primeira pessoa
cartas, Cícero Oliveira, Nara Isoda, número 22, S2
Uma carta que sempre chega
Todo texto, de certa forma, é uma carta. Este texto, por ser um texto de amor, é um pouco mais ridículo do que o comum. Por Cícero Oliveira
Para Alex, de Gravataí
Uma carta, ainda que não alcance seu destinatário, sempre chega ao seu destino. Mesmo que elas se extraviem no meio do caminho e que os envelopes, cuidadosamente fechados, nunca tenham sido abertos, certo é que alguma notícia daquele que a envia sempre chega.
Em fins do século passado, num mundo em que a Internet não era tão popular e quando ainda era um bem complicado ter acesso a qualquer debate sobre questões de gênero e sexualidade, a sensação de isolamento que um adolescente gay (eu, no caso) sentia era bastante acentuada. Certamente não é muito diferente do sentimento de solidão que umx adolescente LGBT experimenta ainda hoje (a vida nunca é fácil para ninguém); o que tornava complicada a existência (a minha e a de muitas pessoas na mesma condição que eu), porém, era não ter com quem falar, com quem trocar experiências de mundo e da minha então curta vida.
Um dia, folheando uma revista gay – a primeira que eu tinha comprado e que tinha atravessado a cidade para conseguir (peguei ônibus e metrô e fui o mais longe possível, pois morria de vergonha de comprar nas bancas perto de casa) –, depois de ter examinado cuidadosamente a parte das fotos sensuais (eu era adolescente, virgem e qualquer barriga e coxa grossa fazia meus hormônios saírem pelas orelhas, sejam compreensivos), resolvi ler as matérias.
Eu devia ter uns 15 anos nessa época. Depois de passar pela seção de “Contos Eróticos” – e de querer ardorosamente conhecer o “Primo Devasso de Piracicaba” (aliás, se você estiver lendo, me liga, me manda um telegrama, um SMS) e sentar na poltrona ao lado do “Passageiro Misterioso” (torço para pegarmos o mesmo ônibus) – eu me deparei com uma outra seção, que vinha antes dos anúncios das saunas e depois de uma reportagem: “Cartas dos Leitores”.
Ela era bem menos “sexy”: só havia texto (publicar com foto era mais caro), parecia uma página de classificados de automóveis, na qual as pessoas descreviam altura, peso, gostos e terminavam sempre passando um número de “caixa postal”.
A maior parte ali, era possível perceber, procurava putaria.
Para que xs leitorxs mais contemporâneos entendam o que quero dizer, é mais ou menos como hoje a gente vê nos aplicativos: aqueles caras que escrevem que são caseiros e querem relacionamento e, no primeiro intercâmbio virtual, nos apresentam seu canal uretral, seus testículos e às vezes sua bexiga. Boa parte deles fazia questão de ressaltar seus atributos: dominador, carinhoso, maridão, tripé, peludo, maduro, puto, safado, bem dotado, sério, ativão, passivo de raiz, insaciável, S&M, submisso. A lista, como é de se imaginar, era imensa – não muito diferente do que se vê hoje em bate-papos e apps da vida.
Outros diziam-se carentes, e faziam mais ou menos como esses homens que colocam em seus perfis nos aplicativos descrições enormes – com várias citações de escritores importantes (ou do Pequeno Príncipe), frases de efeito, frases espirituosas ou dando tapas na cara da sociedade, ou diziam ainda que procuram casamento, que queriam um companheiro para a vida toda, que “curtiam” um jantar romântico com vinho e chocolate, ou procuravam um “brother firmeza”, um “bromance”, que amavam fazer amor à luz das estrelas etc.
Por fim, havia aqueles que diziam que queriam apenas conhecer gente legal de todos os lugares do Brasil, e foi com eles que comecei a me corresponder – ainda que no fundo eu quisesse mesmo era dar um passeio com o “insaciável”, com o “peludo” ou com o “puto bem dotado” (#soyunhombresincero, sorry).
Li atentamente todos os perfis e escolhi uns três, para quem possivelmente eu mandaria cartas. Todos eles eram de fora de São Paulo, mas me recordo que só escrevi para um deles, que era de Gravataí e que foi aquele que me deixou as melhores lembranças (que guardo na memória, porque essas cartas, infelizmente, o tempo se encarregou de perder).
