trabalho
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Tecnologias da exploração
Sobre como O PL 4330, o telemarketing e a terceirização têm a ver com você.
Por Lia Urbini
Em nossa Geni de maio escolhemos o tema tecnologia. E tecnologia muitas vezes é associada a coisas positivas, libertadoras. Algo que facilita as comunicações, as trocas em geral – incluindo de pegação a casamento, mercado livre e clube de favores. Que nos poupa trabalho e nos livra para outros afazeres.
“Não é magia, é tecnologia”, dizia o slogan do 0-11-14-06, serviço telefônico para venda de mil coisas que você sempre passou sem, mas que depois de conhecê-las, você revisita todo seu passado, não entendendo como havia vida anterior sem elas. Cintas emagrecedoras que te poupam das abdominais; aspiradores de pó que também cospem água para que você não esfregue nada… até minha avó caiu nas compras das iscas de silicone fosforescente, entregues com frete grátis pra represa de Nazaré Paulista (quando esta ainda tinha água), com a promessa de que a pescaria demoraria menos com os lambaris artificiais psicodélicos.
Mesmo que você seja uma das variedades do tipo “antigo”, que não se deslumbra com essa pirotecnia toda; mesmo que você sugira plantas carnívoras pra lembrancinha de festa de criança, com a ideia de enfatizar a natureza; acampe numa ilha sem energia elétrica nos 10 dias de recesso do seu trabalho de escritório; resista ao ecrã tátil (mais conhecido como touchscreen) mantendo seu celular antigo que ainda contém botões e só manda SMS… mesmo que você more longe dos “centros tecnológicos”, na perifa sem lan-house, na fazenda, na casinha de sapê – por opção ou por falta de opção -, a tecnologia, com suas mil formas, ou suas consequências, chega em você de alguma maneira. E nem sempre para libertar.
A associação entre tecnologia e trabalho, sob o recorte específico de gênero e sexualidade, é a parte do assunto que eu gostaria de enfatizar. Aproveito o ensejo do primeiro de maio e do descarado ataque aos não muitos direitos trabalhistas que temos, traduzido principalmente na aprovação pela Câmara dos Deputados do PL 4330, nesse último 27/04/15 [Ver matéria da Geni sobre o PL 4330 e Dossiê sobre terceirização disponível no blog da Boitempo]. Nesse contexto, toda divulgação acerca das consequências de mais terceirização e precarização do trabalho é pouca.
Bastante gente na psicologia, na sociologia, na história e mesmo na economia vem se debruçando sobre o tema, incluindo também pesquisas realizadas dentro dos próprios coletivos de trabalho (sindicatos, grupos de categorias profissionais e movimentos sociais). Ao final deste artigo listo algumas referências de pesquisas para quem se interessar (e quem puder ajudar a aumentar a relação, comente o tópico com sugestões, por favor!), mas para agora restrinjo-me a comentar o artigo “Centrais de teleatividades: o surgimento dos colarinhos furta-cores?”, de uma pesquisadora da Unicamp, Selma Venco, publicado no livro “Infoproletários: degradação real do trabalho virtual”, de 2009, organizado pelos sociólogos Ricardo Antunes e Ruy Braga. A pesquisa já tem alguns anos, mas a situação base permanece, quando não piora.
Nesse texto a autora relaciona a degradação das condições de trabalho com o reforço dos estigmas sociais em função do gênero, sexualidade, raça e aparência, o que pode ser percebido através da análise do perfil dxs profissionais privilegiadxs pelas empresas de telemarketing: “Os trabalhadores selecionados por empresas terceirizadoras de telesserviços são predominantemente mulheres, jovens, afrodescendentes, homossexuais, transexuais, obesos, enfim, pessoas frequentemente rejeitadas em postos de trabalho que envolvem o contato vis-à-vis [cara a cara], relegando-os a permanecerem invisíveis a uma sociedade de consumo que privilegia certos padrões estéticos”. (p.170). De acordo com gerentes entrevistados na pesquisa, o telefone funcionaria como uma espécie de anteparo social, que “protegeria” xs trabalhadorxs na medida em que lhes é permitido esconder a sua imagem. Ao mesmo tempo, dentro do ambiente de trabalho essas pessoas poderiam ter a imagem que quiserem, desde que cumpram as metas estabelecidas. O exame mais detalhado da situação revela, no entanto, que o procedimento de “ocultação” dessxs trabalhadorxs em trabalhos invisíveis só colabora para um regime de segregação no mundo do trabalho.
