memória & justiça
Comissão Nacional da Verdade, ditadura militar, gênero e ditadura, guerrilha, Isabel Cristina Leite, mulheres, número 10
Às armas, mulheres!
A militância feminina na luta armada durante a ditadura civil-militar brasileira. Por Isabel Cristina Leite
O golpe civil-militar completa cinquenta anos neste abril. Ao longo da última década, o debate sobre o período foi saindo do circuito acadêmico, ganhando força na sociedade. Para além das discussões em torno da importância das redes sociais para ampliação e popularização de debates como este, há que se considerar que estamos em um contexto muito específico neste ano: há uma mulher na Presidência da República, cujo passado está intimamente ligado à militância armada contra o regime ditatorial. Além disso, estamos em processo de revisão e escrita do nosso passado autoritário, por meio das descobertas e debates públicos da Comissão Nacional de Verdade (CNV), instaurada em 2012, que têm sido divulgados à exaustão pelos meios de comunicação.
A imagem da guerrilheira Dilma Rousseff foi explorada durante a campanha presidencial de 2010, para o bem ou para o mal. Desde então, ficou ainda mais exposto que a grande parte da sociedade pouco sabe sobre o período. O imaginário sobre o comunismo e o engajamento na guerrilha, ainda hoje, é o mesmo dos anos 60 e 70. Entretanto, a questão sobre militância, e sobretudo a feminina, passou a ser um assunto que não diz respeito apenas aos pesquisadores.
A eleição de Dilma representou o êxito de uma geração de mulheres que passaram por preconceitos dentro das organizações, que foram barbaramente torturadas, estupradas, tiveram filhos em cativeiro, e que os viram, junto com seus companheiros, serem também torturados. Infelizmente, algumas delas não estão mais vivas para contar sua história.
A participação feminina na guerrilha refletiu uma mudança comportamental. Algumas chegaram a ocupar cargos de direção de ações e grupos, num contexto em que monogamia e virgindade não eram mais tabus dentro destas organizações. Sabe-se hoje que as relações de gênero no interior das esquerdas não se davam de forma tranquila. Romper com o conservadorismo existente dentro da esquerda clássica – principalmente do Partido Comunista – foi um dos obstáculos a serem superados pelas mulheres dentro da chamada “nova esquerda”, aquela que rompe com o PCB (Partido Comunista Brasileiro) e ganha mais força ao longo dos anos 1960.
Os historiadores Rodrigo Patto Sá Motta e Gerard Vicent, em estudos sobre a moral comunista, apontam neste espaço a crença nas diferenças inatas entre homens e mulheres, nas quais os papéis sociais eram definidos de forma natural, ainda que tentassem, em discurso, ampliar a participação feminina nas questões políticas.
O exemplo de Auxiliadora Bambirra, esposa de Sinval Bambirra – um operário eleito deputado estadual pelo PDT, em Minas Gerais, e cassado pelo regime –, serve para ilustrar tal afirmação. Em uma passagem de seu depoimento, ela afirma que o marido lhe cobrava uma militância política e ao mesmo tempo questionava sua atuação pública, reclamando maior atenção aos filhos.
Um levantamento feito pelo sociólogo Marcelo Ridenti, tendo como base o projeto “Brasil: Nunca Mais”, aponta que 18% dos grupos armados urbanos eram compostos por mulheres. Pode parecer pouco, mas é reflexo de parte da liberação feminina. As mulheres, no final da década de 60, tomavam parte nas lutas políticas, questionando o status quo, mesmo que as reivindicações não passassem necessariamente por lutas feministas.
A mulher na guerrilha rompe com o estereótipo da “mulher de cama e mesa”, mãe de família e esposa dedicada. Ademais, optar pela guerrilha é passar pelo difícil processo – físico, sobretudo – de transformar mulheres em soldados.
O próprio Che Guevara escreveu em seu Guerra de guerrilhas que a mulher é capaz de realizar os trabalhos mais difíceis e combater ao lado dos homens e que “embora mais débil que o homem, não é menos resistente que ele”. Em outro momento, afirmou que “a mulher como cozinheira [na guerrilha], pode melhorar muito a alimentação e, além disso, é mais fácil mantê-la em sua tarefa doméstica”. A proposta de Che Guevara seria a criação de “homens e mulheres novos” após a revolução, mas não de liberação imediata da condição feminina.
