Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Jornalismo vândalo

Uma conversa com o humorista, midiativista, entrevistador e Pink Bloc Rafucko. Por Cícero Oliveira e Marcos Visnadi

 

O Rio de Janeiro continua TENSO. A cidade é sede da Copa do Mundo, das Olimpíadas, da Rede Globo, do leilão do pré-sal e de tudo que constrói e acompanha isso: milícias, polícia assassina, máfias de políticos e empresários e (ufa!) protestos que, desde as grandes manifestações de 2013, não pararam de tomar as ruas da ex-capital do país. É nesse cenário que aparece um dos personagens mais representativos do midiativismo brasileiro.

 

Rafucko formou-se em rádio e TV na Universidade Federal do Rio de Janeiro – mas ainda não caiu nas garras da família Marinho, detentora de praticamente todos os cromaquis cariocas.  Desde 2008, ele produz, em seu quarto, vídeos que experimentam vários formatos  (o talk show seu projeto mais recente), juntando jornalismo, humor e militância com um objetivo bastante específico: “Você pode zoar tudo, mas não pode zoar o dono do dinheiro. E o meu humor é basicamente zoar o dono do dinheiro”.

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Como você começou a se envolver com movimentos sociais?

 

Acho que foi natural. Eu sempre falei muito de política, tanto nos meus vídeos quanto nas coisas que escrevo, e a política começou a virar um tema. Primeiro com a homofobia, mas depois vieram as eleições [municipais] de 2012, quando fiz vários vídeos, e ano passado teve a questão do Marco Feliciano e dos protestos. Aí, indo pra protestos, conheci lugares como áreas de remoção e foi natural me envolver com essas pessoas.

 

Você acabou se envolvendo mais depois dos protestos de 2013?

 

Com os protestos muito mais, claro, porque eles são um ponto de encontro. Mas nas eleições eu já tinha conhecido muita gente. Ao longo do tempo fui conhecendo mais e também tendo mais repertório. Se antes eu falava de homofobia, porque era algo diretamente ligado a mim, comecei a ter contato com gente de áreas de remoção, o que também acabou virando um tema. Depois, nos protestos, a questão da mídia e a da polícia militar ficaram muito fortes. Desde o ano passado, meu tema central é este: mídia e polícia.

 

A questão da homofobia acabou ficando de lado?

 

Volta e meia eu falo um pouco, mas pra mim acabou perdendo a dimensão. Porque são muitas questões problemáticas, de direitos humanos básicos. A homofobia é um deles, sim, mas eu não consigo mais fazer essa diferenciação. E acho curiosíssimo que o movimento gay estivesse falando contra o Marco Feliciano no ano passado e não estivesse presente na questão dos desabrigados e removidos de áreas de favelas e ocupações. Pra mim é a mesma questão, que é o direito à existência. Este é um direito básico: existir, com um teto em cima e um banheiro pra ir. Mas eu sempre faço questão de juntar as lutas. Sempre que estou em algum protesto, falo da homofobia, para as pessoas verem que é uma luta delas também.

 

Você acha que essa conversa rola bem?

 

Já vi algumas situações interessantes! Às vezes criando um mal-estar, o que não é a minha forma preferida, mas eu gosto de ver quando aparece, porque é tipo uma semente plantada. Se num fórum ou numa discussão, está todo mundo falando das remoções e alguém solta um “viado!”, você tem que explicar pra todo mundo que não é assim. Ou mesmo em protestos: teve uma vez que estava todo mundo gritando uma parada muito homofóbica, dizendo que alguém comia o cu do [ex-governador do Rio, Sérgio] Cabral. Muita gente gritando aquilo, e eu gritando sozinho: “Não! Para! Para!”. E comecei a falar com as pessoas à minha volta: “Cara, vocês estão falando que o cara é um babaca porque ele dá o cu, e isso é uma coisa que eu faço. E não é ruim! Ou vocês não estão ofendendo ele, ou estão me ofendendo”. Aí foi uma coisa muito incrível, as pessoas dizendo “é verdade, pode crer”. Acho muito legais esses momentos, de aceitação ou de estranhamento. Por isso a gente faz muita questão de levar a pauta da homofobia pra diferentes protestos, em que vamos vestidos de Pink Bloc.

