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Outras vozes pela terra

No Uruguai, criadoras de gado e cineastas contra megaprojeto de mineração. Por Leila Giovana Izidoro, de Montevidéu

Publicado em 15/06/2015

 

 

 

No Uruguai, há mais de quatro anos xs habitantes das zonas rurais de Valentines e Cerro Chato estão lutando contra Aratirí[1], megaprojeto de exploração de ferro a céu aberto instrumentado pela empresa Zamin Ferrous[2]. Organizadxs na Mesa Representativa de Produtores e Vizinhos da Rota 7, xs produtorxs da região se declararam “em estado de alerta em defesa dos recursos naturais” e mudaram suas rotinas tranquilas do campo para protestar na capital, Montevidéu, e se reunir com diversos atores políticos em todo o país.

Fazendo honra ao legado das primeiras sufragistas do Uruguai, que votaram em Cerro Chato em 1927, as mulheres participantes desse grupo de produtorxs agropecuárixs e vizinhxs tiveram papel central nas mobilizações. Para além das questões político-econômicas que estavam em jogo, elas trouxeram outras percepções ao debate, centradas no risco de iminente desapropriação de suas famílias e de perda do patrimônio cultural de seu povo.

As vozes dessas mulheres foram registradas no projeto audiovisual Otras voces por la tierra, produzido por Victoria Gómez e Natalia Espasandín, em conjunto com o Grupo de Mulheres de Cerro Chato e Valentines.

Voces por la tierra I:

Voces por la tierra II:

Voces por la tierra III:

Voces por la tierra IV:

 

Elaborado entre julho de 2013 e agosto de 2014, o trabalho, composto por quatro spots de vídeos, diz muito sobre o processo de organização dessas mulheres e sua relação com a terra ameaçada pela mineração a céu aberto, como contam Victoria e Natalia para a Geni.

 

Vocês são profissionais da área de audiovisual ou ativistas?

Natalia: As duas coisas. Eu e meu companheiro estávamos vivendo uma problemática de petições de uso dos campos para exploração de ouro em San José e foi aí que entramos em contato com o MOVUS (Movimiento por un Uruguay Sustentable [Movimento por um Uruguai Sustentável) e com todas as mobilizações em torno de Aratirí. Eu sou produtora e realizadora audiovisual independente e a ideia era contribuir a partir daquilo que eu sabia, porque eu não conseguiria debater com alguém com argumentos da economia, da política e da geopolítica, nunca poderia ser uma embaixadora nesses termos.

Victoria: Estive morando fora e quando voltei vi que queriam, basicamente, dinamitar o lugar onde eu cresci, onde está a minha família, o meu povo, em benefício de uma multinacional. Então, em primeiro lugar, foi um golpe pessoal que nos motivou. Acho que não podemos nos definir como ativistas, somos cidadãs, e, de repente, nos atravessa essa questão e vemos necessário atuar e resistir. Além disso, nosso projeto em si foi feito a partir de uma perspectiva profissional, nós duas viemos da área de comunicações, o formato em que trabalhamos faz parte da comunicação para o desenvolvimento, de favorecer que esses grupos encontrem e trabalhem sua voz e que isso chegue ao âmbito público.

A ideia de produção era usar uma linguagem diferente da tradicional?

Natalia: Queríamos ver que argumentos emocionais estavam em jogo quando surge a possibilidade de se instalar um projeto tão agressivo com o entorno como era Aratirí. Porque não há argumentos contra a emoção, ninguém pode te dizer “você não está sentindo isso”, a pessoa pode se importar ou não, mas não pode dizer que aquilo não é verdadeiro.

Victoria: Buscar um discurso emocional em uma sociedade que supervaloriza o racional é algo realmente contracultural. Além disso, queríamos nos distanciar do informativo, não só pela forma de produção, mas porque já havia muito disso, e queríamos fazer algo mais cinematográfico, com nossos recursos limitados. Passamos um ano construindo uma relação de confiança, no ambiente que era o único em que as mulheres pudessem falar, e para nós era fundamental não armar um circo com mais vinte pessoas na produção, pessoas que cairiam de paraquedas no lugar.

Por que trabalhar com as mulheres?

Victoria: Eu já as conhecia antes, via como elas trabalhavam e se organizavam. Definitivamente havia algo que as tinha feito mudar de vida e ocupar outros papéis que não os “tradicionais”. Elas deixavam o âmbito privado de suas casas para ir ao Parlamento, às ruas, mas quando as pessoas viam os porta-vozes dos movimentos, só viam os homens, que sempre falavam de números e cifras. Então nos pareceu uma oportunidade valorizar outra perspectiva, a partir de um olhar mais próximo à terra, à família e à história de cada uma, porque, muitas vezes, as mulheres são as guardiãs disso tudo. E nós as víamos levando tudo isso com tanta alegria e pensávamos “como aguentam?”, quatro anos acordando todos os dias sem saber se vão ter que arrumar todas as suas coisas e sair. E isso tínhamos em comum com elas, a ameaça de um megaprojeto de mineração também tinha cruzado a nossa vida. E assim as convidamos, pensando que seria ótimo existir um espaço de catarse, que nunca havia acontecido nas reuniões de segunda, com todos, porque essas eram reuniões mais rígidas e pragmáticas.