Algumas militantes só se deram conta dessa divisão sexual dentro das organizações e de questões feministas quando já se encontravam no exílio. Maria do Carmo Brito, que chegou a comandar a Vanguarda Armada Revolucionária, afirmou certa vez que “é claro que existia machismo na organização, mas, para mim, francamente, dentro do Brasil nunca fez diferença o fato de ser mulher. Isso não existia”. Na mesma direção, Maria José Nahas disse que “esse negócio de masculino, feminino, feminista, isso para mim não existia. Eu tomei conhecimento disso quando eu cheguei do exílio. Não existia”.
Por outro lado, outras militantes se descobriram feministas e começaram a refletir sobre questões de gênero e feminismo durante a prisão e a tortura. É o caso de Eleonora Menicucci, atual ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, que em entrevista à historiadora Joana Maria Pedro (referência nos estudos sobre História e Gênero), relata sua prisão e a tortura de sua filha de um ano e dez meses, com aplicação de choques elétricos.
Menicucci conta que as torturas contra a filha só eram realizadas na sua frente, e não junto ao pai da criança, também militante. Desse modo, ela tomou consciência da importância da maternidade para a mulher e de como qualquer instância de poder fazia uso do corpo da mulher e maternidade. Notou como a utilização deste corpo, durante a tortura, era diferente da dos homens e se evidenciava, sobretudo, na questão da maternidade. Os torturadores usavam a suposta fragilidade trazida pela maternidade e diferenciavam do modo como se tratava a também suposta força de uma virilidade masculina.
Outros relatos ilustram a força que vem da fragilidade ante situações-limite, como a prisão e a tortura. O caso de Criméia de Almeida já é mais conhecido, mas nunca é demais repetir: ela foi torturada grávida, mas não abortou. Quando a bolsa estourou, dezenas de baratas que estavam em sua cela começaram a subir em suas pernas para se alimentar do líquido amniótico. Teve que esperar horas para ser levada ao hospital.
“Quando o bebê nasceu, já o levaram para longe de mim. E o médico me costurou sem anestesia, eu gritava de dor. Daí passaram a usar meu filho para me torturar. Passavam dois dias sem trazê-lo para mamar. Quando ele vinha, estava com soluço, magro, morto de fome. Ele nasceu com quase 3,2 kg. Mas com um mês de vida pesava apenas 2,7 kg. Na infância, ele tinha muitos pesadelos, chegou a ter convulsões. É claro que ficaram traumas em todos nós. Quando eu estava presa e ouvia o tilintar de chaves na carceragem, que significava que alguém seria torturado, o bebê começava a soluçar dentro do útero”, contou Criméia.
Eleonora Menicucci afirmou, na mesma entrevista, que o questionamento sobre as relações de gênero voltavam também para o âmbito da esquerda armada. Ela relata ter sido uma das poucas mulheres a chegar ao comando de uma organização e justifica que isso só ocorreu pois teria, simbolicamente, “se travestido de masculino”.
A tamanha coragem destas mulheres – de pegar em armas contra o regime – acabou por alimentar um imaginário sexualizado em torno da militância, muito em função das ideias anticomunistas difundidas. As guerrilheiras representariam, assim, a antítese das mulheres que marcharam “com Deus pela Liberdade” a favor do golpe, em 1964. Prova disso são as várias “louras dos assaltos” ou “louras da metralhadora”.
A participação de Maria José Nahas em assaltos armados na organização Comandos de Libertação Nacional tornou-a conhecida como a “Loira da Metralhadora”. Foi, talvez, a primeira das várias outras existentes nas organizações. A peruca loira era um dos disfarces usados para despistar a polícia.
Diz Maria José: “Claro, a presença de uma mulher era… Aí saiu na imprensa a questão da loura. Era a Loira, a loira dos assaltos, a loura de Sabará. E quando eu fui presa, nossa! Eu fui interrogada dias para afirmar que eu era loura, se eu usava botas, se [tinha] um vestido verde esvoaçante. E eu fui enrolando aquilo, no final eu falei assim: ‘Gente, se é tão importante para vocês eu ser loura, tá ok! Eu sou loira, tudo bem’. Estava de botas e estava com um vestido, só que nada disso é verdade”.