O Pink Bloc tá rolando?

 

Rola quando as pessoas se empolgam. Na verdade não fui eu que inventei, a gente só organizou aqui, mas existe no mundo inteiro. Não é uma piada nova.

 

Eu ouvi uma entrevista sua pra CBN falando disso.

 

Foi uma entrevista muito boa [risos]. O cara pediu pra me entrevistar por causa do Pink Bloc que a gente fez na Parada [do Orgulho LGBT] aqui do Rio. Falou-se muito disso na época, saiu em todos os jornais, e os protestos estavam super em voga. Aí o cara da CBN ligou para me entrevistar, pra falar de homofobia, e, quando eu estava ouvindo o programa, antes de entrar no ar, ele começou a esculachar muito os protestos, fazendo aquela diferenciação de vândalos, Black Blocs, o discurso oficial do governo e das Organizações Globo, óbvio. Ele terminou esse monólogo falando: “Mas tem gente que não escolheu a violência para protestar, que escolheu o humor, exatamente para combater essa violência”. E, cara, não é nada disso, imagina! É uma paródia do Black Bloc, mas não é uma crítica! É usar essa linguagem de ir a um extremo por uma questão, então a gente era o extremista da sexualidade. Assim como um Black Bloc vai quebrar o vidro de um banco, a gente vai quebrar símbolos do patriarcado. É lógico que é difícil defender o amor defendendo a violência, mas acho que não necessariamente o Black Bloc seja violento. Uma violência contra um ser humano é uma coisa, contra um objeto é outra. Chamar de violento o ato de pessoas que fazem uma barricada com fogo ou que jogam pedras numa polícia que está vindo espancando, torturando as pessoas… É violento, de fato, mas não sei se classifico isso como violência.

 

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“Assim como um Black Bloc vai quebrar o vidro de um banco, a gente vai quebrar símbolos do patriarcado”

 

Mas, voltando à entrevista da rádio, a tentativa dele era desmerecer os protestos e botar os manifestantes como violentos. Acho que ele não se ligou que as pessoas do Pink Bloc estão em todos os protestos. Quando ele tenta colocar todo mundo como vândalo, está falando da gente também. E foi uma situação também de mal-estar, porque ele estava tentando falar de uma coisa bonitinha, engraçadinha, dos gays irreverentes, e acabou topando com um vândalo [risos].

 

A primeira ação do Pink Bloc foi justo quando estava começando a demonização do Black Bloc na mídia, não?

 

Não, foi um pouco antes. O primeiro foi no dia 17 de julho, no Leblon. Era um protesto contra o Cabral. Nesse dia a gente ficou com um pouco de medo de brincar, porque estava um clima muito pesado no Rio. Falamos: “Não vamos fantasiados. Levamos as roupas e aí a gente vê qual é”. Porque às vezes não é o momento de fazer uma piada. E foi a noite que eu fui preso, que foi a pior noite… Não, se bem que teve noites piores [risos].

 

Mas em algum momento rolou: botamos a camisa na cara, e o pessoal estava cantando: “Ei, Cabral, vai tomar no cu”. A gente esperou o grito baixar e começou a puxar o grito: “Ei, Cabral, toma da polícia, porque tomar no cu, eu te garanto, é uma delícia”. Esse foi outro momento engraçado, porque era uma galera muito hétero em volta, sabe uma coisa meio torcedor de futebol, com grito de guerra? Quando a gente cantou isso ficou todo mundo olhando, pra aprender a letra e cantar junto. A gente terminou de cantar a primeira vez, e todo mundo em volta estava com os olhos arregalados, só olhando. Aí um cara, assim [bate palmas lentamente]: “Pô, aí, vocês são muito corajosos” [risos]. A gente era, tipo, três pessoas.

 

Você gravou, aliás, o percurso todo, da sua prisão.

 

Sim. No vídeo dá pra ver a camisa rosa-choque que eu tinha posto. Foi a camisa que o cara pegou e botou pedra portuguesa dentro, fez uma trouxinha…

 

Foi a primeira vez que você teve um contato mais, digamos, íntimo com a polícia?

