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Amanda Gotsfritz, coluna, feminismo, Ligia Xavier, número 21, Sapapop, séries, televisão
SAPAPOP | Feminismo didático
Gillian Anderson ensina como é que faz na série The Fall. Por Lígia Xavier
… Enquanto isso, durante uma investigação interna na polícia de Belfast:
Investigador Eastwood: Me disseram que o investigador Olson te visitou em seu hotel nas primeira horas da madrugada de segunda-feira.
Superintendente Stella Gibson: Positivo.
Eastwood: Você pode me dizer o motivo da visita?
Stella: Relações sexuais.
Eastwood: Por quanto tempo ele esteva com você?
Stella: Duas horas, duas horas e meia.
[…]
Eastwood: Ele te enviou duas mensagens com mídia, você pode me dizer o conteúdo delas?
Stella: Eu não as abri.
Eastwood: Você pode me dizer por quê?
Stella: Porque eu não quis.
Eastwood: Por que ele era um homem casado?
Stella: Eu não sabia disso naquele momento.
Eastwood: Mas você não pensou em perguntar?
Stella: Ele não pensou em me dizer… Não sei de nada que te ajudará em sua investigação e tenho bastante trabalho pra fazer.
Ele permanece na sala, enquanto Stella senta-se em sua mesa e o olha com uma cara de “por que você ainda não foi embora?”.
Eastwood: Quando você o conheceu pela primeira vez?
Stella: É o que te incomoda de fato, não é?.. Uma trepada de uma noite. Homem fode mulher. Sujeito: homem; verbo: fode; objeto: mulher. Isso é ok. Mulher fode homem. Mulher: sujeito; homem: objeto. Isso não é tão agradável para você, é?
Eastwood sai da sala.
Esse diálogo acontece na série The Fall, estrelada por Gillian Anderson (lembra da agente Scully do Arquivo X?). Ela interpreta a protagonista, Stella Gibson, uma superintendente da Polícia Metropolitana de Londres chamada a Belfast para revisar a investigação de um caso de assassinato.
A primeira coisa que notei na série foram a beleza da Gillian, meu deus! Ela tá mais velha! Todas as rugas aparecendo (alta definição é uma maravilha), ela está linda, maravilhosa!
Numa escala de 0 a 10, Stellinha leva:
A beleza da personagem vai sendo construída também pelo seu caráter forte, feminista. E esse é um dos méritos da série! Acho que muita gente não percebe, mas é uma série feminista e é um “feminismo didático” (chegarei lá).
Algo óbvio (para algumas pessoas): ela é uma mulher em posição de liderança em ambiente tradicionalmente masculino. Óbvio que ela tem que toda hora ficar se provando e demonstrando que é fodona — e ela é fodona mesmo!
Mas falando um pouco sobre a série…
The Fall trata de um assassino serial de mulheres, que é interpretado pelo Jamie Dornan (que tá todo delícia, todo gostoso nesse papel e que, acredito, hoje em dia está mais famoso por ter interpretado o protagonista do filme 50 tons de cinza), e aí vem a Stella, lá da capital, Londres, especialista em investigar crimes contra mulheres (Mais informações se encontram na Wikipedia, IMDB e afins.)
E a primeira coisa que ela faz é…
***ALERTA DE SPOILER***
… trepar com um policial que ela achou bonito. Ela o viu na rua (sim, na rua, durante uma ocorrência), perguntou pra alguém o nome dele, foi lá, se apresentou e simplesmente lhe disse seu número do quarto do hotel. Simples assim!
Só que os coleguinhas policiais não gostaram muito dessa história: ele era casado, tinha dois filhos, blá-blá-blá moralismo, blá-blá-blá machismo. Questionam a capacidade dela de ser chefe da investigação, “exigem” que ela tenha autocontrole… Gente! Um absurdo (absurdo diário pelo qual todas as mulheres passam na vida, acredito). Mas ela continua fina e séria e solta frases como as de acima quando necessário (ou seja, várias vezes, pois toda hora ela é questionada por ser mulher e por exercer sua liberdade sexual quando bem entende).
Feminismo didático
Não me parece que o público da série sejam especificamente mulheres ou homens. É uma série dramática de investigação que ultrapassou índices de audiência altíssimos outrora alcançados em 2008 no Reino Unido.
Há várias instâncias, tanto na primeira temporada quanto na segunda, em que é explicado por que a atitude X é machista. Não me recordo de as palavras “feminismo”, “feminista” ou “machista” terem sido usadas em algum capítulo.
Já jogaram aquele jogo Tabu? Em que é necesssário fazer com que o seu grupo acerte a palava-tabu, descrevendo-a sem usar nem a própria palavra nem as outras palavras da carta?
Vejo isso como um objetivo de fazer uma série “para tod@s”. Mulheres e homens (machistas ou não) verão a série e gostarão dela, pois estarão mais focadxs na investigação, no desenrolar da história, na genialidade do assassino, na genialidade da investigadora. E, enquanto isso, há essas cenas de “querid@, isto é machismo!”.
Chamei esse feminismo de didático pois acredito que o que é dito e mostrado lá é até clichê para quem é feminista e/ou militante. Mas, para o público em geral, são naturais as atitudes machistas, acho que nem são consideradas assim por grande parte da audiência.
Particularmente, às vezes tenho a sensação que tem gente que já descarta/desqualifica de cara qualquer discurso só ao ler/ouvir palavras-chave como “feminismo”, “patriarcado” e “opressão”. Por isso admiro essa estratégia discursiva de The Fall.
Pensando no macro, e aí talvez esteja o maior trunfo desse feminismo didático, a série trata de um assassino serial que só mata mulheres: mulheres com seus 30 e poucos anos, de sucesso profissional, bonitas e solteiras, que fazem com seu corpo o que bem entendem.
Sacam o simbolismo disso?
Não é muito comum encontrarmos em séries mulheres protagonistas, quando elas o são, dificilmente são feministas e, algo que não me recordo em séries (mas minha memória pode estar avariada), mais raro ainda é encontrar uma mulher que seja libertária (ou libertina) e que banque isso de fato.
Obs. 1: “misoginia” aparece na série, mas quando e falado por quem, você deve assistir para saber!
Obs. 2: me pergunto se a série passaria no teste de Bechdel, às vezes acho que não, mas não problematizo isso. O ambiente policial é majoritariamente masculino, há poucas mulheres, menos ainda as em posição de liderança. Há como contar uma história fictícia, mas plausível, realista, de uma investigadora policial sênior durante seu trabalho, sem que ela trave a maioria de suas conversas com colegas de trabalho homens, falando de homens (ela investiga um assassino homem, afinal de contas!)?
Obs. 3: para quem ficou “PQP! E agora?” após ver o final da segunda temporada, fique tranquilx: a BBC Two confirmou uma terceira e última temporada da série. Não vejam o teaser da terceira temporada se não quiserem ver o final da segunda!!!
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Ilustrações The Fall: Amanda Gotsfritz.