Há clara alusão ao estereótipo de prostituta. Como explica Herbert Daniel, antigo militante da Vanguarda Popular Revolucionária, a “loura” era uma criação bem masculina: “Não é preciso ir muito longe para descobrir num dos mitos que a imprensa iria inventar sobre os guerrilheiros a extraordinária carga erótica. A loura era um tesão e tesava. Um fenômeno inquietante: uma mulher guerrilheira (…). O guerrilheiro fazia das mulheres A fêmea; não AS mulheres, A Fêmea, com F maiúsculo. O F de fálus. Natural. Numa época de castração exacerbada – e a censura o que era? – o complexo de castração encontrava saídas e símbolos”.
Na última semana de março, um antigo agente do Centro de Informações do Exército, Paulo Malhães, compareceu para prestar depoimento em uma das audiências da Comissão Nacional da Verdade. Malhães foi o primeiro torturador a confessar participação em diversos crimes durante o período ao revelar sua atuação na “Casa da Morte”, famoso centro de tortura em Petrópolis, na serra fluminense. De lá, somente Inês Ettiene Romeu saiu com vida.
Suas memórias trouxeram a público todo o horror do que aconteceu naquele lugar. Inês descreveu torturas e citou nomes de torturadores em entrevista para o Pasquim, em 1981. A CNV está avançando na pesquisa sobre a história da Casa, reconstituindo as circunstâncias das mortes e desaparecimentos ali ocorridos, o que é importante para o mapeamento dos centros de tortura no país e para conhecer a estrutura da repressão e seu funcionamento.
Um dos pontos que chama a atenção na fala do torturador é que na tortura ele “via as mulheres como se fossem homens”; contudo, relata que detestava interrogar mulheres e gays pois ambos preferiam morrer a entregar nomes de companheiros, ao contrário dos homens, que, segundo Malhães, falavam depois de algumas horas de tortura. “Você ‘ganhar’ uma mulher é uma coisa, assim, de outro mundo”.
A Comissão Nacional da Verdade possui um grupo de trabalho específico para cuidar das questões de gênero e luta armada. Os dados coletados até o momento mostram que cerca de 12% dos mortos e desaparecidos políticos são mulheres. Até o momento foram identificadas cerca de 50 mulheres mortas pela repressão durante a ditadura.
O debate sobre gênero e militância e os relatos sobre o período ainda estão muito centrados nas mulheres guerrilheiras, dos grandes centros urbanos, das classes médias. Falta ainda um estudo mais aprofundado sobre as mulheres do campo e indígenas. Ao que parece, a CNV está buscando preencher esta lacuna.
As discussões sobre o golpe civil-militar, que implementou um regime autoritário de 21 anos, devem servir para que mais militantes contem seu passado, para que a sociedade participe também dos debates e reflita sobre sua responsabilidade durante a ditadura. Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça.
Isabel Cristina Leite é doutoranda em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidad Nacional San Martin. Pesquisa história das esquerdas e ditaduras civis-militares no Brasil e na Argentina.
Livros:
AMARAL, Ricardo. A vida quer é coragem. Biografia de Dilma Rousseff. São Paulo: Sextante, 2010.
MERLINO, Tatiana & OJEDA, Igor (orgs.) Luta, substantivo feminino. São Paulo. Caros Amigos, 2010.
www.dhnet.org.br/dados/livros/dh/livro_sedh_mulheres_ditadura.pdf
Este livro é um dos desdobramentos do relatório “Direito à memória e à verdade”, da Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, lançado em 2007.
VIANNA, Martha. Uma tempestade como a sua memória. A história de Lia, Maria do Carmo Britto. Rio de Janeiro: Record, 2003.
XAVIER, Elizabeth. Mulheres, militância e memória. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
Reportagens:
Relatos das torturas de Inês Etienne Romeu para o Pasquim, em 1981.
“Os testemunhos das mulheres que ousaram combater a Ditadura Militar”. Revista Marie Claire. 23/09/2013
Filmes / Documentários:
“Que bom te ver viva”. Dir. Lucia Murat. 1989.
“Brazil, a report on Torture”. Dir. Hannah Eaves. 1971.
“A memória que me contam”. Dir. Lucia Murat. 2012.