geni no mundo
Caravana Climática, Cecilia Silveira, estupro, gênero e ditadura, genocídio, Guatemala, indígenas, Juliana Bittencourt, número 13
O corpo como território violado pelo Estado
Relatos da Guatemala. Por Juliana Bittencourt, da Caravana Climática
No ano de 1982 a cineasta estadunidense Pamela Yates viajou à Guatemala para gravar os crimes que estavam sendo cometidos contra o povo Maya. Ela esteve com o Exército Guerrilheiro dos Pobres, uma das organizações guerrilheiras que se levantaram em armas contra o governo, e também acompanhou o Exército em algumas missões. Conseguiu se infiltrar depois de simplesmente perguntar se poderia acompanhar uma missão – por ser mulher e gringa, aparentemente não representava nenhum problema. O documentário Cuando las montañas tiemblan foi utilizado 25 anos depois como prova no processo judicial contra o ex-presidente Efraín Ríos Montt.
Os privilégios dos privilegiados
O povo Maya sofreu durante os 36 anos da Guerra Civil da Guatemala (1960-1996), mas foi mais sistematicamente atacado durante o governo de Ríos Montt (1982-1983), quando 17.771 indígenas Mayas Ixiles foram assassinados e muitas mulheres, estupradas. Houve intensa devastação das terras indígenas e muitos morreram em decorrência da fome. A raiz do conflito era a propriedade das terras e, hoje, exatamente nos lugares onde as pessoas foram mortas, existem minas e hidrelétricas. O extermínio era parte de um plano ainda maior de expropriação de recursos naturais da América Central, encoberto por um discurso desenvolvimentista: o Plano Mesoamérica.
Durante o processo no qual a juíza Yazmín Barrios emitiu a sentença que condenou Ríos Montt, as mulheres Mayas Ixiles foram testemunhas diante do Tribunal “A Maior Risco” da Guatemala e relataram violações, como vivenciaram o genocídio nos seus corpos, nas suas terras, na sua memória e na sua história. Para a pesquisadora Francesca Gargallo, autora do livro Feminismos desde Abya Yala, “as sobreviventes dos massacres contra o povo Maya Ixil se atreveram a recordar e relatar as formas que uma guerra genocida adquire, deixando clara a evidência de que a violação sistemática das mulheres de um povo é um instrumento de genocídio”.
Pamela Yates fez um novo documentário em 2011, Granito de arena – En busca de la verdad y justicia en Guatemala, que conta a história de como Cuando las montañas tienblan foi feito e como foi usado posteriormente. O filme apresenta cenas da cineasta revisando latas e latas de material fílmico e também seu encontro com Rigoberta Menchú, líder indígena que teve um importante papel na difusão do que estava acontecendo na Guatemala. Rigoberta recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1992, mas ainda não foi escutada: embora o general Ríos Montt tenha sido finalmente condenado a 80 anos de prisão, no dia 10 de maio de 2013, por genocídio e crimes contra a humanidade, a sentença foi revogada, tendo durado apenas dez dias. No filme, ouvimos: “Não há nada que você possa realmente fazer para tirar os privilégios dos privilegiados”, e Ríos Montt aparece já velho em plena campanha política.
Memória: território em disputa
No dia 10 de maio de 2014, em uma manifestação na Cidade da Guatemala contra a impunidade e em repúdio à anulação da sentença, escutei algumas mulheres Mayas Ixiles. Durante as entrevistas, elas contavam seus mortos – e todas, em comum, diziam que haviam ido à manifestação por causa da dor que sentiam. Talvez a necessidade do reconhecimento de que houve genocídio e de que existem responsáveis ainda vivos seja maior do que a de exigir justiça de um sistema que sempre foi injusto. Pela cidade, havia pichações com a frase “Memória: território em disputa”, tão reveladora do que está em jogo na Guatemala.
Apesar dos testemunhos, do documentário de Pamela Yates, dos documentos encontrados (como os do Plano Sofía, que evidenciam a comunicação entre os altos oficiais militares e os soldados), dos laudos dos antropólogos forenses que revolveram os mortos para afirmar que efetivamente se tratava de assassinatos, dos arquivos nacionais da polícia da Guatemala que foram encontrados casualmente em 2005 em um edifício abandonado e do reconhecimento internacional, o Congresso Guatemalteco aprovou uma resolução não vinculante no dia 13 de maio de 2014, apenas três dias depois da manifestação, afirmando que não houve genocídio na Guatemala.
Essa sórdida estratégia de revisar a história para preservar o sistema, as estruturas de poder existentes e o patriarcado, além de favorecer as empresas extrativistas e o crime organizado na expropriação de recursos e do território, é também mais um ataque às mulheres Mayas Ixiles.