 

[Risos] Olha, eu já tive contatos mais íntimos com policiais, mas em serviço acho que foi sim. Agora teve a intimação da polícia civil. E nos protestos o contato com a polícia é sempre bem próximo, a gente discute bastante. Mas eu já trabalhei na polícia civil…

 

Ah, é?! Conta isso pra gente!

 

[Risos] Mas não era policial, não. Tem um programa aqui no Rio que chama Delegacia Legal, com psicólogos e assistentes sociais fazendo um pré-atendimento. Eu era da comunicação e trabalhava na delegacia do turista, fazendo traduções e tal. Mas eu era jovem e precisava da grana [risos].

 

E isso te deu umas dicas de como a polícia funciona, de como é o lado de lá?

 

Muito! Eu fiquei um ano dentro de uma delegacia, vi as condições precárias em que operam. Lembro de uma mulher, uma prostituta, que estava com um russo que morreu dentro de um quarto de hotel. Ela era a maior suspeita, foi meio que presa, e não tinha lugar pra ela ficar. Então ela ficava ali comigo, no hall, varria a delegacia [risos], com a porta aberta! E conversava comigo, dizia que não tinha matado o cara. Que situação é essa?! Pra ela, pra mim, pra sociedade. E lembro de moleque que era pego roubando, levando porrada lá dentro. Nunca vi, mas ouvia. Teve uma vez que precisei sair, porque a parede da delegacia tremia! Nesse sentido, sim, isso me deu muito conhecimento do que é a polícia brasileira.

 

Você acha que dá pra dialogar com a polícia? Que tipo de diálogo dá pra ter com essa instituição?

 

Eu acho que dá. Às vezes parece impossível, e talvez até seja. Por isso que o diálogo deve ser aberto pra quem quiser entrar, pra toda a sociedade. Porque a decisão de como a polícia age não é só dela, nem deveria ser! Deveria ser da sociedade pra quem ela trabalha, do chefe da polícia, que é o povo. Até tem o povo fascista, óbvio, mas duvido que a maioria dos brasileiros queira um monte de homem armado vindo pra cima deles próprios.

 

O que a gente tem que pensar, nessa questão da dificuldade do diálogo, é que o treinamento militar é muito forte. Não é um treinamento, é uma lavagem cerebral. Pro cara chegar a vestir a farda, ele teve que lamber a bota do comandante! Uma coisa completamente sem sentido, apenas de humilhação, apenas pra botar ele a teste: será que ele obedece qualquer ordem, até a mais esdrúxula de todas? Porra, recentemente teve um cara que morreu no treinamento da polícia militar porque ficou muito tempo no sol. Torturaram até a morte uma pessoa só pra ver se ela aguentava. Com essa forma de treinar a polícia, dificilmente um bom papo vai convencer esse cara de que ele tá errado! É uma decisão que já foi feita lá atrás, ele tá em outro estágio de consciência. Só que uma coisa que não podem controlar é o sangue que corre na veia deles, o fato de que eles são humanos, não robôs. Eventualmente, isso desanda. Por isso eu não diria que é impossível, porque é incontrolável. Eles podem morrer sendo esses humanos horrorosos, robôs, feitos pra matar, mas acho que tem alguma coisa ali que a gente pode alcançar.

 

No ano passado a gente viu alguns momentos, durante as manifestações, em que um policial parava de reprimir, desistia.

 

Sim. Eu sempre questiono muito os policiais, pessoalmente, ou conversando, ou, num momento mais exaltado, gritando. Teve um dia absurdo, em que eles tinham cercado a Câmara. A gente estava lá protestando contra o aumento do ônibus, um monte de miliciano lá dentro, e os policiais virados pro povo, empurrando. Então eu ficava falando pra eles: “Cara, você tá sentindo orgulho ou vergonha? O que você tá fazendo aqui? Quando você chegar em casa, vai falar pro seu filho o que, que veio proteger mafioso ou veio proteger o povo?”. E nesse dia dois policiais choraram enquanto eu ficava perguntando isso. Foi muito forte pra mim. Na hora eu pensei: “Caralho…”, eu não esperava isso, só estava muito puto, achando eles uns babacas, e foi nesse dia que eu tomei essa consciência de que precisa ser um diálogo entre iguais, a gente não está conversando com robôs. Fiquei muito esperançoso, pensando que algo podia mudar. Mas depois vi que, beleza, o cara chorou, mas dez minutos depois estava metendo porrada em todo mundo. É isso, o cara está condicionado a obedecer ordem. Hoje em dia um cara consciente não está dentro da polícia militar, porque, se ele criticar, vai preso. Realmente, é um diálogo muito difícil.

