cinema
cinema, Henrique Codato, homoerotismo, Nara Isoda, número 13
Desejo de estar junto
Uma visão do homoerotismo nos filmes Mal dos trópicos e Um estranho no lago. Por Henrique Codato
Filmar é encenar um desejo, colocá-lo em movimento a fim de fazê-lo funcionar sob uma determinada economia de forças. Um filme é sempre a mise-en-scène de um desejo; um desejo que reúne aquele que filma, aquele que é filmado e aquele para quem se filma em torno de uma mesma ficção.
De fato, no cinema, tudo parece acontecer nessa espécie de entrelugar que é o filme, essa zona de indeterminação atravessada pelo desejo de ver e de fazer ver, criação compartilhada que mobiliza as forças que nos habitam. Na experiência do filme, algo acontece no mundo interior do sujeito de modo a transformar sua maneira de perceber e de se relacionar com o mundo exterior. Aquele que sai de um filme nunca é o mesmo sujeito que nele entrou.
A fim de pensar sobre esse desejo que nos interpela e nos apanha em nossa relação com a imagem cinematográfica contemporânea, proponho estabelecer um breve diálogo entre os filmes Um estranho no lago (L’inconnu du lac, 2013), do francês Alain Guiraudie, e Mal dos trópicos (Sud Pralad, 2004), do cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul. Considero o homoerotismo que permeia esses filmes para além de seu aspecto meramente identitário ou representacional, mas encarando-o como “uma conduta diante do mundo” (como diz Michel Foucault em Microfísica do poder), uma ética de vida que envolve também uma estética própria, um modus operandi particular. Encontrar as marcas que essa suposta estética deixa na escritura fílmica é o que interessa, precisamente, neste ensaio.
O encontro e a deriva
No livro O homem que amava rapazes, Denilson Lopes aponta o camp como uma categoria estética relacionada a uma sensibilidade gay, que exalta o exagero, o artifício e a afetação. Ao aventar uma política baseada no diálogo, na ambivalência e na fluidez, o camp faz com que as fronteiras identitárias se tornem mais moventes, menos rígidas.
Como sabemos, o homoerotismo privilegia os afetos, a amizade, o jogo, a sedução, o encontro e a deriva, elementos que surgem como importantes contrapontos de um modelo essencialmente patriarcal e heteronormativo de sociedade. Como construção subjetiva, o homoerotismo impõe ainda um questionamento dos papéis e lugares fixos da cultura e opera como uma figura forte da ambiguidade e do duplo, pois embaralha as identidades, coloca em questão a diferença, constituindo-se como um signo forte da transgressão e dos prazeres do corpo. Ao distanciar-se da relação do sexo com a procriação, o desejo homoerótico destaca a sexualidade como potência, exaltando a ambiguidade, a sugestão, a simulação e a transposição de papéis.
Os dois filmes que vamos visitar abordam o desejo homoerótico a partir do signo maior da perseguição, seja por meio da encenação mitológica de uma caça febril, em que caça e caçador se confundem, como vemos acontecer no filme de Weerasethakul, seja pelo animado cruising que Guiraudie mostra de forma intensiva, ao registrar o ir e vir dos corpos masculinos em busca de prazer. Suas narrativas são moduladas e conduzidas pela hesitação vivida pelo sujeito apaixonado frente ao objeto de seu desejo; trazem em cena o despontar de uma violenta paixão, oferecem-nos a encenação de um pathos (embora a noção de pathos esteja habitualmente relacionada ao sofrimento e à paixão, para a retórica aristotélica ela funciona, também, como uma ferramenta de persuasão do discurso, utilizada na intenção de emocionar; portanto, de provocar movimento).
Eros e Thanatos
Completamente à deriva de seus próprios sentimentos, os protagonistas dessas duas histórias são sujeitos em crise, marcados radicalmente pela intransponível cisão que os separa. Ao serem tensionadas pela força do desejo erótico que consome os personagens, as narrativas dos filmes sofre uma espécie de desestabilização, embaralhando, com isso, os (frágeis) limites que separam natureza e cultura, vida e morte, Eros e Thanatos.
