relato
Aline Sodré, alteridade, cultura de massa, identidade, indústria cultural, juventude sem-terra, Lia Urbini, Lígia Marina de Almeida, número 23, padronizações
Indústria cultural e cultura de massa no campo
Um relato sobre o trabalho com padrões, estereótipos, identidade e diferença em assentamentos catarinenses. Por Lia Urbini e Lígia Marina de Almeida
Publicado em 16/06/2015
Nossa entrada no campo: oficinas culturais como parte da luta por permanência após a conquista da terra
Entre agosto e outubro de 2014 o Laboratório de Educação do Campo e Estudos da Reforma Agrária (LECERA) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) coordenou um projeto chamado “De Olho na Terra – Estadual/SC”. Financiado pelo Ministério da Cultura e realizado em conjunto com o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), o projeto envolveu uma série de atividades relacionadas com a viabilização da permanência da população assentada nos lotes da reforma agrária. Essa tarefa é gigante e urgente, uma vez que começa, após a conquista das terras em cada assentamento, uma nova batalha para se conseguir estradas, comunicação, escola e acesso aos serviços públicos em geral, além da construção das casas e desenvolvimento da produção agrícola.
Parte das atividades do “De Olho na Terra” consistiu em equipar ou renovar as estruturas dos centros de internet, rádio e/ou vídeo de alguns dos assentamentos da região, com o objetivo principal de estimular os jovens a não abandonar o campo por falta de equipamentos de formação e lazer. Junto com os recursos para aquisição de materiais permanentes foram planejadas formações para os jovens: através de oficinas eles tiveram acesso ao conhecimento técnico para a utilização dos equipamentos e também debateram temas associados ao universo da indústria cultural. Em encontros intensivos de 12 horas aos finais de semana, foram trabalhadas questões como a concentração dos meios de comunicação e os decorrentes padrões estéticos e de relações de trabalho, complemento essencial para possibilitar novas produções que não se pautem pelo que majoritariamente se realiza nos grandes meios de comunicação e nas produções artísticas comerciais.
Para desenvolver em conjunto o que foi chamado de “Oficinas sobre Indústria Cultural e Cultura de Massas”, o LECERA entrou em contato com o GPTMARX (grupo de pesquisa em teatro e marxismo da UFSC, coordenado pelxs professorxs Marília Carbonari e Paulo Berton), solicitando a indicação de alguns participantes interessados em complementar a equipe de coordenadores vindos do próprio movimento. Foi aí que nós, Lia e Lígia, mestrandas da cidade, entramos na história, nos comprometendo a integrar a equipe de coordenação das oficinas. Após uma contextualizada geral sobre a quantidade de integrantes para cada encontro, o nível médio de formação dxs jovens de cada região e algumas de suas demandas recorrentes (como o desejo por oficinas que misturem linguagens e incluam jogos e trabalhos corporais), chegou-se a uma estrutura geral para todas as oficinas, que foi adaptada de acordo com preferências e habilidades específicas de cada propositor e em função de cada contexto (assentamentos com espaços maiores ou menores de trabalho, perfil de jovens com mais ou menos acúmulo de debate nos assuntos tratados, condições climáticas e materiais disponíveis).
Nós já havíamos descoberto afinidades em trabalhos conjuntos anteriores. Corpo, gênero, sexualidade e marxismo eram temáticas que nos aproximavam, e para nos aprofundar neles cada novo convite para ações fora do meio acadêmico e urbano nos animava mais. Nos propusemos então a assumir algumas oficinas separadas e uma delas em conjunto. Este texto vem da vontade de compartilhar algumas das intensas experiências que tivemos ao longo de todos esses encontros, em especial o que coordenamos juntas no Assentamento Pátria Livre, no município de Correia Pinto, nos dias 11 e 12 de outubro de 2014.
Padrões e estereótipos no cotidiano e nas representações artísticas
O debate sobre indústria cultural e cultura de massas nos assentamentos é preocupação recorrente nas atividades organizadas pelo MST. Para além dos esforços regionais e nacionais de criação e manutenção de pontos de cultura, escolas de ensino fundamental, médio e superior, centros de formação, site, jornal e revista próprios e tantos outros espaços de produção de conhecimento questionadores dos padrões dominantes advindos dos centros atuais, existem as articulações do MST com outros movimentos e redes de movimentos para viabilizar as agendas extensas de formação na militância. Muita gente do próprio movimento coordena atividades de formação, mas a busca por mais parcerias nas universidades e em outros movimentos também se configura como oportunidade para que ambas as partes se arejem, inovem e estreitem laços.
