resenha
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A permeabilidade do orgulho gay
Pride conta a solidariedade entre grevistas e primórdios do movimento LGBTT no Reino Unido. Por Bernardo RB
Publicado em 15/06/2015
É o ano de 1984 e Joe (George MacKay) completa vinte anos. Ele acaba de ganhar uma câmera fotográfica de última geração. Sinal de que teria novos rolos de filmes a revelar. Nada de câmera digital nos anos oitenta.
Agradece ao seu pai, que tem dificuldade de demonstrar afeto. Sua mãe observa contente ao lado do filho, com bolo e velinhas. A casa é limpa, enfeitada, tem carpete e papel de parede. Estamos em Bromley, um subúrbio de Londres.
Joe observa um livro ao seu lado e vemos um fragmento do título: All Colour Cook Book [livro de receitas a cores]. Ainda não sabemos que ele é discretamente gay. Está prestes a pegar um trem para Londres rumo à Parada do Orgulho Gay ou, como dizem por lá, Gay Pride.
Adentrando a multidão da parada, ele logo se depara com um cara que precisa de ajuda para segurar uma faixa. Isso vai mudar a postura de Joe em minutos. De repente, há muitas pessoas conversando em volta daquela faixa. Outro tipo de família encontra-se ali. Apesar de ter ido ao evento sem querer visibilidade, ele acaba se sentindo à vontade e, mesmo supertímido, fica pro after. Faz lembrar a primeira parada gay que fui na vida.
Joe tenta se esquivar dizendo que não sabe o que as pessoas vão pensar, que ele é do interior, de Bromley. “Não se preocupe, somos uma igreja muito aberta”, responde o gay que segura a faixa Queers: bem melhor barulhentos do que escondidos.
Um amigo que você nem sabia que existia
Pride, comédia romântica com direção de Matthew Warchus, é um filme sobre como um pequeno grupo de ativistas lésbicas e gays levantou fundos para a greve dos mineiros no Reino Unido, em 1984-85, criando a maior rede de apoio aos trabalhadores das minas naquele país.
Ser atacado pelos tablóides, sofrer abusos da polícia, ser detestado pela primeira ministra Margaret Thatcher e pela opinião pública eram fatores que aproximavam muito os mineiros das lésbicas e dos gays (lembrando que a década de 1980 foi o início da AIDS).
Em Pride, é o personagem do ativista Mark Ashton (1960-1987) quem inspira essa união e convoca algumas pessoas bem diferentes entre si a se tornarem ativistas: punk, estudante de confeitaria, casal com roupas bem passadas à procura de atividades, intelectual, feminista, vegan, bicha fervida. O grupo fica conhecido como LGSM – Lesbians and Gays Support the Miners [Lésbicas e Gays Apoiam os Mineiros] e anda pelas ruas e casas noturnas com baldes decorados pedindo trocados para ajudar a greve dos mineiros.
A Gay Pride daquele ano de 1984 havia sido tranquila quanto a problemas com a polícia. Apenas os xingamentos habituais dos passantes e faixas como “Vai queimar no inferno”. Aqueles eram tempos em que a homofobia tinha raízes mais profundas.
Para onde haviam ido os policiais? Estavam concentrados nas greves contra o fechamento das minas de carvão e contra as medidas neoliberais que elas implicavam. Policiais de todo o Reino Unido foram convocados para reprimir as ações da poderosa NUM – National Union of Mineworkers [Sindicato Nacional dos Mineiros], que já havia derrubado o governo de Ted Heath na década de 1970.
O carvão foi, desde o século XIX, um importante combustível para a ascensão do capital, envolvendo um contingente enorme de trabalhadores, aldeias inteiras. O plano de governo Thatcher de diminuir a ação do estado na economia incluía cortar os subsídios ao carvão e deixar um monte de gente sem emprego garantido.
Por que defender os direitos de uns e não de outros?
A LGSM foi tentando estabelecer contato com o sindicato dos mineiros e outras grandes organizações. Queriam encaminhar as primeiras doações angariadas, mas as pessoas desligavam o telefone quando os ativistas diziam a sigla. Talvez por uma confusão com a letra L, Dai Donovan é o primeiro mineiro que esse pessoal encontra na vida, eles que são também os primeiros homossexuais declarados que Dai conhece.
