Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

feminismo

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Maturidade feminista

Mulheres feministas comentam suas vivências do envelhecimento e os efeitos da maturidade sobre a militância. Por Carolina de Assis

 

 

Aos 38 anos, a filósofa francesa Simone de Beauvoir começou a escrever uma das obras mais importantes do pensamento feminista ocidental. Entre exposições sobre diferentes narrativas sobre a entidade “mulher” (biológica, histórica, mitológica, psicanalítica…), O segundo sexo traz também capítulos sobre diferentes fases das vidas das mulheres (brancas, ocidentais e de classe média, é bom salientar).

 

No capítulo “Da Maturidade à Velhice”, Simone escreve sobre como em certo momento da vida a mulher “é bruscamente despojada de sua feminilidade; perde, jovem ainda, o encanto erótico e a fecundidade de que tirava, aos olhos da sociedade e a seus próprios olhos, a justificação de sua existência e suas possibilidades de felicidade: cabe-lhe viver, privada de todo futuro, cerca de metade de sua vida de adulta”.

 

 

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Embora as ideias de Simone pertençam a um contexto histórico e social muito específico, o tom pessimista de seu comentário perpassa ainda hoje grande parte das narrativas sobre a vivência do envelhecimento pelas mulheres. O texto de Simone foi e ainda é, para muitas leitoras, menos uma constatação do que uma denúncia: assim a sociedade ocidental de meados do século 20 via as mulheres a partir de certa idade.

 

As mulheres que construíram o movimento feminista no Brasil nos últimos 40 anos estão hoje na “idade perigosa” desfiada por Simone. Como será que elas, que passaram boa parte de suas vidas questionando os padrões e os limites impostos às mulheres, estão vivendo seus processos da maturidade à velhice? Que reflexões e instrumentos a formação feminista lhes proporciona sobre a terceira idade? E qual é o impacto do processo de envelhecimento sobre a ação política e a militância?

 

Antes de mais nada, é bom deixar claro: “o conceito de velhice envelheceu”, acredita Jacira Melo, 57 anos, militante feminista desde os 19. Jacira é diretora e uma das fundadoras do Instituto Patrícia Galvão, que atua pelos direitos das mulheres e pelo direito à comunicação. “O feminismo me deu amigas de várias faixas etárias, algumas que estão na faixa dos 70. Elas às vezes reclamam da memória, por exemplo: ‘Ah, não lembro de nada…’ E eu digo: parem com isso! Aos 70, a maioria dessas amigas são professoras universitárias, ministras, pesquisadoras de ponta… Por várias razões, são pessoas privilegiadas, assim como eu. E digo que elas não estão velhas, elas estão no ápice da idade madura.”

 

Rachel Moreno, 69 anos, além de psicóloga e pesquisadora é feminista militante desde meados dos anos 1970. Assim como Jacira, ela também sente a defasagem entre o conceito social de velhice e a experiência das pessoas que a vivem: “Acho que falta atualizar a imagem das diversas faixas etárias. Quando eu digo que eu tenho 69, as pessoas não acreditam. Acho que há expectativas com relação a diferentes faixas etárias que não se atualizaram, nem com relação à figura das pessoas nem com relação ao desempenho e às atividades das pessoas de determinada idade. Porque nós mudamos, as mulheres mudaram, o mundo mudou.”

 

 

O (não) olhar dxs Outrxs

 

Se quando Simone de Beauvoir estava no fim de sua terceira década de vida um capítulo lhe pareceu suficiente para refletir sobre a maturidade e a velhice das mulheres, aos 62 anos a questão tomou para a filósofa uma dimensão muito maior. Ela então escreveu o ensaio A velhice, em que se debruçou sobre essa fase da vida com a mesma atenção que dedicou à entidade “mulher” em sua obra mais conhecida.