Para nós, vir “de fora”, ainda que já tivéssemos trabalhado em outras oportunidades com o MST, trazia algumas questões, e foi muito bom poder lidar com elas. Tínhamos diferenças de origem em relação aos grupos que coordenávamos, além da própria condição de estarmos como propositoras das atividades. Éramos um pouco mais velhas do que a média dos participantes, que tinham no máximo uns 20 e poucos anos. Vínhamos da cidade, e nossa formação, ainda que tentando ser diversificada, foi muito marcada pelo ensino tradicional escolar e universitário. Nossos pais não tiveram grandes envolvimentos com movimentos sociais, e os apuros financeiros de nossas famílias foram vividos de modo bastante ensimesmado e desengajado, ao contrário das experiências dos jovens que conhecemos. Construímos muito da nossas trajetórias de trabalho em grupos de teatro com influência brechtiana ou em escolas públicas, espaços nos quais, de um modo ou de outro, exercitamos formas de utilizar criticamente a matéria da indústria cultural.
Logo de cara, muitas vezes são as diferenças que nos saltam primeiro aos olhos, e elas nem sempre parecem convidativas. Querendo ou não, parte significativa das nossas ações sociais funciona a partir de identificações, estabelecimentos de relações, condicionamentos e expectativas a partir de recorrências. Padrões. E eles têm a ver com história, história do mundo e histórias pessoais. Não são em si ruins. Sem padrão nenhum pra nada, cada coisa teria que ser feita de um suposto ponto zero, seria uma amnésia coletiva que não permitiria acúmulos; um trabalho não poderia ser continuado por outra pessoa em outro contexto. Nesse sentido, reconhecíamos os limites e possibilidades que os padrões “aula”, “oficina” e a relação “professor/aluno”, aliados aos padrões de atitude e linguagem da cidade nos trazia, e tínhamos que jogar com eles. A nosso favor, um ambiente bastante aberto, espaços físicos e relacionais bem mais acolhedores do que as escolas tradicionais e disposição de sobra para o estar junto. Ao longo dos trabalhos, nossas diferenças foram esbarrando nas semelhanças que descobríamos ao realizar em vários uma mesma tarefa: conversar e gerar imagens e reflexões sobre os temas da oficina.
Tivemos a sorte de poder observar outros propositores coordenando oficinas anteriores, inclusive o pessoal do movimento, o que nos permitiu planejar as atividades já partindo das experiências realizadas. Mesmo assim, cada assentamento tinha suas próprias características e procuramos inventar jogos e esquemas de trabalho bastante flexíveis para que eles pudessem ser adaptados na hora, a partir de elementos que surgiam ao longo do dia, e que também propiciassem espaços de conhecimento mútuo das referências.
O que mais queríamos evitar era uma palestra de muitas horas com falas genéricas como “a indústria cultural nos manipula”, “a mídia é concentrada em poucas mãos e só existe para nos convencer a comprar seus produtos e valores”. Embora essas frases tenham suas porções de verdades, elas não dizem tudo, e reduzem demais a dinâmica social. Já apresentam uma sentença, sem revelar o caminho do julgamento: justamente o mesmo procedimento da grande mídia e da indústria cultural. Nos parecia necessário fazer exercícios coletivos nos quais a gente aos poucos pudesse ir desmontando, em diálogo e a partir de exemplos concretos, as estruturas da novela, do noticiário, da piada e da música, que aparecem todas já acabadas para nosso desfrute domesticado. Chegar a um ponto em que fosse possível identificar que frase ou imagem é utilizada com o intuito de vender um valor, reforçar um preconceito, naturalizar um modo de vida. E depois disso, exercitar: como fazer diferente? Sendo o modelo hegemônico, como inventar alternativas? Onde encontrar modelos contra-hegemônicos para nos inspirar?
Também desejávamos que as críticas à programas e atividades de massa não soassem como crítica à própria realidade e comportamento dos jovens. Algo como “Bruno e Marrone são uns vendidos que produzem uma música comercial péssima e vocês devem aprender que a indústria cultural é que nos faz gostar disso, portanto vamos transformar nossos gostos a partir de hoje”. Muitos dos assentamentos que conhecemos só recebiam sinal de duas ou três FMs, dois ou três canais de TV. Internet em alguns celulares, escolas ou centros culturais, mas como chegar com frequência a sites que mapeam produções “alternativas”? Para além desse aspecto, há também a questão do limite para a negação total do que se produz. Também fomos formadas por quilos de matéria da indústria cultural, adoramos dançar Madonna e isso por si só não constitui um problema de formação. Muito pelo contrário. Quem se afasta de toda a produção hegemônica também se afasta de muitos códigos compartilhados, e corre o risco de não conseguir se comunicar. Pensávamos em modos de examinar as contradições do sistema produtivo das artes sem cair nos binômios cultura de massas x cultura popular; cultura de elite x cultura de massas. Mas a pergunta de sempre retorna… O que fazer?
