobilização esteja mais frequentemente associada a casos envolvendo atos sexuais entre homens e, em menor medida, entre mulheres, há igualmente ocorrências de recurso ao artigo 534 em casos de divórcio (mulheres alegando que seus maridos lhe impunham a sodomia a fim de anular o matrimônio) e em casos diversos onde “conjunções carnais” sequer haviam ocorrido. De fato, aplicações do artigo 534 em casos de homens considerados “afeminados”, pessoas trans* ou até mesmo no caso de uma mãe desejando punir o filho adolescente após tê-lo surpreendido vestindo roupas femininas, mostram uma completa fusão entre noções de atos sexuais, identidade e performance de gênero.
Entretanto, esta mesma linguagem ampla e indefinida abre caminho para interpretações divergentes que vêm minando a própria validade do artigo 534 pelo viés da jurisprudência. Em 2009, por exemplo, um juiz da corte de Batroun negou-se a aplicar o artigo 534 para processar dois homens apanhados em flagrante durante uma relação sexual, afirmando que era impossível definir o que é natural ou não. Mais recentemente, um novo caso de veredicto favorável foi imensamente celebrado – o que não o impediu de fazer emergir as tensões existentes entre as diversas denominações englobadas sob o acrônimo LGBTQ.
Em janeiro deste ano, o juiz Naji el-Dahdah, da região do Metn, absolveu uma mulher trans da acusação de conjunção carnal contra a natureza. A conjunção carnal, no caso, teria sido entre esta mulher trans e um homem cis. Segundo a organização al-Mufakkarah al-Qanuniyyah, a pessoa em questão era na realidade intersexual – ou andrógina, segundo as palavras do tribunal – , nascida com genitália incompleta e socializada como pertencente ao gênero masculino. Sua transição do gênero masculino ao gênero feminino, porém, a faz de todo modo uma pessoa trans.
O juiz decidiu que esta mulher trans, identificando-se com o gênero feminino desde sua infância, por “razões hormonais”, e havendo-se submetido à cirurgia de redesignação sexual, ainda nos anos 1990, não poderia ser classificada como um homem. Acrescentou ainda que identidades de gênero não são necessariamente dependentes do sexo biológico e que a autopercepção de cada indivíduo deve ser levada em conta. Por fim, estendeu sua reflexão para a noção de “conjunção carnal contra a natureza”, defendendo que relações sexuais entre indivíduos do mesmo sexo, ainda que contrárias à norma, não poderiam ser consideradas como não-naturais.
A ocorrência foi amplamente divulgada nas redes LGBTQ do país. No entanto, a narrativa criada por boa parte de militantes gays masculinos tendia a tornar invisível a importância da decisão do juiz el-Dahdah para a mulher trans em questão e para as pessoas em trans* no Líbano em geral. O que se ressaltava era a parte que dizia respeito às relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Alguns chegaram a afirmar que tratava-se do fim da interdição à homossexualidade no código penal.
Essa tendência foi ainda maior na imprensa ocidental. A versão britânica do jornal Huffington Post, por exemplo, não hesitou em adicionar um tom essencializante no título de sua matéria: “Lebanon: Being Gay Is Not a Crime Nor Against Nature” (Líbano: ser gay não é um crime nem contra a natureza). Ora, o conteúdo do artigo 534, assim como o veredicto do juiz el-Dahdah, nada dizem sobre “ser gay”, e sim sobre a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo. A assimilação da prática sexual e do desejo a uma identidade é característica de uma certa narrativa que associa sexualidade a identidade, muitas vezes vendo a primeira como algo adquirido desde o nascimento e regida por ordens binárias.
