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Transando a mídia
Trans Media Watch e a representação trans na mídia britânica. Por Carolina de Assis
Em novembro de 2013, eu estava em Utrecht, na Holanda, quase na metade do meu segundo ano como mestranda em estudos de gênero e da mulher no programa GEMMA – Master’s Degree in Women’s and Gender Studies. Dei uma mão na preparação do evento dedicado ao Transgender Day of Remembrance, ou Dia da Memória Transgênera, que seria realizado em Amsterdam. A data é observada todos os anos desde 1999, como tributo às pessoas trans que foram vítimas de homicídios motivados por transfobia. Minha tarefa era reunir informações sobre as 238 pessoas cujas mortes foram registradas entre novembro de 2012 e novembro de 2013 pelo projeto Transgender Europe’s Trans Murder Monitoring, que monitora os homicídios de pessoas trans em todo o mundo.
O que encontrei enquanto buscava informações sobre essas pessoas e essas mortes me virou do avesso. Já consciente da assustadora crueldade frequentemente empregada em atos de violência motivados por transfobia, eu não esperava que esse horror fosse reproduzido em muitas das matérias que noticiavam os homicídios – cuja enorme maioria, desde que o Trans Murder Monitoring começou a fazer esse levantamento, acontece no Brasil. O site Quem a homotransfobia matou hoje? registra grande parte desses assassinatos através das matérias que aparecem em sites e portais de notícias. Em muitas das notas sobre homicídios de pessoas trans, me impressionou não só a incompreensível dificuldade que muitos redatores têm em utilizar o pronome adequado à identidade de gênero da pessoa assassinada. Algumas matérias traziam fotos dos corpos sem vida ou das cenas dos crimes, e até tentativas de justificar a violência contra pessoas trans com “explicações” sobre as motivações dos assassinos – algo na linha do “ex-parceiro inconformado com o fim do relacionamento” que vira e mexe aparece em notícias sobre feminicídios no Brasil.
“Representações de violência na televisão não são violência, e sim mensagens sobre violência.” Que mensagens comunicam às audiências relatos midiáticos de violência contra pessoas trans que ridicularizam e utilizam linguagem inapropriada para se referir a elas, ou que buscam justificar os crimes? Na minha leitura, esses relatos passam a mensagem de que as vidas de pessoas trans valem menos do que as vidas de pessoas cis, e acabam assim por normalizar e até incentivar a violência transfóbica.
Em meio a essas reflexões, me lembrei de uma iniciativa que tinha conhecido alguns meses antes: o grupo britânico Trans Media Watch (TMW) , que tem atuado no Reino Unido desde 2009 com o objetivo de melhorar a cobertura midiática sobre questões trans e intersex no país. Foi justamente a consciência do impacto social de relatos midiáticos, que ridicularizam e desumanizam pessoas trans, que uniu o grupo na luta por representação na mídia. Decidi dedicar minha tese de mestrado (master thesis, lá na gringa) ao trabalho do TMW, tentando entender o contexto que levou à formação do grupo, os principais problemas observados pelo grupo e pela comunidade trans na mídia britânica, e a atuação do TMW junto a profissionais de mídia (desde repórteres a altos executivos de empresas de comunicação), a autoridades políticas e aos órgãos de regulação da mídia no Reino Unido.
Fundei minha pesquisa em um triângulo de teorias: os estudos feministas de mídia, que têm explorado as relações entre discursos midiáticos sobre mulheres e gênero no contexto anglo-americano ao longo das últimas cinco décadas; teorias feministas sobre gênero e transgênero; e teoria dos novos movimentos sociais. Esta última reflete sobre movimentos sociais que lutam não somente por reconhecimento material, como também simbólico, buscando promover uma transformação cultural – como o movimento feminista, o movimento negro e o movimento gay, por exemplo. Essa base teórica me permitiu posicionar o Trans Media Watch em um contexto muito mais amplo, que diz respeito à luta por autodefinição e representação das pessoas trans em diferentes arenas de produção de discursos sobre experiências trans, como a academia e o ativismo. As lacunas de representação nessas e em outras esferas, além das condições materiais das pessoas trans, sujeitas a discriminações e exclusões várias, levaram à emergência do movimento trans como um movimento social autônomo que reivindica o direito das pessoas trans à autodefinição e a serem representadas em seus próprios termos. É essa a batalha do TMW no âmbito da mídia no Reino Unido.