Como particularidade do movimento de mulheres na Guatemala, está a defesa do território-corpo. O despojo remete à colonização: a partir daquele momento, a terra sempre esteve ameaçada, e os corpos das mulheres, colocados em função do patriarcado na sua junção com o patriarcado ancestral. Os filhos mestiços passaram a ter uma série de privilégios que estruturam a sociedade racista, e as comunidades se dividiram.
Mulheres na linha de frente
Ruth Curruchich, que nos acompanhou da cidade de Chimaltenango à capital do país para participar da manifestação de 10 de maio, apresenta um panorama do movimento de mulheres na Guatemala: “Há uma resistência muito forte das mulheres. Há muitos casos na Guatemala, como o da localidade de La Puya, que é o mais conhecido, onde as mulheres estão organizadas para evitar que a maquinaria entre na mina e explore os recursos naturais. Todos esses projetos estão sendo executados sem o consentimento das pessoas e sem consulta, mas mesmo assim são impostos nas comunidades”. Perguntei sobre a sua própria luta, e ela me respondeu: “A luta das mulheres – e mais ainda das indígenas, porque vivemos uma dupla discriminação – para ter espaços e para ter mais influência na tomada de decisões é algo muito forte. No meu caso, sair de uma área rural e vir à capital, entrar em um mundo totalmente distinto do que eu estava acostumada… Tudo isso não é somente a minha vida, mas tem sido a vida de muitas mulheres, que agora estão alcançando esses espaços para, talvez mais adiante, conseguir um mundo mais inclusivo e equitativo. É uma luta pessoal. Na região de onde venho não existe muita ameaça desse tipo de indústria, mas não significa que mais adiante não possa ter. Os movimentos de mulheres são os que estão articulados não só para defender o território como tal, a terra, mas também o corpo, porque é algo que se sofre e se vive durante toda a história do país”.
Também visitamos La Puya, mencionada por Ruth. Nessa zona, localizada em San José del Golfo, as pessoas de algumas comunidades se reuniram em um acampamento para impedir a continuidade do projeto de implementação de uma mina a céu aberto. Organizam-se em três turnos e revezam-se para proteger o local e impedir a contaminação do solo, da água e do ar. Durante mais de dois anos puderam resistir principalmente pelo papel que as mulheres desempenharam todas as vezes que a polícia tentou removê-las: elas se colocaram na linha de frente, se jogaram no chão e rezaram. Seus corpos e sua espiritualidade foram o que fez que a resistência durasse tanto tempo – não sem ameaças.
Como projeto do Estado corrupto, operado por interesses empresariais, está a violência sistemática ao corpo das mulheres, corpo que também é terra e tecido social. Em artigo publicado no número 171 da revista da Asociación Feminista La Cuerda, Paula Irene del Cid Vargas afirma que “a Guatemala é um país em que os pactor patriarcais são instáveis, os homens lutam constantemente. Vivemos isso durante a guerra genocida e, agora, com a luta pelo controle dos territórios protagonizada pelo crime organizado e pelas empresas extrativistas. Nesses contextos, os homens utilizam o corpo das mulheres como espaço de disputa para exercer domínio material e espiritual. Ao atacar as mulheres, rompe-se o tecido social e comunitário, já que somos depositárias e reprodutoras da cultura e da honra”.
O relato das mulheres foi fundamental em diferentes momentos da história para evidenciar os abusos cometidos: o depoimento de Rigoberta Menchú para o documentário de Pamela Yates, o testemunho de todas as mulheres que participaram do processo contra Ríos Montt e que mais recentemente continuam exigindo justiça na Guatemala. Elas não foram caladas, apesar de toda a criminalização dos movimentos sociais e da perseguição de ativistas. Nós as escutamos.
Agradeço a todas as mulheres Ixiles, em especial às que foram entrevistadas durante a manifestação do dia 10 de maio de 2014, a Ruth Curruchich, ao Centro de Medios Libres da Guatemala e a Aline Sodré, minha interlocutora e revisora do portunhol.
Juliana Bittencourt é integrante da Caravana Climática.
Ilustração: Cecilia Silveira.
A Caravana Climática é uma gira de ação pela América Latina. O objetivo é chegar a Lima, no Peru, para a COP20 – Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas. No caminho, realizaremos algumas visitas a comunidades em luta por justiça climática e um projeto de documentação audiovisual que será publicado na nossa página web. Para a Geni, escreveremos uma série de textos a partir do encontro com associações de mulheres, coletivos e individualidades feministas e outros temas afins que compartilharemos durante o trajeto.