Os dois cineastas escolhem a natureza como cenário para a encenação de suas perseguições. Nas obras de ficção, o ambiente natural geralmente aparece representado sob o signo da hostilidade e da ameaça, fazendo da cultura um elemento transformador, apaziguador, domesticador. A cultura vem fornecer à natureza medidas humanas, que servirão de proteção para um mundo a princípio adverso, mas passível de ser subjugado e subordinado às necessidades do homem.
Há, por trás desse pensamento, uma nítida dualidade, que coloca em atrito as noções de natureza e de cultura. No caso de Mal dos trópicos, essa dualidade se estende para a forma da narrativa (duplicada) e se encontra representada na própria identidade dos personagens: Keng, o soldado, “homem da guerra”, e o camponês Tong, “homem do campo”. A antítese entre a cidade e a floresta se torna, nesse sentido, uma importante figura da ambiguidade, e não é por acaso que esses dois espaços são convocados para acolher cada uma das metades do filme.
Percebe-se que o pudor exagerado demonstrado por Tong durante toda a primeira parte da história funciona como principal força motriz para os incessantes investimentos de Keng. Isso é notável em diversas sequências do filme, como quando vemos os dois jovens à beira do lago, sobre o trapiche, em meio a uma série de jogos infantis; ou no interior do templo-caverna, em companhia da vendedora de flores; ou, ainda, na sala escura de cinema, com os avanços da mão do soldado por entre as pernas do camponês. Tal tensão atinge seu limite máximo no momento da estranha despedida dos dois jovens, quando vemos Tong lamber a mão do amante, passando-a avidamente pelo rosto, como se fora um animal, uma besta selvagem. Depois disso, o filme se rompe e renasce em seguida, mostrando-nos a desenfreada busca do soldado (ainda o mesmo Keng) por um tigre-xamã (identidade assumida agora por Tong) no coração da floresta tropical.
Somos bestas selvagens
Como anuncia o prólogo da narrativa que se (re)inicia, dessa vez sob um regime expressamente mitológico: todos nós somos bestas selvagens. Nosso dever como seres humanos é o de nos tornarmos como domadores, que mantém seus animais nas jaulas, lhes ensinando a desenvolver tarefas alheias a sua bestialidade. Ora, se essa frase do escritor japonês Ton Nakajima foi escolhida por Weerasethakul como epígrafe para seu filme é porque ela sintetiza o verdadeiro tema da obra: o eterno conflito entre a razão e o instinto, entre as ordens cultural e natural. Ao adentrar a floresta tropical, lugar iniciático por excelência, repleto de mistérios e de metamorfoses, o filme se transforma em uma lindíssima metáfora visual da experiência íntima e arrebatadora do apaixonar-se.
Já no que tange a Um estranho no lago, a praia (ou talvez fosse melhor dizer as margens do lago) é o espaço comum por onde, em pares ou solitários, circulam os personagens do filme. Ali eles se esbarram, se cumprimentam, falam de amenidades, trocam olhares e, por vezes, também insinuações. Sabe-se muito pouco sobre esses homens anônimos (pois, sim, esse é um universo exclusivamente masculino, como deixa claro Franck em conversa com um desconhecido que, ao passar, lhe pergunta sobre a possível presença de mulheres no local). Sabemos apenas que eles chegam de carro – tal como mostra a sequência inicial, que reaparece outras vezes no decorrer do filme, funcionando como uma referência temporal para a narrativa – e que ali se desnudam, instalando-se em volta do lago e oferecendo seus corpos nus ao olhar voyeur do espectador.
No universo homoerótico, o gesto do flerte está fortemente associado àquele da perambulação, da flânerie. Ela permite a intervenção do acaso no fluxo dos acontecimentos da vida, promovendo encontros intencionais ou involuntários. Entre visibilidade e invisibilidade, os banheiros, as estações, os parques, as praças, os cinemas, as praias tornam-se locais privilegiados para o jogo do flerte, exigindo uma série de códigos mais ou menos sutis: trocas furtivas de olhares, sorrisos, movimentos do corpo, gestos convidativos. Esse jogo é encenado de forma silenciosa e anônima, velada e discreta. Denilson Lopes afirma: “O encontro entre homens se dá de forma sutil e inesperadamente. As palavras não são pronunciadas, não pela recusa ao dizer, mas para se aprender com o corpo”.