O contexto no Reino Unido
O TMW é uma iniciativa fundamentada em uma tradição de ativismo trans que, no Reino Unido, é composta majoritariamente por organizações dedicadas à demanda de direitos e reconhecimento legal para pessoas trans. A maior vitória desse ativismo no país é o Gender Recognition Act 2004 (GRA), ou Lei de Reconhecimento de Gênero. O GRA assegura o direito das pessoas que assim desejarem de registrar-se em um gênero diferente do que aquele que lhes foi designado ao nascer, com a mudança de todos os registros públicos, documentos de identidade e da própria certidão de nascimento – um ato com um peso simbólico considerável, já que reconhece e retifica oficialmente o equívoco da associação entre órgão genital externo e gênero que nos é imposto a todxs imediatamente após o nascimento.
O GRA é certamente um grande avanço legal e político conquistado pelo ativismo trans no Reino Unido, mas a lei ainda submete as pessoas que buscam esse reconhecimento a um processo estapafúrdio de “comprovação” de identidade de gênero, cujas evidências são analisadas por um comitê que finalmente decide se a pessoa é ou não “merecedora” de um Certificado de Reconhecimento de Gênero (GRC, na sigla em inglês). Além dessa medida oficial que discrimina pessoas trans ao estipular que transgêneros são menos autênticos do que cisgêneros e portanto devem ser “comprovados” com laudos médicos e burocracias mil, outros tipos de discriminação e manifestações de transfobia continuam sendo parte do cotidiano das pessoas trans no país. Uma pesquisa realizada em 2007 reportou que 73% das pessoas entrevistadas já tinham vivido situações de abuso ou violência por serem trans.
Grande parte da comunidade trans no país acredita que essas discriminações e violências são reforçadas também por muitas das imagens e histórias sobre experiências trans veiculadas em jornais, revistas, no rádio e na TV britânicas. Até três anos atrás, outings (a exposição do status trans de uma pessoa sem o consentimento dela); o uso de pronomes ou de outros marcadores linguísticos de gênero que não condizem com a identidade de gênero da pessoa que está sendo descrita (referir-se a um homem trans com pronomes femininos, por exemplo); ou o uso de linguagem inapropriada, como gírias ou expressões consideradas ofensas transfóbicas no contexto anglofalante (como tranny e sex-swap, que poderiam corresponder a “traveco” e “mudança de sexo” em português), eram práticas corriqueiras em muitos jornais e programas de TV no país. O Trans Media Watch apareceu nesse cenário para se dedicar especificamente ao aspecto midiático da luta das pessoas trans por reconhecimento simbólico e transformação cultural no Reino Unido. O grupo surgiu devido ao sentimento de muitas pessoas trans (e também de familiares e pessoas amigas e aliadas) de que grande parte das narrativas sobre questões trans produzidas pelas mídias britânicas eram errôneas, desrespeitosas e danosas, e que discriminação e violência são também efeito dessa cobertura negativa. O TMW acredita que representações midiáticas também podem ter um impacto positivo, promovendo entendimento entre o público sobre questões trans e fortalecendo pessoas trans com imagens e modelos que transgridam estereótipos e reflitam a diversidade de vivências trans, que são tão particulares, dolorosas e deliciosas quanto vivências cis.
Em uma das conversas que tive com Helen Belcher, diretora do TMW e uma das colaboradoras da pesquisa, ela me explicou melhor a ideia que anima o grupo: “No seu estado mais bruto, a mídia molda o pensamento das pessoas. Entre elas estão pessoas que formulam políticas públicas, e xs próprixs políticxs. Então, se a mídia dá a impressão errada sobre questões trans, elas nunca serão resolvidas, porque xs políticxs não as entenderão. E há também uma grande batalha por aceitação social. Uma coisa é engajar políticxs nessas questões, mas se não engajarmos também a população, vamos ter uma série de leis sem sentido que ninguém tem intenção de respeitar. Portanto o trabalho com a mídia é muito importante para passar perspectivas corretas sobre pessoas trans para o público em geral. É o precursor de todo o resto”. Jennie Kermode, presidente do TMW e também colaboradorx da pesquisa, acredita que a mídia pode ajudar a esclarecer questões trans para pessoas cis, contribuindo assim para erradicar o preconceito: “As pessoas aprendem sobre essas coisas quando elas conhecem alguém pessoalmente, mas nós somos uma minoria. Pessoas trans e intersex são grupos pequenos dentro da população total, e grande parte delas não expõe o fato de ser trans ou intersex por causa do estigma associado a essas condições – isso está começando a mudar, e espero que nós possamos contribuir para isso. Mas quando as pessoas não têm esses encontros, tudo que elas têm é a mídia como fonte de conhecimento. E as pessoas não vão mudar suas atitudes enquanto elas não entenderem essas questões, e nós estamos aqui para isso. Trabalhamos com a mídia porque se a mídia entender e promover uma visibilidade positiva de pessoas trans e intersex, o preconceito vai acabar.”