Nesse espírito de amizade improvável, a LGSM desloca-se de Londres até um povoado no Vale de Dulais, região de Wales, para conhecer alguns mineiros e famílias em greve. Convidados pelo comitê que deseja mostrar gratidão pelas doações, eles são ao mesmo tempo recebidos por obrigação, com aquela desconfiança de eu-não-sei-o-que-você-é. Afinal, o comitê tinha se acostumado com jornalistas, sindicalistas, não associações de lésbicas e gays. E a LGSM tinha ido na maior, sem pedir nada em troca. Um dos grandes trunfos do filme é colocar o estranhamento desse encontro com humor, mostrando o quanto sair de sectarismos é ainda um trabalho no qual estamos começando.
Para uma amizade coletiva livre, na qual cada um possa ser o que for, o estranhamento e a divergência são os mais importantes, pois ativam a autonomia e deixam clara a diversidade de olhares que está em tudo o que fazemos juntos. Essa frontalidade é respiração, doação, escuta e fala. Tarefa permeada pelas contradições humanas, cheia de tropeços que o filme faz ver: a liderança de Mark Ashton, por exemplo, está extremamente concentrada nas questões dos mineiros e tem dificuldade de comunicar com as vozes das lésbicas.
“Nós passamos pelas mesmas coisas que vocês passaram”, Mark diz num discurso para um público que não o entende bem, numa festa da comunidade de trabalhadores das minas. Por que um gay iria se meter enquanto gay num ambiente tão hétero e straight quanto o dos trabalhadores da indústria de base? Por que defender questões de classe, se tem gente morrendo de homofobia aos montes por aí?
“Nós passamos pelas mesmas coisas que vocês passaram”, sim. Não importa se você é X, Y ou Z, se foi contemplado num movimento ou não. Seja quem for, o fato de sentir fraqueza será agravado se você não puder contar com um amigo. E, se você não tiver dinheiro, também será muito complicado. A gasta palavra solidariedade, tão cantada, fala de abolir uma antiga separação, a de quem tem e quem não tem. Solidarity forever [Solidariedade para sempre], eles dizem. É um corte amplo, que funda uma atenção que vê além do óbvio do tempo, na direção do para sempre.
A ficção que é história
O roteiro de Pride foi escrito a partir das histórias de quem viveu o corpo a corpo da associação LGSM com a greve dos mineiros de 1984-85. O roteirista Stephen Beresford escutou a história pela primeira vez na faculdade de teatro. Ele intitula-se um contador de histórias “sem escrúpulos”. Mais importante do que as pessoas envolvidas na história é a própria narrativa enquanto experiência oferecida ao espectador. Ele avisou aos entrevistados que seus depoimentos serviriam de ingredientes para uma ficção, não um documentário.
Assistimos, assim, à construção que faz qualquer história linear: uma mistura de dados, documentos, entrevistas buscando a inteireza do roteiro. Alguns personagens históricos, porém, foram escolhidos para serem retratados. Dá uma olhada nos que tiveram a biografia retratada:
Dai Donovan [Paddy Considine] – líder mineiro que fez memoráveis discursos em festas babado para agradecer ao LGSM na década de 1980. Pressionou o Partido Trabalhista da Inglaterra, conseguindo colocar os direitos gays em sua agenda.
Mark Ashton [Ben Schnetzer] – (1960-1987) fundador da LGSM. Secretário geral da YCL – Young Communist League [Liga da Juventude Comunista]. Morreu de AIDS com 26 anos. Tornou-se uma lenda para os ex-mineiros da região de Wales.
Mike Jackson [Joseph Gilgun] – ativista, jardineiro e co-fundador da LGSM. Um dos principais contadores de histórias para o filme.
Jonathan Blake [Dominic West] – ator, estilista, ativista que é um dos primeiros diagnósticos de HIV na Inglaterra. Recentemente celebrou o seu 65o aniversário.
Siân James [Jessica Gunning] – dona de casa que foi líder durante as greves e teve uma relação muito próxima com a LGSM. Depois do término dos protestos, formou-se em língua Welsh (dialeto de sua região). Hoje é membro do parlamento britânico pelo Partido Trabalhista.
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Ilustrações de Bruno O.
Referências [em inglês]
Materiais históricos utilizados no roteiro de Pride
http://www.theguardian.com/film/2014/aug/31/pride-film-gay-activists-miners-strike-interview
“Cannes 2014 review: Pride – Billy Elliot continued with rousing gay rights romance set during the strike”
http://www.theguardian.com/film/2014/may/23/cannes-review-pride-gay-rights-miners-strike
“Matthew Warchus: why I made a romcom about gay activists and striking miners”
http://www.theguardian.com/film/2014/may/21/matthew-warchus-pride-gay-activists-miners-strike
“Pits and Perverts: the legacy of communist Mark Ashton”
http://www.morningstaronline.co.uk/a-772e-Pits-and-perverts-the-legacy-of-communist-Mark-Ashton