Cerro Chato é bastante conhecido por ter sido o primeiro lugar do Uruguai e da América Latina em que as mulheres conseguiram o direito de voto.

Victoria: Cerro Chato é um lugar com uma grande tradição participativa, no âmbito da sociedade civil, que se manifesta em muitos aspectos. Foram as próprias pessoas da região que fundaram a escola secundária, e o hospital também, como voluntários, e depois eles foram doados ao Estado. Foi a primeira vez em que as mulheres não só votaram, mas militaram para que fosse possível votar na América Latina. E o diretor do jornal El País, em 1927, dizia “essas loucas de Cerro Chato, decidiram que agora querem votar” e elas, do centro do país, se correspondiam e debatiam. Acho que esse grande envolvimento da sociedade de Cerro Chato também é um dos motivos de não ter sido tão fácil instalar-se aí um megaprojeto de mineração, porque aí não vive gente acostumada a que venha alguém a dizer o que eles têm que fazer. Ainda mais se esse alguém não tem nenhuma legitimidade.

Quantas mulheres participaram da produção?

Victoria: Cerca de trinta, mas nas reuniões tínhamos umas doze. Algumas tinham que viajar de Valentines, que é um pequeno povoado ao lado de Cerro Chato. Então houve diferentes participações, e bastante amplas. Outros grupos de mulheres de outros lugares ajudaram na distribuição do material em outros países, como o Coletivo CASA, da Bolívia.

Há uma parte ficcional nos vídeos, em que as mulheres interatuam com a natureza. Qual foi a intencionalidade ao colocá-la?

Victoria: Nós rodamos em campos que foram “pedidos” para Aratirí, ou seja, que poderiam não mais existir. Essas ações que elas representaram foram todas no território que está em disputa e foi uma tentativa de simbolizar de alguma forma todo esse universo de sensações e sentimentos que elas tinham em relação ao lugar onde viviam.

Natalia: A maior parte das emoções seria transmitida pelas palavras das mulheres, mas queríamos encontrar algo que pudesse completar isso com outros recursos da linguagem. Queríamos um outro tipo de metáfora que mobilizasse outras coisas, e que, além disso, nos ajudasse a mostrar o território de onde vinham essas mulheres, não só como plano de fundo das falas, mas com algum tipo de relação com a natureza. A questão de cuidado da água, junto com o projeto Aratirí, era outra pauta que estava muito sólida, é uma das coisas que chama mais a atenção em Montevidéu. Montevidéu está um pouco afastada do debate ecológico, mas a questão da água é um dos pontos mais críticos aqui.

Geniilustramulheres

Vocês poderiam falar um pouco mais sobre o processo de produção do vídeo?

Victoria: Parte das metas do nosso projeto, além do produto final que obtivesse circulação, era gerar um processo em que essas participantes também se empoderassem a partir do reconhecimento de sua própria posição e de seus interesses, que se sentissem mais fortes para ser porta-vozes, para empreender outras ações. Quando fomos à Lima, em dezembro, elas não paravam, davam discursos, era totalmente diferente.

Natalia: Nós fizemos vários pactos para construir uma confiança com elas, combinamos que não trabalharíamos de uma forma extrativista, como ir lá, rodar, tirar algo e causar danos. Nós compartilhamos o conhecimento de como filmar e tivemos, inclusive, os direitos patrimoniais compartilhados sobre o produto final. Elaboramos uma forma de trabalhar em que elas contribuíram com uma parte e nós com outra. Como consequência desse processo, no qual elas tiveram que explicar pra câmera, na linguagem audiovisual, por quê não à Aratiri, elas se legitimaram e passaram a ter mais confiança para explicar isso a qualquer pessoa. E na distribuição dos próprios vídeos, elas tiveram muitas vezes que os apresentar frente a diferentes audiências, sem a necessidade de nossa participação.

Quais foram as respostas depois que o projeto foi lançado?

Natalia: Nossa expectativa era gerar, sim, um impacto, mas, sobretudo, contribuir com um trabalho que já vem sendo feito há bastante tempo e envolve muito mais gente. Nosso trabalho é um míssil que vai direto ao coração. A gente o desenhou diferente do que estava fazendo o MOVUS ou o grupo da Rota 7 e o que estava fazendo um montão de outras organizações. E no meio dessas coisas todas, contribuímos com nosso pequeno grão de areia.