Representando a comunidade
O Trans Media Watch consiste em uma equipe de cerca de 12 pessoas, todas se dedicando às atividades do grupo em seu tempo livre, sem receber nada por isso. O grupo conta com a colaboração das pessoas que interagem através do Twitter, Facebook, fórum on-line e e-mail de contato (transmediawatch@googlemail.com). Elas auxiliam no monitoramento da mídia, alertando sobre textos veiculados em jornais e revistas, impressas e on-line, ou programas de TV e rádio que elas acreditem apresentar questões trans de maneira ofensiva, desrespeitosa ou errônea. O passo seguinte é o contato com as pessoas responsáveis pelo texto considerado problemático. No site do grupo há uma seção para orientar profissionais de mídia, e essas diretrizes costumam ser oferecidas logo no primeiro contato. O trabalho do TMW com profissionais de mídia é complementado pela atuação junto a parlamentares, com a promoção da reforma das leis de mídia no Reino Unido, e aos órgãos reguladores, a quem o grupo encaminha reclamações e articula diretrizes a serem recomendadas por essas instituições ao conjunto da imprensa e das rádios e TVs do país.
O TMW afirma ter como objetivo “refletir os interesses da comunidade como um todo”, e essa comunidade que se manifesta pelos canais de comunicação do grupo propõe diferentes alternativas aos problemas observados na mídia com relação a questões trans. “Como de certa forma espera-se que a gente fale em nome de toda a comunidade trans, nós precisamos ter uma evidência sólida para isso. Não queremos que nosso trabalho seja sobre o que nós achamos; tem que ser sobre o que toda a comunidade acha, e nós tentamos comunicar os pontos de vista da minoria assim como aqueles que nós acreditamos merecer uma atenção maior por serem as opiniões da maioria”, diz Jennie.
Um exemplo, segundo elx, é a opinião da comunidade com relação à publicação de nomes de batismo e de fotos do período anterior à transição para a vida no gênero com que a pessoa se identifica. Uma obsessão de certa mídia britânica até pouco tempo atrás era justamente histórias de “transformação”, com foco no “antes” e no “depois” da transição. O TMW orienta profissionais de mídia a evitar divulgar esse tipo de informação, a não ser que haja o consentimento explícito da pessoa retratada – e consentimento é algo que tabloides e programas sensacionalistas muitas vezes ignoram sem nenhum remorso. A orientação do TMW se baseia tanto na Lei de Reconhecimento de Gênero, que criminaliza a divulgação da identidade em que a pessoa vivia antes da obtenção do Certificado de Reconhecimento de Gênero, como na opinião de grande parte das pessoas da comunidade trans, que acredita que a veiculação dessas informações na mídia passa por uma tentativa de deslegitimar a identidade da pessoa retratada. Parte da comunidade, entretanto, não vê nenhum problema na publicação de nomes e fotos de “antes”. “Algumas pessoas dizem: ‘Nós queremos usar nossos nomes antigos, não é algo que nos envergonhe’. Nós certamente apoiamos essas pessoas. Então o que passamos aos profissionais de mídia é ‘respeite a identidade das pessoas’, além de orientar também para que não coloquem nomes e fotos apenas para ‘colorir’ uma matéria, porque isso pode ser profundamente inquietante para algumas pessoas”, comenta Jennie.
O TMW busca estabelecer relações positivas, baseadas em colaboração e respeito mútuo, com profissionais de mídia, com o objetivo de promover as visões da comunidade sobre a abordagem de questões trans na mídia. Ao apontar as falhas na cobertura e oferecer alternativas concordadas pela maior parte das pessoas que interagem com o grupo nas redes sociais, a intenção do TMW é educar profissionais de mídia para que elxs representem pessoas trans como grande parte delas gostaria de se ver representada. Segundo Helen, a resposta dessxs profissionais varia bastante: “Algumas pessoas não entendem. Algumas nem respondem. Algumas respondem dizendo ‘agradeço a atenção, mas eu discordo’ ou ‘eu não vejo nenhum problema, não entendo por que isso é um problema’. Mas cada vez mais pessoas respondem ‘ah sim, entendo o que você quer dizer’, e alguns desses contatos acabam levando a encontros e debates.”