 

Assim como a mulher, a pessoa velha, para Simone, tem status de “Outro”, sendo definida a partir de e em relação a uma perspectiva externa (o olhar do homem, o olhar do jovem). O envelhecimento não seria percebido pela pessoa que envelhece, visto que existe “uma óbvia clareza do sentimento interior que garante nossa qualidade imutável”. “Já que é o Outro dentro de nós que envelhece, é natural que a revelação de nossa idade venha de fora para dentro — dos outros.”

 

“Tive um momento de olhar pro meu corpo e dizer ‘poxa, eu penso como se ainda tivesse 30 anos, mas eu tenho 65’”, conta a psicóloga e psicoterapeuta Maria Lúcia da Silva, do Instituto AMMA Psique e Negritude, 40 anos de militância nas lutas antirracista e feminista. “Não é simples você envelhecer, ver seu corpo se transformar, sua energia diminuir, as limitações começarem a se impor. Às vezes a ficha demora a cair.”

 

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A historiadora Margareth Rago, 66 anos, mais de 30 deles como anarquista e feminista, comenta como a consciência do envelhecimento se dá a partir do olhar das pessoas mais jovens. “Em qualquer lugar que você vá, os jovens te olham como ‘a mãe’ ou ‘a avó’. A sociedade te envelhece. Todo mundo começa a te chamar de senhora, no metrô as pessoas levantam pra te dar o lugar — o que é muito bom e eu agradeço muito, mas nessa hora eu penso ‘ai meu deus, eu não tenho mais 40, eu tenho 66!’ [risos]”.

 

Rachel se lembra de um momento em que esse olhar lhe colocou no lugar de ‘tia’ à sua revelia. “Fomos para a praia no Carnaval, em uma cidadezinha em que tinha um bloco e nós saímos sambando junto com o bloco. De repente uma moçada ali perto disse: ‘aí tia, mostra pra elas como se faz!’ Eu endureci, gelei. [Risos] ‘Tia, eu? É comigo que ele tá falando?’ Aquele momento me chocou.”

 

O olhar exterior que envelhece é percebido também como um não-olhar, visto que uma das questões do envelhecimento em mulheres heterossexuais é a repentina invisibilidade diante do olhar dos homens. Retomando a exposição de Simone de Beauvoir, a mulher aprende a se ver como tal através do olhar e do desejo masculinos — ela existe a partir desse desejo e desse olhar. A partir de determinado momento ela deixa de ser vista como mulher e passa a ser vista como velha — categoria que não despertaria o tesão heterossexual de homens doutrinados para desejar mulheres que correspondam a um padrão de beleza que implica uma eterna juventude.

 

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“Uma amiga de 50 e poucos anos me falou: ‘Eu passo na rua e as pessoas não me veem mais’”, conta Rachel. “Fico comparando isso com a demanda da moçada hoje com a campanha Chega de Fiu-Fiu. Eu me lembro, eu sei o quanto incomoda o fiu-fiu. Mas a sensação de invisibilidade é um choque também. Eu não sinto falta do fiu-fiu. Mas quando a diferença aconteceu eu percebi.” Rachel diz ter elaborado o fim do assédio de rua como algo libertador: “Eu racionalizei. ‘Legal, não me incomodam mais, posso andar mais segura.’ No fundo você sente um pouco uma sensação de incômodo, mas aos poucos ela vai embora. A falta de fiu-fiu não impede que você chegue na casa de amigos e ouça ‘nossa, você tá linda’. Então te olham, te veem, você não é invisível para o mundo como um todo”.