A floresta que margeia o lago é o lugar para onde os personagens se deslocam em busca do corpo do outro. Franck, o jovem protagonista, é um dos frequentadores desse espaço de errância. “Caçando”, ele conhece e se apaixona por Michel, um belo, viril e misterioso frequentador do local, que tem como parceiro um outro jovem bastante ciumento. Igualmente atraído por Franck, com a intenção de se livrar do amante possessivo, Michel executa sua morte, afogando-o intencionalmente durante uma brincadeira dentro do lago, ao cair da noite. Tal como um voyeur, Franck assiste tudo de longe, escondido por entre as árvores e, mesmo sabendo dos riscos que corre, acaba por se envolver profundamente com o assassino. Medo e desejo são, como bem nos faz lembrar Guiraudie, as duas faces de uma mesma moeda chamada paixão.
Um cinema conduzido pelo desejo do outro
Henri surge no filme como um personagem emblemático. Com cara de poucos amigos, sempre isolado dos outros homens e nunca totalmente despido, o triste e ensimesmado Henri talvez seja, com efeito, o verdadeiro estranho que dá título à obra de Guiraudie. Dentre os frequentadores do lugar, entretanto, ele é aquele que nós conhecemos melhor: sabemos que é um lenhador desempregado, recém-abandonado por sua esposa; sabemos que acredita no lendário peixe de cinco metros que habita o lago; sabemos até mesmo sobre sua paixão platônica por Franck. Porém, essas escassas informações que o cineasta nos faz aos poucos descobrir não fazem de Henri um personagem menos estranho ou enigmático. Com efeito, ele parece deslocado do contexto, mas assume na trama um papel crucial.
Por meio de suas conversas com Franck, deslizam metáforas sobre o desejo, o amor e a sexualidade. É a solidão que o impele a visitar o lugar. “Ao menos, aqui, posso conversar com os desconhecidos”, diz ele. Aos poucos, seus encontros com o jovem vão ganhando mais importância, até que a paixão se instala. Mas trata-se de uma paixão que não dá margem aos prazeres do corpo. Entregar-se completamente ao outro, sabendo que, mais cedo ou mais tarde, o desejo findará; ou, então, manter-se à distância, isentar-se do risco e da transgressão exigidos pela paixão a fim de, desse modo, perpetuar o desejo. Esse parece ser, de fato, o drama sobre o qual o filme é arquitetado. De todo modo, esses dois caminhos parecem nos conduzir para o mesmo fim: a morte.
Tanto o filme de Weerasethakul quanto o de Guiraudie – dois cineastas declaradamente homossexuais – são, como tentei mostrar, exemplares de um cinema contemporâneo que exalta a experiência sensorial e afetiva, construindo um mundo encenado cheio de ambiguidades e artifícios, conduzido pelo erotismo, pelo desejo do outro. Extremamente convidativos e sinestésicos, com uma câmera marcadamente contemplativa, os dois filmes trazem em cena a materialidade do mundo (com destaque para as impressionantes imagens da natureza) a fim de mostrar, com efeito, a imaterialidade que o habita (os dramas, as paixões humanas). O homoerotismo que preenche as duas narrativas vem possibilitar, assim, o surgimento de novas formas de subjetividade no mundo contemporâneo, privilegiando o corpo como o lugar de uma ficção e inaugurando uma ética-estética baseada, em suma, no desejo de estar junto.
Referências:
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
LOPES, Denilson. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
MONDZAIN, Marie-José. Images: à suivre. Paris: Bayard, 2011.
Henrique Codato é mestre em comunicação pela Universidade de Brasília e doutor em comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente desenvolve uma pesquisa de pós-doutoramento na Universidade Federal do Ceará, onde também é professor colaborador.
Ilustrações: Nara Isoda.