Mas o que essa seleção de perfil tem a ver com a terceirização? Para entender, basta voltarmos um pouco no tempo, olhando para a história recente desse ramo de trabalho. Foi-se a época em que para se ter uma linha telefônica você precisava ficar em filas que demoravam anos, literalmente. Até o começo dos anos 1990 era assim: você era sorteado com um número depois de uma grande espera e tinha que pagar um custo inicial pela instalação. Não eram raros anúncios como “troco fusca por linha telefônica”. O cenário pôde se transformar com desenvolvimento de novas tecnologias e seu barateamento, que abriram terreno para a expansão dos serviços para um maior número de pessoas. No entanto, como técnica e política não funcionam separadas no mundo real, a promessa da democratização precisou acertar contas com a onda das privatizações dos 90, e a “popularização das linhas” não foi acompanhada por serviços de qualidade e redução das tarifas, com como sinaliza a autora. Novas empresas surgiram, oferecendo novas formas de venda ou atendimento ao cliente via telefone: deu-se o boom das “centrais de teleatividade”, também conhecidas como call centers, compondo o telemarketing. Essas novas empresas passaram a realizar serviços que anteriormente ficavam a cargo das próprias empresas contratantes. E em proporção considerável. Os números referentes ao ano de estudo apontavam para quase 2% da população brasileira trabalhando no setor. Como o trabalho no telemarketing não é considerado uma atividade-fim – ou seja, as vendas, atendimento ao cliente ou pesquisas de satisfação seriam um “a mais” no caminho da mercadoria, aprimoramentos na esfera da circulação e da melhoria de sua produção -, entram no campo do que, já faz tempo, se terceiriza. São passadas para as terceirizadas determinadas tarefas com vistas a “melhorar a produtividade” e cortar custos: tais metas no entanto são obtidas através de menores custos e responsabilidades para o contratante, obtidos com formas de contratação que incluem menos direitos trabalhistas. E quem ocupará esses postos de trabalho? Quem não possui os requisitos estipulados pelo mercado para se candidatar a outras ocupações.
A mão de obra do telemarketing é eminentemente composta por mulheres. E nesse ambiente, valores tradicionalmente associados ao feminino são constantemente explorados. Mesmo sendo mulher, você deve investir em características que nem sempre vêm no pacote de nascimento e/ou criação: ter paciência, ser delicadx, saber ouvir, ter sensibilidade e “jeito” para lidar com o público. Não à toa, a lógica se inverte nos cargos de supervisão. Menos homens estão entre os operadores, mas estes conseguem com maior facilidade ascender aos cargos de mando, também tradicionalmente associado ao universo masculino. As mulheres ainda teriam mais responsabilidade no trabalho; se sustentam família, então, farão de tudo para não faltar e para bater as metas. Menciona-se no estudo inclusive o impacto da vontade ou necessidade que a mulher que engravida, depois de afastada por alguns anos do mercado de trabalho, apresenta para retornar ao trabalho, como sinal de sua “recuperação social”. A população trans também é referida no estudo como altamente produtiva e assídua, características bastante influenciadas pelo medo de perder o emprego.
Conta também na composição do perfil dessxs trabalhadorxs o papel da escola, e muito fortemente o da família, em suas formações: a chamada hereditariedade do capital cultural. São selecionados predominantemente jovens cujas famílias tinham especialização básica e de baixa remuneração. Estes, mesmo com mais estudos em comparação aos pais, muitas vezes não conseguem obter condições de vida e remuneração melhores que a geração anterior. A maior parte estudou em escolas públicas de bairros periféricos, sendo que, na contratação, um dado preferido pela gerência é a origem na classe baixa. Segundo gerentes entrevistados, oriundos de classe média ou média-alta não aguentariam pressão: teriam mais opções, se sujeitariam menos, largariam mais facilmente o emprego. Adicionando a estes fatores de repertório familiar e de formação os agravantes vivenciados por garotas que cedo são expulsas de casa ao engravidar, ou a população LGBT, expulsa por não aceitação, temos as condições perfeitas para a geração de trabalhadorxs que não possuem tantas outras saídas além de empregos nessas condições. Metas impossíveis de serem cumpridas, condições de fiscalização e humilhação constantes, alto nível de stress e lesões típicas da extenuante jornada de trabalho no ramo são alguns dos principais obstáculos que esse contingente de trabalhadorxs precisa vencer a cada dia. E a situação sim, pode ficar pior!
Para encerrar, recupero a seguinte frase de Boaventura de Sousa Santos, que abre o artigo de Selma: “Temos o direito a reivindicar a igualdade sempre que a diferença nos inferioriza e temos o direito de reivindicar a diferença sempre que a igualdade nos descaracteriza”. Em tempos de severas divergências internas entre os diversos setores da esquerda, e de proeminência dos discursos que enfatizam a diferença e a atuação política por fora das instituições partidárias, fica o desafio de renovar estratégias de luta e não atropelar singularidades sem pra isso fazer tábula rasa da herança histórica – única base concreta que, gostando ou não, temos – e cair nas promessas milagrosas assemelhadas aos inventos high tech que possuem cara nova mas não alteram substantivamente as velhas conhecidas estruturas de exploração.
Todxs contra o PL 4330!
Agradeço especialmente as sugestões e contribuições de Fábio Pimentel; e as leituras e contribuições de Aline Sodré, Mariana Kinjo, Zeca Baboin e Lígia Xavier.
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