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ESCULACHO | Bordas, lonjuras e centralidades
Tanto sutiã queimado… Por Alciana Paulino
Publicado em 14/06/2015
Nas bordas
Quando criança adorava ir à cidade. Era o lugar das compras, de comer em restaurante ou lanchonete, o lugar de ver um monte de gente, diferentes formas, jeitos e modos. Para mim era uma viagem ao mundo dos adultos.
Um dia, uma priminha veio de Goiás com sua mãe, pois precisava de atendimento médico especializado. Disse para ela que seria muito legal quando fossemos à cidade. Ela perguntou se já não estávamos.
Não soube responder.
Feminismosmosmos
Numa aula de Antropologia Rural a professora compartilhou sua pesquisa. Um dos detalhes me marcou: as mulheres campesinas lutavam para trabalhar em casa. Opa, como assim?! Tanto sutiã queimado…
Num lugar em que destruíam as propriedades familiares rumo à monocultura, liberdade era trabalhar na própria terra, junto aos filhos e filhas. O trabalho assalariado era sujeição, violência.
Centros
Centro lá em casa era centro espírita kardecista.
Fragilidades
Mamãe trabalhava, às vezes, em dois empregos. Nessa época a cornucópia estava arrasando. Minha mãe sempre muito generosa, ajudava quem podia.
Meu bebezinho foi brincar lá embaixo. Um grupinho de crianças a pegou para Cristo: um garoto disse que ela, por ser preta, fedia. Além de ter o cabelo ruim, era parente dos macacos e, por isso, era estúpida.
Mesmo com quatro anos ela respondeu: “E sua mãe, não sente vergonha de ir pedir comida e remédio para a família macaco?”.
Distâncias
Quando minha mãe se casou fiquei morando com a minha avó. Depois de alguns anos fui ficar com ela, meu padrasto e minha irmã na Cidade Tiradentes. Era longe, longe de tudo o que eu conhecia. Não conseguia ter os olhos de encantamento para o novo. No início tudo era lonjura para mim. Na época, nem vaga em escola tinha aquele lugar.
Desconfio ter virado gente nessa então, lá.
Hoje, mesmo passados tantos anos da minha partida, me parece perto, pertinho quase dentro.
“Eu não li, eu não assisti”
Um dia eu vi a Pobreza. Chorei. Foda foi quando ela quis morar comigo.
Meu primeiro currículo
Minha amiga dizia que tinha que mentir o nome do bairro porque senão ninguém contratava. Botei lá em letras maiúsculas CIDADE TIRADENTES. Achei que se algumx babaca poderia me excluir no processo seletivo por morar longe não merecia ser meu/minha colega de trabalho.
Deve ser bom ser avó
Minha avó cuidava de mim e do meu primo. Nessa época, mais dele, porque ele era menor. Eu já arrasava indo para a escola sozinha, esquentando a minha própria comida, lavando louça etc. – isso tudo no auge dos meus 7 anos. Meu primo era bebê, tinha 2.
Todos os dias minha avó acordava cedo, se arrumava, acordava ele, o alimentava, o arrumava. Botava a pesada bolsa nas costas e, com ele nos braços, pegava o busão lotado, mas era tão lotado que precisava que alguém de fora a ajudasse empurrando suas costas para que a porta fechasse.
Ficava nesse inferno quase duas horas até chegar na creche em que trabalhava. Lá, além do meu primo, cuidava de várias outras crianças. Depois, o mesmo inferno de volta. Chegava, tomava uma dose de pinga, lavava o rosto, as mãos e ia fazer a comida. Dava uma bela bronca em mim, pois ainda não tinha tomado banho. Sentava, assistia à novela, dormia e no dia seguinte de novo. Tudo de novo.
Hoje ouço as pessoas falarem que deve ser bom ser avó, pois se pode mimar os netos. Bom, deve ser ótimo ser de classe média em qualquer fase da sua vida.
A estrangeira
O povo lá de casa acha estranho ter uma bissexual na família. “O bom é que é só de vez em quando, né?”.
Ilustração: Thiago Fonseca