 

Jacira diz perceber como essa relativa invisibilidade afeta suas amigas heterossexuais. “Elas sabem que potenciais parceiros de 40, 50, 60 anos querem mulheres de 30 ou de 20, o que causa muitos conflitos nas relações afetivas e amorosas. Isso é um peso muito grande na vida das mulheres heterossexuais.” Em um casamento homoafetivo há 20 anos, ela acredita que as relações entre mulheres seguem uma lógica que não penaliza tanto as mais velhas. “No mundo das mulheres homossexuais, até porque somos mulheres, isso não existe. Aliás, mulheres de cabelo branco são muito paqueradas. Eu digo isso porque eu sou muito paquerada [risos]. Mulheres de todas as idades não convivem com esses padrões que são mais do campo heterossexual e que vêm muito do masculino. Acho que isso alivia essa carga de cobranças sobre a idade, o lugar da mulher, a aparência…”

 

Mudamos todxs e também o mundo, mas o padrão de beleza e juventude imposto às mulheres segue se perpetuando. A experiência do envelhecimento entre mulheres feministas com relação a essas cobranças, como não poderia deixar de ser, é absolutamente plural. Assim conta Margareth: “Pensando nas minhas amigas feministas, tem de tudo. Tem a que não tá nem aí e que tá ótima, ‘eu tô muito bem, obrigada, e quero ficar com meu cabelos brancos e vamos embora’. E tem a que está com problemas físicos – uma hora dói o olho, outra hora dói o joelho — e que reclama muito. Tenho amigas feministas que são muito ligadas nessas questões de beleza, colocaram botox, essas coisas. E tem as que não ligam absolutamente e jamais fariam.”

 

Uma das que jamais fariam é Maria Lúcia. Ela diz se incomodar com gordurinhas extras e com a dificuldade de emagrecer que tem aumentado com os anos, mas não cogita procedimentos estéticos com o objetivo de parecer mais jovem. “Não tenho desejo nenhum de fazer plástica no meu rosto pra parecer mais nova. A questão não é parecer mais nova, a questão é como você constrói uma condição de vida que seja saudável. Se estou acima do peso, isso tem um impacto concreto na minha saúde. É deste lugar que eu fico preocupada, mesmo que eu não consiga emagrecer ou andar todo dia. Essa é uma preocupação: como estabelecer estratégias de cuidado com a saúde.”

 

Rachel, autora do livro A beleza impossível — Mulher, mídia e consumo (editora Ágora, 2008), diz que o padrão de beleza também não lhe incomoda tanto e que ostenta os cabelos brancos como um símbolo de rebeldia. Jacira também ostenta seus brancos e diz ser uma das poucas mulheres em seus círculos feministas a fazê-lo. “Como feminista, eu sou pela autonomia das mulheres. Se ela ficar feliz com a plástica que fizer, eu tô com ela e não abro. Só que eu sei que é difícil; os padrões estéticos são muito violentos, principalmente para as mulheres. Isso me incomoda muito mais do que se as mulheres fazem plásticas.” Diz se reconhecer nas marcas que a vida vem deixando em seu rosto: “Eu adoro minhas rugas. Acho que eu não ia me sentir bem toda repuxada… Isso nesse momento da minha vida, vou fazer 60 anos e me sinto bem comigo. Essa é a minha cara, essa sou eu. E essas rugas são as marcas da minha vida”.

 

 

Amadurecimento e militância

 

Além das rugas, o tempo transforma a capacidade do corpo se movimentar no mundo. No caso dessas mulheres, grande parte desse movimento consiste em ativismo e militância feminista. As transformações do corpo têm impacto direto na atuação política de cada uma delas.

 

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“O processo de envelhecer produz dores, produz limitações, exige um cuidado diferenciado”, lembra Maria Lúcia. “Ativismo consome a vida e a saúde da gente. Existe uma exigência de que você dê para além do que você pode. Há que se levar em conta que a idade é um elemento a se pesar na escolha do ativismo. Tenho feito isso, não me deixado render às exigências de um ativismo que tem que ser feito a qualquer custo.”

 

Assim como Maria Lúcia, Rachel também tem feito escolhas de militância orientadas por suas atuais condições físicas. “Você só percebe o quanto a coisa faz falta quando ela começa a fazer falta”, pondera. “A artrose começou a me afetar há três meses. E nesses três meses eu tenho percebido que tem coisas que eu tenho que abrir mão de ir ou de participar. Não é gostoso. Mas eu tento compensar de outro jeito, escrevendo ou em outras formas de atuação que não são necessariamente na rua, embora a rua seja inebriante.”

