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ESCULACHO | Memórias da Negrinha da Casa das Putas II
Outras memórias e recriações da infância de uma garota na década de 80 na Zona Leste de São Paulo. Por Alciana Paulino
Comunidade
O povo lá da rua não se reunia para muita coisa. Até gostaria de dizer que existia um senso de união, mas não tinha. A copa era a única coisa que mobilizava. Lembro-me da vaquinha para comprar tinta e materiais para as bandeirinhas.
A criançada ganhava a rua e quem sabia desenhar tinha seu momento de glória. Eu não sabia. Tinha alergia à tinta, mas queria fazer parte daquilo, daquele “todxs juntxs e misturadxs”. Ficava de borda, mas ficava.
À noite a bronquite apareceu, mas o transporte público não funcionava e minha família não tinha carro. Quem me levou ao hospital foi o Seu Geraldo, um vizinho muito querido.
Prezinho, noivinhas e tratamento psicológico
Mamãe foi chamada à escola. Disseram que tinham assunto importante para tratar. Indicaram que ela me levasse a uma psicóloga porque não lidava bem com o fato de ser negra.
Isso tudo por que eu perguntei para a professora por que sempre era uma garota loira a noivinha da festa junina. Eu tinha amostra, já estava nesta escola há 3 anos dos meus 5 de idade.
Minha mãe repetiu a pergunta. Não tivemos resposta até hoje.
Nani Geni
Minha tia era muito doida, alegre e divertida. As pessoas não entendiam a ânsia de vida e de festa que ela tinha. Linda, linda, linda!
No fim de 1988 descobriu que estava grávida.
A cristandade da minha família perdoa qualquer pecador/a, de assassino a molestadores de menores, mas aborto nunca, “é o maior dos pecados”. Nem sei se ela considerou essa possibilidade.
Como mulher foi espezinhada, mal tratada e muito humilhada. Pela vizinhança? Também! O pior era dentro de casa. Por algum motivo a gravidez dela não foi aceita, era arranca-rabo todos os dias.
Por que a gravidez da minha mãe tinha sido aceita e a dela não? Eu já tinha nascido de uma mãe solteira, qual era o problema dela também ter um bebê? Na minha cabeça não fazia sentido.
Hoje eu tenho pistas do motivo, era chamada de VAGABUNDA! VAGABUNDA! e VAGABUNDA!
Uma luz se apagou na minha diva.
Em junho de 1989 nasceu meu primo/irmão. Te amo, moleque!
Furdunço antipatriótico
Minha família havia visto pessoas sumirem. Minha mãe conta que o único enfermeiro legal de um hospital em que trabalhava tinha sido preso durante um plantão. O cara era gay e militante de esquerda. Todo mundo se calou, na verdade, quem falou, falou besteira. Disseram que ele havia procurado aquilo com as próprias mãos.
O medo da ditadura permanecia. Mas já tinha passado uns anos. Era festa, era a copa de 1990.
A família em frente à tv, minha avó tinha fritado uns bolinhos. Os adultos na cerveja, as crianças no refrigerante. Eu e meu amigo pulávamos ansiosos com nossas bandeirinhas de plástico.
O Brasil perdeu, nem lembro para quem. Não importa.
Corremos para a porta de casa, chorando, raivosos. Começamos a rasgar a bandeira. A coisa começou a ficar animada, procuramos um fósforo para botar fogo. Quando minha avó viu aquele “furdunço antipatriótico” me agarrou pelo braço, me levou para dentro.
Disse que se a polícia visse aquilo poderia dar um sumiço em todos nós. Já não gostei dessa polícia. Fiquei de castigo.
Lavagem de dinheiro
Foi com espanto e desespero que vi algumas notas de dinheiro no varal. Que decepção, achava que minha família era aquela coisa de laranja, lavando dinheiro para alguém. Guardei esse segredo até que, não aguentando mais, fui tirar a dúvida com a minha avó. Virei piada por meses.
Raulzito e uma aula sobre o amor
Na minha casa tinha uma foto do Raul Seixas na sala. Nessa época já não morávamos mais no barraquinho. Com muito esforço minha avó e filhos tinham construído uma casa com dois quartos, duas salas e cozinha. Tudo feito lentamente, conforme era possível.
O Raulzito ficava na sala de estar, huuum… que chic! Minha tia None amava o cantor, costumávamos nos reunir para ouvir sua música. Ela estimulava que prestasse atenção na letra. Depois de ouvir “A maçã” eu disse que não tinha entendido.
Ela me explicou. Tinha seis anos. Penso assim até hoje.
A casa das putas
Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada. Mas tinha janelas vermelhas. None achava bonito. Quando puderam pintar as janelas escolheram essa cor. Ouvia das vizinhas “agora só falta a luz vermelha”.
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Ilustração: Emilia Santos.