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Quem defende a criança queer?
A ideia de ‘criança-a-ser-protegida’ permite ao adulto naturalizar a norma heterossexual. Por Beatriz Preciado
Os católicos, os judeus e muçulmanos integristas, os descarados partidários de [Jean-François] Copé, os psicanalistas edipianos, os socialistas naturalistas à la [Lionel] Jospin, os esquerdistas heteronormativos e a tropa cada vez maior dos “bacanas” reacionários entraram em acordo neste domingo para fazer do direito da criança a ter um pai e uma mãe o argumento central que justifica a limitação do direito dos homossexuais. Foi o dia de saírem do armário, o gigantesco outing nacional dos heterocratas. Eles defendem uma ideologia naturalista e religiosa, da qual conhecemos os princípios. Sua hegemonia heterossexual sempre repousou no direito de oprimir as minorias sexuais e de gênero. Já nos acostumamos a vê-los brandir seus machados patriarcais.
A criança que Frigide Barjot pretende proteger não existe. Os defensores da infância e da família apelam para a figura política de uma criança que eles constroem, uma criança pressupostamente heterossexual e com o gênero normatizado. Uma criança que privamos de qualquer força de resistência, de qualquer possibilidade de fazer um uso livre e coletivo de seu corpo, de seus órgãos e de seus fluidos sexuais. Essa infância que eles pretendem proteger exige o terror, a opressão e a morte.
Sua musa, Frigide Barjot, aproveita-se do fato de que é impossível para uma criança rebelar-se politicamente contra o discurso dos adultos: ela é sempre um corpo a quem não se reconhece o direito de governar. Permitam-me inventar, retrospectivamente, uma cena de enunciação, de fazer um direito de resposta em nome da criança governada que eu fui, de defender outra forma de governo das crianças que não são como as outras.
Um dia também fui essa criança que Frigide Barjot vangloria-se de proteger. E me rebelo hoje em nome das crianças que esses discursos falaciosos insinuam preservar. Quem defende os direitos da criança diferente? Os direitos do garotinho que gosta de usar rosa? Da menininha que sonha em se casar com sua melhor amiga? Os direitos da criança a mudar de gênero se ela quiser? Os direitos da criança à livre autodeterminação de gênero e de sexualidade? Quem defende os direitos da criança de crescer em um mundo sem violência, nem sexual nem de gênero?
O onipresente discurso de Frigide Barjot e dos protetores dos “direitos da criança a ter um pai e uma mãe” me levam à linguagem do nacionalismo católico de minha infância. Nasci na Espanha franquista, onde cresci em uma família heterossexual católica de direita. Uma família exemplar, que os partidários de Copé poderiam erigir como um emblema de virtude moral. Tive um pai, uma mãe. Eles preencheram escrupulosamente sua função de responsáveis domésticos pela ordem heterossexual.
Nos atuais discursos franceses contra o casamento e contra a Procriação Medicalmente Assistida (PMA) para todos, reconheço as ideias e os argumentos de meu pai. Na intimidade do lar familiar, ele empregava um silogismo que invocava a natureza e a lei moral a fim de justificar a exclusão, a violência e até a imolação dxs homossexuais, dxs travestis e dxs transexuais. Isso começava com um “um homem tem que ser homem e uma mulher, uma mulher, pois foi assim que Deus quis”, e continuava com um “o que é natural é a união de um homem e de uma mulher, é por isso que os homossexuais são estéreis”, até a conclusão, implacável, “se umx filhx meu/minha for homossexual, prefiro ainda matá-lx”. E essx filhx era eu.
A criança-a-ser-protegida de Frigide Barjot é o efeito de um dispositivo pedagógico perigoso, o lugar de projeção de todas as fantasias, o álibi que permite ao adulto naturalizar a norma. A biopolítica [segundo Michel Foucault, um poder que se exerce sobre os corpos e as populações] é vivípara e pedófila. A reprodução nacional depende dela. A criança é um artefato biopolítico que garante a normalização do adulto. A polícia do gênero vigia o berço dos seres vivos que estão por nascer, para transformá-los em crianças heterossexuais. A norma faz sua ronda em torno dos corpos frágeis. Se você não for heterossexual, a morte o espera. A polícia do gênero exige qualidades diferentes do garotinho e da garotinha. Ela molda os corpos a fim de desenhar órgãos sexuais complementares. Ela prepara a reprodução, da escola até o Parlamento, industrializa-a. A criança que Frigide Barjot deseja proteger é a criatura de uma máquina despótica: uma partidária de Copé encolhida, que faz campanha para a morte em nome da proteção da vida.