Peguei o caderno da escola, abri nas últimas folhas e comecei a rabiscar: “São Paulo, data, mês, 1997”. O nome dele, se não me engano, era Alex, e na época ele tinha 25 anos.
“Caro Alex”…
E então me deparei com uma enorme dificuldade: mostrar que eu era (ou pelo menos poderia ser) alguém interessante. (Era a primeira vez que eu percebia que teria que me inventar para atrair o olhar ou a atenção de um outro, e nem desconfiava que seria um pouco assim por toda a vida). Mas como eu faria para parecer alguém interessante, já que naquele momento, a única coisa legal que eu podia dizer sobre mim era que gostava de filmes e de ler – apesar de minha cultura cinematográfica se resumir à Sessão da Tarde e minha cultura literária só englobar os livros da Série Vagalume, “Iracema” e “A Moreninha” que estava lendo na escola para fazer prova?
Bem, fiz o que pude – e me inventei do zero, que era o que era possível fazer. No fundo, eu só estava mandando aquela carta para ver se alguém, em algum outro lugar do planeta, era ou podia ser como eu.
Então eu falei de mim, do que eu achava que sabia sobre mim: que estava no segundo colegial e que gostava de estudar (apesar de não gostar da escola), que gostava de ler, que gostaria de encontrar um namorado, que ia prestar vestibular dali a dois anos e que tinha dúvidas sobre o que escolher como carreira. Falei que era de São Paulo, das músicas que gostava de ouvir (claro que selecionei aquelas que achava que causariam um impacto mais positivo – MPB, sobretudo –, apesar de eu passar o dia todo ouvindo dance music vagabunda).
Era uma carta de duas folhas frente e verso, escrita com caneta azul e letra caprichada, e estranhamente, eu coube ali. Pus o melhor de mim naquelas linhas pautadas, selei um envelope e mandei para um outro, que tinha certeza que era um igual, um semelhante.
Quinze dias depois, veio a resposta: letra cuidada, bom humor, gentileza ímpar, uma foto dessas reveladas em fotóticas (me recuso a explicar, joguem no Google para entender o que é) dele com uma camisa cacharrel branca, calça jeans de cintura alta, jaqueta de couro preta e cabelo cacheado com gel (deem um desconto porque isso era fashion nos anos 90).
Achei tudo tão lindo. Eu tinha recebido uma resposta! Descobri, por meio daquela seção tão sem atrativos que, além de remetente, eu também poderia me tornar um destinatário.
Pelo que me lembro, na carta ele falava que tinha namorado por um bom tempo, contou-me sobre seu trabalho, sobre as coisas de que gostava, disse que conhecia São Paulo, mas que não a visitava com frequência, que no sul fazia frio e que esperava receber notícias minhas em breve. Ele não dizia absolutamente nada de importante ou relevante, mas falava de tudo que era crucial: sua própria vida, essa coisa tão banal e encantadora que é a vida.
Aquela carta havia sido a primeira das muitas que eu enviaria na sequência, sempre ávido por ler outras histórias que me dessem notícias de mim, sobre o que eu era ou que eu poderia ser. Cheguei a escrever mais duas ou três cartas para ele, mas nosso contato foi aos poucos esmorecendo, até se perder completamente e as trocas cessarem definitivamente.
Nunca agradeci suficientemente àquele rapaz distante – e que agora, passados 18 anos, está mais distante ainda – por ter me ajudado a saber tanto (mas, ainda tão pouco) sobre mim. As cartas que mandei eram para ele, mas elas chegaram de fato para mim.
Eu sequer desconfiava que naquela carta estaria de certa forma o embrião de todo texto que eu escrevi depois, pois todo texto escrito também não deixa de ser uma carta “endereçada para todos e para ninguém”, como diz Maria Carolina Fenati na Revista Gratuita 1.
Ver um outro (igual, mas, e ainda assim, tão diferente) falar de si foi uma das experiências mais importantes que tive naqueles 15 anos – que, como todos os 15 anos, passaram muito rápido.
Aquelas cartas, todas, foram mais longe do que seu ponto de partida, chegando a destinatários que não apenas as leram, mas me ajudaram a escrever respostas para questões que eu sequer desconfiava que tinha.
Aquelas cartas chegaram longe, e algo semelhante eu encontraria anos depois, ao me reunir com um “bando de doidxs” tão lúcidxs para ajudar a fazer a Revista Geni.
Leia outros textos de Cícero Oliveira s2.