De certa forma, o que houve no caso foi um mecanismo de enquadramento, ou uma tradução enviesada, dentro de um discurso de “direitos gays” que – é necessário ter em mente – originou-se na militância gay estadunidense e levou à primazia de homens homossexuais sobre o restante da população LGBTQ na maior parte dos países ocidentais. Carros-chefe autodeclarados da luta LGBTQ, homens gays ocidentais acabaram por estabelecer uma certa hierarquia na obtenção de direitos, sobre a qual escreveu Erin Kilbride:
“Observadores ocidentais têm uma noção bastante rígida da trajetória pela qual direitos LGBTQ devem avançar. Esta trajetória coloca os direitos trans como um ‘próximo passo’ evidente, algo que só pode ser alcançado uma vez que as bases estejam lançadas pelo avanço das contingências L, G e talvez B (representando lésbicas, gays e bisexuais, respectivamente).”
Ora, esse padrão linear está longe de corresponder à realidade existente em outras partes do mundo. Enquanto o reconhecimento de direitos de pessoas trans* é muitas vezes ignorado ou diminuído em países ocidentais, essas gozam de conquistas legais e sociais em muitos países do Oriente Médio e do continente asiático. É o caso do Irã, cuja legislação prevê o reconhecimento de pessoas trans* e a subvenção de operações de redesignação sexual, ainda que, como indica Afsaneh Najmabadi, isto seja devido a uma ânsia do Estado iraniano por enquadrar indivíduos “desviantes” nos padrões de gênero binário. O reconhecimento, tanto legal quanto social, de pessoas pertencentes ao “terceiro gênero” existe em diversos países do Oriente Médio e do Sudeste Asiático, como as hijras no Paquistão e na Índia ou o terceiro gênero juridicamente aceito no Nepal. Na maior parte da América do Norte e da Europa ocidental, no entanto, a transexualidade é fonte de ansiedade e objeto de exclusão, inclusive no seio das comunidades LGBTQ.
Este tipo de dinâmica de exclusão de pessoas trans*, sabe-se bem, não se limita ao contexto libanês, mas faz parte de um processo generalizado. As narrativas e estratégias de militância do mainstream estadunidense se difundem pelo mundo – por vias, muitas vezes, não tão espontâneas assim – e reconfiguram a produção de identidades relacionadas ao gênero e à sexualidade.
Por que é necessário traduzir os fenômenos sociais envolvendo pessoas LGBTQ em países não ocidentais para uma narrativa ocidental? A diminuição do papel da mulher trans contra a qual se voltava o processo nas manchetes de jornais ocidentais serviu a um propósito: tornar a história mais palatável aos olhos do público ocidental. Os “direitos gays” tendo se tornado, nas duas últimas décadas, uma causa amplamente difundida – ao menos simbolicamente – nos países ocidentais, é mais aceitável uma manchete anunciando “avanços nos direitos gays no Líbano” que uma indicando que “processo contra mulher trans estabelece nova jurisprudência quanto a identidades de gênero e relações sexuais de mesmo sexo no Líbano”.
Tal aversão a outras trajetórias e narrativas dá-se por uma recusa em aceitar que a ideia de uma sexualidade binária dividida entre héteros e homos, biologicamente determinada para alguns, não é universal? Faria ela parte de uma mitologia opondo modernidade à tradição, civilização à barbárie, sugerindo que haveria apenas um caminho para alcançar um mesmo objetivo?
Por fim, questão antiga e polêmica: que pertinência ainda resta no uso do acrônimo LGBTQ, se algumas letras são sistematicamente mais valorizadas que outras, por sua vez sendo desprovidas de visibilidade e palavra? Que mecanismos são esses que levam, nos quatro cantos do mundo, à dessolidarização entre estes grupos, entretanto oprimidos por forças similares? Vale a pena insistir nessa solidariedade, se ela acaba por ser mais nociva que benéfica para os grupos que mais precisam dela?
Gabriel Semerene acompanhou grupos militantes de gênero e sexualidade no Líbano em seu primeiro mestrado (Política comparada – IEP Aix-en-Provence, França) e atualmente estuda a construção da masculinidade na literatura libanesa contemporânea (Literatura árabe moderna – Paris IV Sorbonne).
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Ilustração: Tiago Kaphan.