 

Você acha que a truculência da polícia vem só desse treinamento ou ela tem outras fontes?

 

O treinamento é para atuar contra um inimigo. Então, a partir do momento em que a polícia vai controlar uma manifestação, só tem dois agentes ali, o policial e o manifestante. E ele elege o inimigo, é muito claro que os manifestantes são o inimigo. Também tem muita droga, é visível que os próprios policiais estão sob o efeito de drogas.

 

E tem a frustração pessoal. Os policiais também são o povo, tudo o que a gente tá manifestado ali é por eles, são questões que eles também sofrem. E a gente sabe que o ser humano lida com frustração de diversas formas, e uma delas é a porrada. Assim como tem manifestantes que vão com uma sanha de bater, porque estão indignados. Eu vejo isso muito mais como escape do que como problema em si, o problema tá lá atrás, foi o que trouxe a gente para esta situação. No caso da polícia, eles conseguiram se tornar uma pauta porque a responsabilidade é minha também, então vamos conversar: ou eu não te dou dinheiro pra você comprar uma máquina de tortura, ou te dou dinheiro pra você fazer uma coisa que não seja isso.

 

Você vê homofobia por parte da polícia?

 

Sim! No dia que eu fui preso, o cara só gritava: “Viado, viadinho, todo mundo é viado aqui”… Era isso: pornografia, homofobia e infantilidade. “Vou enfiar pedra no cu, viadinho. Parece que nunca brigou na escola”. Não, nunca briguei na escola. Isso é um pré-requisito pra existir, pra ser uma pessoa decente? Pra ele é, porque é uma questão supermachista, o homem tem que brigar na escola.

 

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“No dia que eu fui preso, o cara só gritava: ‘Viado, viadinho, todo mundo é viado aqui’… Era isso: pornografia, homofobia e infantilidade”

 

 

Você chegou a fazer alguma reclamação na ouvidoria, a entrar com alguma ação institucional contra essa situação?

 

Cara, eu ia fazer uma queixa no Ministério Público e na Coordenadoria de Diversidade Sexual do Rio, mas, assim, o trabalho deles… Óbvio que tem que ser um trabalho direcionado pra diversidade sexual, mas são pessoas muito pouco comprometidas com lutas por direitos. É pelos direitos dos gays ricos de classe média. E, eventualmente, de algum gay pobre, pra fazer um teatro ali. Aí eles iam fazer o quê? Emitir uma nota pra polícia, e o que mais? Acho que há formas mais efetivas de mudar.

 

Quando você faz os vídeos, pensa em quem é o seu público?

 

Não, o público é todo mundo, quem quiser ver. Eu penso contra quem estou falando, em quem posso estar atingindo, tanto pro bem quanto pro mal.

 

Você fala “tanto pro bem quanto pro mal” porque existe essa possibilidade de ofender…

 

Sim. Às vezes eu ofendo, mas é pra ofender mesmo, é essa a intenção. Mas tem que se ligar, porque às vezes o que você está só achando engraçado vai ser tomado por alguém como ofensivo, então ou você banca isso ou vê uma forma alternativa.

 

Já rolou alguma ofensa que não estava planejada?

 

Acho que não. Rola muito de gente não entender a ofensa, a ironia. Um vídeo que as pessoas interpretaram mal – acho que elas entenderam, mas não concordaram – foi sobre o comercial da cueca do Neymar, que eu fiz convocando um boicote à Lupo. Muita gente veio criticar falando que eu estava exagerando, e muita gente ligada ao movimento gay, o que me surpreendeu. Óbvio que eu sabia que um monte de hétero ia dizer que eu estava exagerando, como sempre, mas tinha muito gay.

 

 

Como você vê isso de usar a ofensa como crítica?