Além de posicionar o trabalho com a mídia como “crítica construtiva”, um aspecto central nas relações que o TMW procura estabelecer com profissionais de mídia é a discrição. O grupo acredita que a atuação “nos bastidores” funciona melhor do que grandes pronunciamentos e manifestações públicas de insatisfação com determinadas coberturas midiáticas. “As pessoas não gostam de ser repreendidas em público; é algo bastante constrangedor, e a tendência, quando isso acontece, é que elas defendam ao máximo sua posição, e isso dificulta que se chegue a qualquer resolução. Então a gente prefere contatar as pessoas diretamente, nos bastidores, e dizer: ‘Na verdade, isso que você fez é problemático, você poderia fazer isso melhor’”, explica Helen. Esse trabalho “corpo a corpo” com profissionais de mídia é crucial para fazer avançar a causa da representação trans e para criar empatia, acredita Christabel Edwards, também membro do grupo e colaboradora da pesquisa: “Estávamos recentemente em uma reunião com um alto executivo de televisão, e ele dizia: ‘Eu nunca tinha pensado sobre nenhuma dessas questões’. E porque nós estávamos lá e estávamos explicando isso tudo para ele, dava para ver uma luzinha acendendo: ‘Uau, eu não tinha ideia de que isso estava acontecendo, não sabia que meu trabalho estava tendo esse impacto’. Nós sempre acreditamos que é importante dar uma face humana às pessoas trans, com relação às questões que enfrentamos, junto a essxs profissionais, para que não nos tornemos um estereótipo. Para que sejamos Chrissy, Helen, Jennie, ou quem quer que seja. Para que nos vejam como as pessoas reais que nós somos”.
O grupo acredita que a cobertura de questões trans na mídia britânica melhorou bastante nesses últimos quatro anos. Helen faz inclusive uma distinção entre o que ela observa como cisgenderismo e transfobia na mídia britânica. A transfobia seria visível em textos jornalísticos ou programas de TV que deliberadamente ridicularizam e desumanizam pessoas trans. Já o cisgenderismo seria descaso e desatenção da mídia com relação a questões trans por simples ignorância. Para Helen, hoje, há muito mais esse “retro-normatismo não intencional”, devido à falta de familiaridade com questões trans, nos jornais, revistas e programas de TV do Reino Unido. Ela diz observar uma mudança na percepção do público com relação às histórias sensacionalistas sobre pessoas trans que durante muito tempo foram uma constante nos tabloides do país: “Acho que a imprensa entendeu que nós conseguimos conquistar um considerável nível de apoio no Parlamento. E houve também uma mudança generalizada na percepção das pessoas com relação a essas matérias, no sentido de se perguntarem ‘por que isso é notícia? Por que invadir a vida privada das pessoas dessa maneira?’ Acho que as pessoas de fato não estão mais interessadas nesse tipo de história sobre pessoas trans, porque elas veem o estrago que essas matérias podem causar”.
Jennie tem outra percepção do impacto do TMW e de outros grupos que atuam pela causa trans, que se relaciona diretamente à luta por representação, que consiste tanto em ser (sentir-se) representadx como em representar a si mesmx: “Acho que tem muito a ver com a construção da autoconfiança. É algo que pode ser observado em qualquer movimento social, em qualquer movimento que busca melhorar a situação das minorias. Pessoas que fazem parte de uma minoria são constantemente estigmatizadas e atacadas nos jornais e na mídia, e elas acabam internalizando uma espécie de vergonha ou desconforto, ou sentem que não importa o que elas façam, elas vão ser atacadas, então elas mantêm a cabeça baixa. Quando nós começamos o Trans Media Watch, era bem difícil encontrar pessoas dispostas a aparecer na mídia, a falar sobre os direitos das pessoas trans. Tínhamos muita dificuldade em encontrar representantes dispostxs a falar. Mas nós sentimos, coletivamente, que cedo ou tarde nós temos que botar a boca no trombone. E nós temos que falar por nós mesmxs e mostrar que nós não temos do que nos envergonhar, e que nós podemos ser visíveis, e quanto mais a gente faz isso, e outras organizações também, cada vez mais pessoas trans pensam ‘bom, eu também não tenho medo de falar’”.
*** George Gerbner citado por Stuart Hall em “Encoding/Decoding” (1973 [2006]). Publicado em Media and Cultural Studies: Keywords (Blackwell Publishing, 2006), editado por Meenakshi Gigi Durham e Douglas Kellner.
Carolina de Assis é mulher cis feminista e mineira (#êgalo). Nasceu com o Sol em Aquário e a Lua em Touro (nunca esteve sendo fácil) e trabalha como editora da Samuel. É graduada em Comunicação Social – Rádio e TV / Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ, e mestra em Women’s and Gender Studies pelo programa GEMMA – Università di Bologna / Universiteit Utrecht. Acima de tudo, acredita que Drummond e Anzaldúa (e não Freud) explicam.
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Ilustração: Mandah Gotsfritz.