Victoria: Recebemos convite para apresentar o trabalho em diversas partes do país, convite para ir ao Cumbre de los Pueblos [Conferência dos povos], no Peru. A partir do nosso projeto, esse grupo de mulheres de Cerro Chato, que nunca havia saído do país, agora está fazendo parte da Red Latinoamericana de Mujeres Defensoras de los Derechos Sociales y Ambientales [Rede Latino Americana de Mulheres Defensoras dos Direitos Sociais e Ambientais], conhecendo mulheres de outros países e coordenando ações. E um indicador de que estávamos incomodando foi que, no dia do lançamento, o diretor da empresa mineradora contratou um ônibus para levar gente de Cerro Chato que estava a favor de Aratirí para fazer uma espécie de irrupção no lançamento. Se fosse algo insignificante não teria esse tipo de movimento.

O Uruguai é visto como um país modelo no mundo todo, não só pela figura carismática de Pepe Mujica, mas também pelas pautas progressistas alcançadas em seu governo, como a legalização do aborto, da cannabis, o casamento igualitário, a regulação da mídia. No entanto, o pronunciamento do ex-presidente Mujica em relação à Aratirí foi bastante controverso. O que vocês pensam a respeito?

Victória: Na verdade isso começou durante a presidência anterior, de Tabaré Vásquez, e Mujica deu continuidade. E essa contradição foi o que mais demorei para processar, sobretudo porque agora Mujica é uma “Bíblia” do meio ambiente e ia a muitos encontros. Quando ele abria uma conferência ambiental com seu discurso, eu queria morrer. Quando estivemos em Lima, em dezembro do ano passado, com um grupo de mulheres na Cumbre de los Pueblos, nos encontramos com gente de outros países e percebemos que em todo lugar acontece isso: candidatos que fizeram campanha e, depois chegaram ao poder, mudaram seu discurso.

Natália: Minha leitura, para além de minha simpatia ou não por Mujica ou por seu governo, é de que, na realidade, estar neste lugar de poder, no governo, significa também ter que negociar com muitos interesses diferentes e tomar decisões com determinados valores. Podemos dizer que nesse caso, evidentemente, os valores se opõem a tudo o que ele disse em várias situações. De alguma maneira, ele não aguentou a força dos interesses que estavam por trás, que vinham da estrutura econômica e também de dentro de seu próprio partido.

Diante desse cenário, as manifestações continuam?

Victória: As manifestações continuam porque a empresa se mantém em 120 mil hectares, além das terras que já tinha comprado. Hoje, na região de Cerro Chato e Valentines, o latifúndio que existe é Aratirí, as terras que a empresa conseguiu comprar. Ou seja, eles ainda não se retiraram, são processos especulativos, estão esperando que suba o preço do ferro ou que aconteça alguma outra coisa. Ou seja, nesse lugar nunca mais vai se poder viver com tranquilidade.

Natália: Quando sua área de cultivo é reivindicada por meio de um “pedimento minero”[3], automaticamente a terra tem outro valor. Ninguém quer comprar uma terra que não sabe o que vai acontecer por lá, se vai construir, se vai plantar. Se você quer investir na sua casa, no seu campo, em pecuária, o que seja, então tudo isso gera muita angústia. Não é histeria, são coisas reais. Nós na cidade nos mudamos muito facilmente, alugamos algo e no outro dia já estamos em outro lado, e, muitas vezes, não percebemos que as pessoas do campo não largam as suas coisas tão facilmente e se vão. A atividade do campo se sustenta com pequenas inversões e com ciclos mais longos, não se pode plantar em um dia e colher no outro, e assim se tem saqueado o futuro permanentemente.

Victória: O Uruguai não é um país que tem uma cultura mineradora, então talvez por isso nos custe um pouco olhar para América Latina e aceitar que alguns problemas que temos aqui são os mesmos que existem em outros países da região. O uruguaio gosta de pensar que é um pouco mais europeu, mas em relação ao extrativismo, tem sido vítima das mesmas mentiras. Não há povo, não há uma zona próspera, que tenha justiça social, perto de uma zona mineradora, isso é uma mentira. Nenhuma empresa de mineração trabalha para outro fim que não seja o seu próprio interesse.

 

Notas:

[1] O Projeto Aratirí pressupõe a extração de ferro a céu aberto em uma região do pampa uruguaio, historicamente voltada a pecuária extensiva, com pequenas e médias propriedades de produtores familiares. A operação também inclui a construção de um mineroduto de 230 km e um porto de águas profundas em Rocha, com a finalidade de exportar ferro para a Ásia, principalmente China.

[2] A mesma empresa que está sendo investigada pelo Ministério Público do Trabalho do Amapá por atrasar pagamento de salários, não pagar encargos sociais e acumular uma dívida milionária com fornecedores e terceirizados. Fonte: http://www.al.ap.gov.br/pagina.php?pg=exibir_not&idnoticia=2410

[3] “Pedimento minero” é um documento mediante o qual uma pessoa física ou jurídica solicita um determinado setor com localização geográfica específica, com o objetivo de explorar substâncias minerais passíveis de concessão.

 

Giovana Izidoro é estudante de Direito na Universidade de São Paulo e atualmente está em intercâmbio na Universidade da República, no Uruguai.

Ilustração: Paloma Franca Amorim

 

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