 

Certas ofensas agridem mais ao xingamento do que a quem é xingado. Se você chama alguém de puta e essa pessoa é muito ruim, você está ofendendo mais à puta do que a essa pessoa. Como é que eu vou chamar o Sérgio Cabral de viado? Eu estou ofendendo os viados, e tenho que ofender o Cabral!

 

A ofensa tem que ser uma coisa direta e ligada ao que aquela pessoa é. A crítica que eu faço aos políticos é mais efetiva se for sobre o que eles fazem de verdade. Se eu dou uma zoada no que a pessoa faz e ela se ofende, é ela que tem que mudar. Se eu chamo um cara de ladrão e ele rouba dinheiro, beleza, porque quem rouba dinheiro é ladrão. Isso é dar os nomes corretos. Já os xingamentos, com o tempo de militância, acabaram perdendo o sentido. De vez em quando eu me pego, pelo costume, com vontade de chamar alguém de viado, mas isso já não me dá o alívio que dava antes – eu quero muito agredir a pessoa e isso não agride mais. E, quando me chamam de viado, dá vontade de rir [risos]. “Cara, você tentou muito me ofender, e falou uma coisa que eu sou e que não é ruim.”

 

Falando sobre isso, não tem como não lembrar de gente como o Rafinha Bastos, o Danilo Gentili… O seu projeto de talk show foi por causa desses caras? Chega de talk show reaça?

 

Na verdade a ideia do talk show já tem um ano, é que agora tive coragem de fazer. Eu não vejo o talk show desses caras, mas pensei que, já que ia fazer a campanha [de crowdfunding], podia dar uma zoada, porque esses caras recebem muitas críticas. Aí assisti um episódio de cada: do Jô Soares, do Rafinha Bastos e do Danilo Gentili. Cada um com uma figura icônica: o Eike Batista no Jô, a Rachel Sheherazade no Gentili e no Rafinha era o Luan Santana, que não tem nada de mais, mas era bem chapa branca, o engraçadinho comercial.

 

Quais são as referências pro seu talk show?

 

É o David Letterman, que eu assistia muito. Na verdade, é uma brincadeira com o formato desse tipo de programa. Nos meus vídeos eu exploro muito os formatos: a mesa redonda, a novela, o telejornal… E vejo que tanto o Jô, quanto o Gentili, quanto o Rafinha se espelham muito nesses talk shows americanos. O que pode ser bom, mas também pode ser vazio. O do Rafinha tem o formato direitinho: o stand-up inicial, a bandinha, a bancadinha… só que ele não fez nenhuma piada engraçada. Teve um momento em que entraram duas mulheres e ele e o Luan Santana fizeram concurso de quem tirava o sutiã mais rápido. O David Letterman até faz piadinhas de salão, mas é bem produzido.

 

A minha intenção é fazer os convidados falarem. Tem coisas que eu quero perguntar pra essas pessoas. Óbvio que todo entrevistador quer fazer perguntas que ninguém fez antes, mas eu quero tentar abordar outros ângulos, e ao mesmo tempo zoar o formato do programa.

 

Dois entrevistados do seu talk show, o Jean Wyllys e o Marcelo Freixo, são do PSOL. Você tem uma ligação com o partido?

 

Ligação com Freixo [risos] ? Eu chamei eles porque têm um trabalho bacana e coisas a dizer, não por serem políticos ou do PSOL. Geralmente, quando tentam fazer essa ligação, é pra tentar me desmerecer. Primeiro que isso não me ofende, porque não acho que seja um crime ser ligado a partido político. Segundo, acho que isso muito mais favorece o PSOL do que me desmerece, porque eu estou falando de direitos humanos, de luta contra a homofobia, e não estou fazendo politicagem. Apesar de eu ter várias críticas ao PSOL, acho que isso é um grande elogio a eles, são pessoas que estão abertas ao debate, que botam a cara.

 

Além do Letterman, quais são as suas referências de humor? Na tradição brasileira tem o Costinha, A praça é nossa, um tipo de humor…

 

Muito repetitivo.

 

É, e preconceituoso também, não?

 

É, tem que ser de fácil compreensão, né? Se existe muito preconceito na sociedade, então todo mundo entende uma piada assim. Mas acho que aprendemos que essas piadas ajudam a perpetuar preconceitos, elas não são tão inocentes como podia se pensar em outros tempos.

