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Lei de Meios argentina e a longa caminhada até uma comunicação não sexista
Violência midiática não se elimina por decreto, mas lei é um passo importante. Por Aline Gatto Boueri, de Buenos Aires
Em outubro de 2013, a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual (LSCA) da Argentina foi declarada integralmente constitucional pela Suprema Corte do país. Entre a sanção da lei pelo Congresso, em 2009, e aquela manhã de primavera em que a instância máxima de justiça argentina emitiu seu parecer, o Grupo Clarín e o Estado argentino travaram uma batalha judicial pela constitucionalidade de quatro artigos do texto. Todos eles estavam relacionados à propriedade dos meios de comunicação.
O conglomerado multimídia conseguiu uma cautelar que impediu, entre 2009 e 2013, a aplicação dos artigos 45, que limita o número de licenças nas mãos de uma mesma empresa de comunicação, e 161, que determina o prazo para adequação dos grupos de comunicação à LSCA. Os outros dois artigos que o Clarín questionava eram o 41, que regula a transferência de licenças, e o 48, que em seu segundo parágrafo determina que não se pode alegar “direitos adquiridos” para manter licenças que excedam o limite estipulado pela LSCA.
Durante esses quatro anos, foi o litígio que ocupou grande parte dos debates sobre a regulação dos meios audiovisuais no país vizinho. A dificuldade de aplicação dos artigos da lei que não eram objeto de disputa judicial parecia um tema marginal, enquanto o benefício da cautelar que cabia apenas ao Clarín era estendido a todos os outros grupos de comunicação.
A aplicação integral da lei ainda não completou um ano. Hoje, o Grupo Clarín está em processo de desmembramento, assim como os demais concessionários de licenças de comunicação. Por força da Constituição argentina – que determina que o Estado sustente o culto católico apostólico romano –, a Igreja Católica, junto com universidades e povos originários, tem privilégios para a outorga de licenças.
De fato, segundo números da Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (AFSCA), organismo autárquico previsto pela lei, a Igreja recebeu 26 novas licenças para rádio nos últimos quatro anos. Rádios de baixa frequência em “zonas de alta vulnerabilidade social” também receberam suas primeiras licenças: 27 é o número.
Ainda segundo a AFSCA, houve 33 reconhecimentos de canais de televisão de baixa potência e 1.077 autorizações e licenças a rádios AM e FM e televisão aberta e paga.
Gênero e violência midiática
Para além dos números, a lei garante que um dos objetivos da comunicação deve ser “promover a proteção da igualdade entre homens e mulheres, e o tratamento plural, igualitário e não estereotipado, evitando toda discriminação por gênero ou orientação sexual”. Esse trecho foi incluído na norma a partir da sugestão de organizações e organismos estatais que trabalham questões relacionadas a gênero e direitos humanos.
No artigo 71, a LSCA determina que quem “produzir, distribuir, emitir ou obtiver de qualquer forma benefícios pela transmissão de programas e/ou publicidade” deve respeitar a lei de proteção integral para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra as mulheres, sancionada em março de 2009 na Argentina.
Também sobre a publicidade, o artigo 81 determina que não deve haver “discriminações de raça, etnia, gênero, orientação sexual, ideológicas, socioeconômicas ou de nacionalidade, entre outros”. É claro que isso não revolucionou a forma de vender produtos de limpeza, desodorantes masculinos ou cerveja. Mas é interessante atentar para o modo como essas representações hegemônicas do masculino e do feminino podem ser questionadas a partir desse artigo.
Nada permite dizer que, ao reduzir a concentração dos meios de comunicação e determinar que conteúdos sexistas e discriminatórios sejam banidos, a Argentina tenha reduzido também a violência de gênero em suas emissões audiovisuais. A reestruturação dos serviços de comunicação audiovisual abre a possibilidade legal de que haja maior pluralidade nos conteúdos emitidos, o que enriquece o debate público e amplia o acesso à informação sobre gênero e sexualidade, em um cenário ideal. A emergência de outras experiências de comunicação tem potencial para instaurar novidades nas políticas de representação – as visões hegemônicas “do outro” terão de conviver com visões que esse mesmo outro cria de si.
No entanto, ainda é possível ligar a televisão e acompanhar programas em que mulheres são representadas como seres fúteis e cheios de preocupações não transcendentes. Embora seja possível reconhecer homens também nessa condição, o foco não costuma estar em suas bundas.
Num momento histórico em que o consumo midiático é marcado pela pulverização e segmentação, a questão passa a ser de que modo essa lei poderá aos poucos modificar a mentalidade dos produtores, ainda partidários da espetacularização como “método de trabalho”, e também de anunciantes, simpáticos a estereótipos como “estratégia de venda”.
Os estigmas relacionados a sexualidade, gênero, cor de pele, classe social, origem geográfica – e tantos outros – não desaparecem por decreto. Ainda que algumas experiências, como a da TV Pública e do Canal Encuentro, do Ministério de Educação, emitam programas específicos em que questões de gênero e sexualidade são abordadas dentro do marco da lei, eliminar estereótipos e garantir uma representação respeitosa em meios de comunicação ainda é um caminho a ser percorrido na Argentina. O instrumento jurídico e sua eficácia simbólica são um passo, um passo importante. Mas a caminhada é longa.
Colaborou Pedro “Pepa” Silva.
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Ilustração: Bárbara Scarambone.