 

Maria Lúcia considera que o tempo traz também uma mudança no entendimento da ação política, além de tranquilidade para bancar as próprias posições. “Pensando retrospectivamente, acho que a juventude tem um vigor, um ideal e uma utopia que transcendem as possibilidades da realidade. Com meus 65 anos eu já penso a coisa com mais moderação, levando em conta as condições materiais e políticas. Você também fica mais tranquila para se posicionar. É como algumas pessoas dizem: nossa, se lá naquela idade eu tivesse o conhecimento que eu tenho hoje, eu teria feito diferente. Hoje eu já tenho a idade, então eu posso fazer diferente [risos]. Não é só pela idade, é o que a idade possibilita a você acumular, seja no fazer, seja na reflexão.”

 

O amadurecimento — que pode ou não ser trazido pela idade — se combina com a consciência feminista e potencializa o conforto de ser quem se é e de estar dentro da própria pele. “Esse amadurecimento, de saber o que eu não quero, saber meus limites e minhas possibilidades, eu não troco por nada. Acho que esse é o momento mais gostoso da minha vida”, sorri Jacira. “A maturidade ajuda você a se entender. Não só como feminista, mas na sua singularidade e na sua complexidade. E não tenho dúvidas de que o feminismo foi vital nesse processo. Porque o feminismo é o lugar da liberdade, da autonomia, de você ser uma pessoa inteira.”

 

Essa liberdade e essa autonomia, bem-vindas em qualquer momento da vida, fazem ainda mais diferença para as mulheres na vivência da maturidade. “Acho que o feminismo me dá não só uma autoconfiança, mas também uma capacidade de olhar crítico. Eu quero ter as rugas que a minha idade me deu, usar meus cabelos como eu quero, usar a roupa que eu quiser”, comenta Jacira. “E que ninguém venha me dizer qual é o padrão de beleza, como eu devo ser, como eu devo viver aos 50, aos 60, que roupa eu devo vestir… Sou eu quem escolho isso tudo. E acima de tudo, acho que o feminismo deve me dar uma capacidade verdadeira de entender que cada mulher deve ser o que ela bem entender.”

 

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Se a consciência feminista dá a liberdade de ser o que bem se entende, ela também acomoda certa insatisfação com as mudanças trazidas pelo tempo. “O feminismo foi importante pra mim e me dá muitas respostas”, diz Margareth. “Mas que tem limitações, tem. E acho que é melhor pensar nelas mesmo, trabalhá-las. Você não precisa ser feliz e achar tudo maravilhoso. Por exemplo: não é difícil ter 20 anos? Tá loco, foi muito difícil ter 20 anos. Você não sabe o que vai ser da sua vida, você não sabe se você quer ir pra cá ou pra lá, você não sabe se casa ou se compra uma bicicleta… É um negócio que é muito assustador, né? Então eu acho que nada é muito fácil.”

 

“A transformação é a lei da vida”, escreveu Simone de Beauvoir em seu ensaio sobre a velhice. Ela rejeita a ideia de que a vida é uma morte gradual, o que classifica como um paradoxo que desconsidera a “verdade básica sobre a vida – a vida é um sistema instável em que o equilíbrio é continuamente perdido e continuamente recuperado: a inércia, essa sim, é equivalente à morte.” O feminismo também rejeita a inércia dos padrões e dos limites impostos às mulheres e pressupõe constante transformação para acomodar as inúmeras realidades e redefinições trazidas pelas vivências de cada uma de nós. É o que sublinha Rachel: “Você não precisa descobrir como é ser velha, porque você está definindo uma nova maneira de ser velha. Porque a gente não aceita esses padrões antigos. É contra isso que estamos lutando”.

 

 

Carolina de Assis é mulher cis feminista, trabalha como editora da revista Samuel e escreve (menos do que deveria) no blog Transtudo.

Ilustração: Nara Isoda.

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