Agora, cada país desenvolve um tipo de humor. Um amigo meu estava tentando explicar pra um gringo o que é um bordão. Ele dizia: “Cara, toda semana, no mesmo horário, o mesmo personagem vive a mesma situação e fala a mesma coisa”. E esse é o humor de A praça é nossa e Zorra total. Eu realmente acho que o povo brasileiro não é estúpido como o humor brasileiro. Talvez uma massa assista porque é o que lhe é oferecido, mas acho que são pessoas inteligentes o suficiente pra entenderem mais do que um bordão, que é uma coisa de macaco: você acende a luzinha e a pessoa reage da mesma forma. Na medida que eu puder fazer um humor que não seja isso, eu vou fazer. E não só eu, óbvio, tem muita gente fazendo, a internet ajuda muito nisso, porque você não tem um intermediário, que é uma firma tão comprometida com o comercial que acaba comprometendo todo o conteúdo do programa. Acho que a gente está caminhando no sentido de um humor mais sofisticado.

 

Mais profissionalizado também?

 

Não sei se isso, porque o Zorra total é muito profissional. Inclusive bons profissionais escrevem, só que o briefing deles é ser ruim, e isso vem da cabeça do pessoal do comercial da televisão, que são uns dinossauros. São eles que comandam, e eles estão cagando para mudanças sociais, se o humor é sobre uma pessoa oprimida, uma mulher encoxada no metrô. O importante é ter tantas pessoas com a televisão ligada para vender pro Guaraná Antártica, é isso. Não dá pra esperar nada de um veículo em que o dinheiro é o centro, que é a televisão.

 

E como você vê esse humor que agride?

 

Acho que você tem que pensar, quando faz humor, o que é o motivo do riso. Óbvio que algumas coisas não tem como controlar. Você vai fazer um stand-up e vai ter alguém rindo de você só porque você é magro e alto. E é ótimo que cada um ria de uma coisa, só que você tem que pensar no que quer. Pra mim, o motivo do riso não pode ser a pessoa que sofre preconceito todo dia, porque isso já existe, já é um problema. O problema é que tem que ser o motivo do riso. Cada um faz humor do que quiser, é livre pra isso. Só que você tem que estar pronto pra ser rechaçado se o objeto de riso que escolheu é uma pessoa que não está disposta a isso porque ela é objeto de agressão todo dia.

 

Eu não quero que o meu riso seja uma dificuldade a mais para uma pessoa que já tem uma vida difícil. O riso tem que provocar um alívio nessa pessoa, não uma agressão. Mas essa é uma linha muito tênue, você tem sempre que se botar no lugar da pessoa. Esse exercício da empatia é muito difícil, às vezes é desagradável, e pra alguns comediantes não só é desagradável como significa que eles não vão ter mais repertório.

“Esse exercício da empatia é muito difícil, às vezes é desagradável, e pra alguns comediantes não só é desagradável como significa que eles não vão ter mais repertório.”

 

 

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Você se vê como comediante, ativista ou jornalista?

 

Cara… tudo isso. O que falam que eu sou, eu sou [risos].

 

Como você faz os seus vídeos? Tem uma equipe?

 

Tenho uns amigos que ajudam, mas basicamente sou só eu. Inclusive está sendo uma dificuldade com o talk show, porque tenho equipe pela primeira vez. Quando sou só eu, foda-se, fecho o meu quarto e vou pirando. Com outras pessoas não, porque elas reagem, dão opiniões. Às vezes a vontade é falar: “Cara, cala a boca, apenas faz” [risos]. Por um lado é bom, porque é enlouquecedor ficar só eu fazendo tudo, mas por outro lado me trava um pouco, porque os meus vídeos são uma piração, é total falta de senso do ridículo. Já com alguém ali você começa a ter uma censura.

 

E você faz tudo no seu quarto?

 

Pra um ou outro eu saio, mas no geral é no meu quarto. Tem uma parede azul, com dois metros de tecido presos com fita crepe [risos].

 

De onde veio a ideia de fazer os vídeos?

