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TUTTOMONDO | Travada
Sobre os novos métodos de prevenção do HIV – e eu com isso. Por Marcos Visnadi
Eu tenho um negócio desconhecido dentro do meu corpo. Bem, devo ter vários. Mas agora olho para o HIV sem enxergá-lo. É um vírus, tá bom. Lembro de alguma aula de biologia do colégio: o vírus é um micro-micro-microrganismo. Alguns cientistas acham que ele é um ser vivo, porque se reproduz e não sei mais o quê. Outros acham que ele não é um ser vivo, porque não tem algo que os seres vivos supostamente devem ter, segundo os cientistas. Eu nunca vi vírus nenhum, a não ser no papel que tenho em alguma pasta da gaveta dizendo “reagente” ou “não reagente”, nunca me lembro, significando que eu tenho esse vírus.
Que, supostamente, é redondinho e cheio de protuberâncias que parecem cogumelos em volta.
Pra controlar ele no meu corpo, boto dentro de mim outros negócios desconhecidos. Atualmente, tomo três remédios, que segundo o meu infectologista são os mais comuns, o que quer dizer que muita gente toma. E que, segundo ele e os exames de sangue periódicos e todo mundo que eu conheço, me fazem muito bem. Por isso eu não devo deixar de tomá-los.
Porque, se eu não ingerir umas substâncias que eu não conheço, um vírus que eu não conheço vai se desenvolver tanto que vai me fazer ficar de um jeito que eu conheço muito bem.
A população em geral
No dia 11 de julho, a Organização Mundial de Saúde (OMS) sugeriu que todos os homens gays tomem esse tipo de remédio como modo de se prevenir do vírus. E que continuem usando a camisinha, claro. Segundo a OMS, homens que fazem sexo com homens têm 19 vezes mais chances de se contaminar do que a “população em geral”. Eles estão entre as cinco “populações-chave” que devem receber atenção especial dos órgãos de saúde – as outras quatro são presidiárixs, transgêneros, prostitutxs e pessoas que usam drogas injetáveis.
É engraçado (ou é o retorno do recalcado) que a OMS fale em cinco populações-chave, já que, no começo da epidemia, a aids ficou conhecida (pelo menos nos Estados Unidos) como doença dos cinco Hs, porque tinha sido registrada em homossexuais, hemofílicos, haitianos, heroinômanos e hookers – putas, em inglês.
Essa resolução da OMS de julho veio se somar a um debate importante (pro governo, pros médicos e pra todo mundo, acho, até pra mim, porque, apesar de eu já ter o vírus e já tomar os remédios e já não saber o que fazer com tudo isso, namoro um cara que não toma remédio e que não tem vírus e que talvez também não saiba o que fazer com tudo isso, porque, afinal, quem sabe?), enfim, um debate importante: se esses remédios devem ou não ser usados para prevenir a infecção pelo HIV. Tem gente que acha que essa é uma ideia cretina. Tem gente que acha que é cretino dizer que essa ideia é cretina.
Eu acho que preferia não ter esse vírus, não tomar esses remédios e não pensar em nada disso. Mas que escolha a gente tem? Não só tenho que pensar em tudo isso, mas em ter uma alimentação balanceada e fazer atividades físicas regularmente, o que também faz parte do tratamento. E em pagar o aluguel e a ração do cachorro. Em não chegar tão atrasado no trabalho. Em tomar os antidepressivos, e consultar todos os médicos, dentista, e ler Foucault para pensar em tudo isso, e não ficar que nem esses chatos que leem Foucault e começam a cagar regra contra a cagação de regra. Regularizar título de eleitor, não perder o prazo do mestrado, ligar pra minha avó. Comprar um presente pro aniversário dela, um cachecol pra enfrentar o inverno: 80 anos, 80 invernos.
Isso sem falar nas questões políticas. E no genocídio de Israel na Palestina.
Só as avós são felizes
No meio de tudo isso, no dia a dia, penso com alguma frequência em parar de tomar aqueles remédios todos. A escolha seria: não querer chegar aos 80 anos. O que, quando paro pra pensar, não quero mesmo. “Não seja imortal posto que é chama, mas seja infinito enquanto dure” etc. E quem quer chegar aos 80 anos quer chegar também aos 90? Aos 110? Aos 250? Quando vai estar bom pra você? Morrer faz parte da vida, etc.
Viver com os remédios, por outro lado, dá trabalho. Mais, dizem, do que viver a mesma vida só que sem os remédios, embora isso eu também não tenha como saber, já que “a mesma vida”, sendo outra, pra mim é um mistério. Assim como é um mistério que remédios tão recentes, químicas tão impressionantes, sejam recomendadas indiscriminadamente. Mas, por outro lado, também é um mistério que um vírus invisível tenha aparecido do nada há pouco mais de 30 anos e cause tanto transtorno assim.
Agora lembrei deste poema do Ferreira Gullar:
OVNI
Sou uma coisa entre coisas
O espelho me reflete
Eu (meus
olhos)
reflito o espelho
Se me afasto um passo
o espelho me esquece:
— reflete a parede
a janela aberta.
Eu guardo o espelho
o espelho não me guarda
(eu guardo o espelho
a janela a parede
rosa
eu guardo a mim mesmo
refletido nele):
sou possivelmente
uma coisa onde o tempo
deu defeito
… e lembrei também dos últimos versos do primeiro texto do Dao de jing, também chamado Tao te king, aqui em tradução de Bruno Spoviero:
mistério que se renova no mistério…
porta de todo deslumbramento
Que eu lembre de poemas no meio de um debate tão sério (não que a poesia não seja séria) diz bem da minha aptidão pra discussões bioquímicas. Se você quiser saber mais sobre o Truvada (o tal remédio preventivo) e tirar suas próprias conclusões, pergunte nesta página do Facebook. E, se você souber de alguma coisa que eu não sei, por favor, deixe seu recado aí nos comentários.
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Ilustração: Samuel Ornelas.