Lembro-me do dia em que, em meu colégio de freiras das Irmãs Servas de Maria Reparadoras do Sagrado Coração de Jesus, a madre Pilar nos pediu para desenhar nossa futura família. Tinha 7 anos. Desenhei a mim mesma casada com minha melhor amiga, Marta, com três filhos e muitos cachorros e gatos. Eu já tinha imaginado uma utopia sexual, na qual existia o casamento para todos, a adoção, a PMA… Alguns dias mais tarde, o colégio enviou uma carta para minha casa, aconselhando meus pais a me levar a um psiquiatra, a fim de resolver o mais rápido possível um problema de identificação sexual. Diversas represálias seguiram-se a essa visita. O desprezo e a rejeição de meu pai, a vergonha e a culpa de minha mãe. Na escola, o rumor de que eu era lésbica se espalhava. Uma manifestação de partidários de Copé e de frígidos barjotianos se organizava todos os dias na frente de minha classe. “Sapatão”, eles diziam, “vamos te estuprar para te ensinar a trepar como Deus quer”. Tinha um pai e uma mãe, mas eles foram incapazes de me proteger da repressão, da exclusão, da violência.
O que meu pai e minha mãe protegiam não era os meus direitos de criança, mas as normas sexuais e de gênero que haviam sido inculcadas dolorosamente neles mesmos, por um sistema educativo e social que punia toda forma de dissidência com a ameaça, a intimidação, o castigo e a morte. Tinha um pai e uma mãe, mas nenhum dos dois podia proteger meu direito à livre autodeterminação de gênero e de sexualidade.
Fugi desse pai e dessa mãe que Frigide Barjot exige para mim, minha sobrevivência dependia disso. Assim, ainda que tenha tido um pai e uma mãe, a ideologia da diferença sexual e da heteronormatividade os confiscaram de mim. Meu pai foi reduzido ao papel de representante repressivo da lei do gênero. Minha mãe foi privada de tudo o que pudesse ir além de sua função de útero, de reprodutora da norma sexual. A ideologia de Frigide Barjot (que se articulava, então, com o franquismo nacional católico) despojou a criança que eu era do direito de ter um pai e uma mãe que poderiam ter me amado e cuidado de mim.
Foi preciso muito tempo, conflitos e mágoas para deixar para trás essa violência. Quando o governo socialista Zapatero propôs, em 2005, a lei do casamento homossexual na Espanha, meus pais, ainda católicos praticantes de direita, manifestaram-se a favor dela. Eles votaram nos socialistas pela primeira vez na vida. Eles não se manifestaram unicamente para defender meus direitos, mas também para reivindicar seu próprio direito de serem pai e mãe de umx filhx não heterossexual. Para o direito à paternidade de todas as crianças, independentemente de seu gênero, sexo ou orientação sexual. Minha mãe me contou que ela precisou convencer meu pai, mais reticente. Ela me disse: “nós também temos o direito de sermos teus pais”.
Os manifestantes de 13 de janeiro não defenderam o direito das crianças. Eles defendem o poder de educar as crianças na norma sexual e de gênero, como se fossem presumidamente heterossexuais. Eles desfilam para manter o direito de discriminar, punir e corrigir qualquer forma de dissidência ou desvio, mas também para lembrar aos pais das crianças não heterossexuais que é dever deles se envergonhar disso, rejeitá-los, corrigi-los. Nós defendemos o direito das crianças de não serem educadas exclusivamente como força de trabalho e de reprodução. Nós defendemos o direito das crianças de não serem consideradas como futuros produtores de esperma e futuros úteros. Nós defendemos o direito das crianças de serem subjetividades políticas irredutíveis a uma identidade de gênero, de sexo ou de raça.
Beatriz Preciado é filósofa e ativista queer, autora de, entre outros, Manifiesto Contra-sexual (2002).
Tradução: Cícero Oliveira
Ilustração: Nara Isoda
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