 

Foi uma necessidade. Era isso ou voltar pra um emprego muito ruim.

 

Você consegue tirar grana disso?

 

Não, eu continuo fazendo empregos mais ou menos. Quer dizer, hoje em dia eu faço coisas muito legais. Antes eu trabalhava com coisas mais burocráticas, agora já consigo fazer coisas mais criativas, em cinema, TV, teatro. Faço também oficinas de vídeo, e aí é uma coisa ligada mais à militância, pra adolescentes falarem sobre feminismo ou coisas assim.

 

Você não pensa comercialmente nos vídeos que faz pro seu canal?

 

Eu gostaria muito de ganhar dinheiro com eles, mas é difícil ter interesse comercial. Eles são muito baratos, não precisam de uma grande estrutura, mas é delicado. Você pode zoar tudo, mas não pode zoar o dono do dinheiro. E o meu humor é basicamente zoar o dono do dinheiro, então talvez por isso seja mais difícil pra mim. Mas tudo bem, não vou morrer de fome, tem outras formas de viver.

 

Como é fazer o seu tipo de trabalho no Rio de Janeiro, onde a Globo tem uma força imensa?

 

Aqui, a grande opção do trabalho com audiovisual, talvez a única, é a Globo. Por isso é muito difícil encontrar artistas que critiquem a Globo. Eu acho que nunca me dobraria por causa de dinheiro, mas tenho amigos que entraram na emissora e viraram reaças. Como alguém se submete a isso? Óbvio que o aluguel da casa do cara tem um grande peso, comer sempre em restaurantes, talvez esses sejam bons motivos. Volta e meia eu estou fodido e penso como seria agradável ter essa estabilidade, esse dinheiro… Só que, por outro lado, que bom que eu estou fora. O básico do artista é se expressar. Se eu corto a minha expressão, deixo de ser um artista. E eu conheço muita gente que gostaria de se expressar, num momento muito crítico do país, e não está se expressando pra poder manter o seu emprego e o seu status. É uma forma de censura não declarada, mas todo mundo sabe que isso existe.

 

Você notou alguma diferença nesse quadro desde os protestos do ano passado?

A questão da Globo é muito presente nos protestos, porque muita gente vê aqui [no Rio] o que acontece na realidade, e depois vê na Globo outra coisa. A Globo é muito próxima da gente, qualquer coisinha que você faz pode parar no Jornal Nacional. E o fato do Rio ter a Copa e as Olimpíadas faz que a gente passe muito mais intensamente por esse processo que o Brasil inteiro está passando, esse capitalismo selvagem, o dinheiro devorando as pessoas e os interesses comuns.

 

As pessoas te reconhecem na rua?

 

Bastante, ultimamente. Principalmente porque, Rio de Janeiro, classe média, isto aqui é uma província.

 

E como você lida com a exposição? Isso te incomoda?

 

Eu acho irado. Muita gente vem falar “ai, desculpa, sei que deve ser chato”, e, cara, eu nunca acho chato, mesmo quando estou de mau humor. Outro dia eu estava no mercado, um dia muito ruim, com o olho marejado, quase chorando, fui comprar leite condensado [risos], e um cara chegou: “Porra, Rafucko!”, e me deu um convite pra peça dele. Mesmo que seja inconveniente, eu consigo fazer o trabalho que faço por causa disso, então é sempre muito revigorante.

 

Você se acha pessoalmente engraçado?

 

Não, eu me acho muito ruim [risos]. Quando eu penso uma coisa que acho engraçada, tento compartilhar, e muitas vezes fico falando um monte de coisas e as pessoas falam: “Ok, chega…” [risos]. E às vezes o vídeo não é nada engraçado pra mim, eu faço porque estou muito puto. O vídeo do Jornal Nacional foi assim, eu não ri nada fazendo aquilo. Mas quando vejo as pessoas vendo, elas riem de uma forma que eu penso “pode crer…”, aí consigo ver a graça.

 

Agora, eu tenho medo de revelar, mas na verdade eu não faço os vídeos para serem engraçados, era pra ser bem-feito. Mas eles são tão malfeitos que acabam ficando engraçados. Aí eu aceito, finjo que era esse o objetivo [risos].

Ilustração: Nara Isoda

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