Colocando a mão na massa: os padrões dominantes como os padrões da classe dominante, contestados e ressignificados
Existe um argumento recorrente contrário às leituras críticas da indústria cultural. Ele se baseia no argumento de que, quando dizemos que um padrão de novelas e filmes condiciona os espectadores a determinadas reações e expectativas, isso seria subestimar a capacidade de reação e de múltiplas significações que os espectadores podem ter a partir da fruição estética. Há até uma frase famosa que não deixa de ter seu impacto: “não importa o que fazem com a gente, mas o que fazemos com o que fazem da gente”. Pra gente, no entanto, é evidente que existem mediações nessas relações de influência, mas do mesmo modo há limites para as ressignificações de uma obra ou notícia. Há limites concretos para o quanto você, individualmente ou coletivamente, faz com o que fazem de você.
Por um lado, quando um jornal em rede nacional veicula uma noticia de que sem-terras “invadem” um prédio público ou uma “propriedade”, de que “baderneiros” destroem o patrimônio público em manifestações que deveriam ser pacíficas e ordeiras, uma quantidade significativa de pessoas aderem a estes termos do discurso sem grandes indagações, e o que é pior, muitas vezes sem chances de conhecer outras versões da história. E isso não é privilégio de país sem escolarização. Temos uma série de exemplos de manipulação da informação e da opinião pública em países considerados o centro do mundo, da educação e do dinheiro.
Por outro lado, acreditar que “está tudo dominado” pode paralisar ações. O desafio é identificar e ativar as formas de ressignificar e contestar os padrões dominantes. Estes estão carnalmente conectados com os interesses das classes dominantes, mas se formam de modo sedutor e esperto, com sabedoria e poder para incorporar e neutralizar sua crítica de mil maneiras diferentes, muitas delas a princípio bem mais atraentes do que uma palavra de ordem ou um texto filosófico e difícil.
Para encontrar nossa medida para o trabalho, optamos por focar em algumas questões norteadoras para os dois dias da oficina, em parte dialogando com o mote das jornadas de junho de 2013: esta mídia/esta música/esta notícia me representa? O que reconheço estar de fora da representação oficial, das narrativas oficiais? O que acho sub-representado, ou mal representado? Me sinto representadx em que obras, em que momentos? Em que momentos me sinto ofendidx com alguma representação? É possível perceber quem sai ganhando e quem sai perdendo com tais escolhas? Alguns disparadores preparados, hora de partir pro encontro.
Parêntese sobre o mínimo múltiplo comum dos sub-representados: a violência
Iniciamos o dia pegando estrada até a escola do assentamento. No caminho, Josiel, o responsável pela mobilização e produção da oficina no Pátria Livre, nos mostra os limites dos lotes, as áreas fronteiriças com a rodovia SC e com as outras propriedades. Nos conta a história que ele considera a mais marcante da região. Na época de acampamento, um dos acampados resolveu catar pinhão nas redondezas. Cercado por capangas de um dos fazendeiros vizinhos, o moço apanhou até ficar inconsciente e não se dar conta de que arrancavam uma de suas orelhas com um facão. Acordou tempos depois, conseguiu socorro e teve atendimento médico a tempo de não ter outras consequências além do trauma e da perda da orelha. Ao comparecer à delegacia, teve o pedido de registro da agressão questionado, pois afinal de contas, ele havia cometido o primeiro delito, o de “roubar” (uma vez que os limites dos territórios ainda não estavam formalmente reconhecidos). Forçando a barra para não deixar o assunto morrer, conseguiu levar por mais algumas instâncias o processo pela agressão. No fim das contas, respondeu pelo roubo dos pinhões, e os que roubaram sua orelha não chegaram a ser identificados. O bucolismo do amanhecer no campo com os sons de animais e as lindas paisagens engasgava. Se procurávamos exemplos para concretizar os limites do argumento de relativizar o binarismo dominante/dominado, já podíamos passar para a próxima tarefa.
Recortes sobre a (sub)representação: jogos e dinâmicas tocando em machismo, racismo e LGBTfobia.
Com todos presentes, tomamos o café da manhã, uma apresentação teatral inicial dos participantes e, em seguida, a apresentação geral foi feita a partir de uma breve rodada de falas com nomes e assentamento/local de origem. Os grupos para as oficinas geralmente eram compostos de jovens vindos de dois, três ou até quatro assentamentos distintos, que possuíam o assentamento sede da oficina como ponto de encontro entre os outros. Alguns se encontravam pela primeira vez. Havia quem estivesse pela primeira vez em formação do movimento. Para outrxs, a viagem de ônibus, a auto-organização para a arrumação e manutenção do espaço, a mística, o trabalho intensivo de final de semana e a noite cultural já eram rotina.
Passamos para o Bingo Humano, jogo no qual cada um preenchia uma cartela de nove lacunas com assinaturas de pessoas que tenham as características de cada espaço em branco: ter aparecido na TV alguma vez; tocar algum instrumento; gostar de RAP ou “bandinha” (gênero musical bastante popular no interior do estado); não gostar de futebol; e por aí ia. Ao mesmo tempo em que forçávamos algumas conversas iniciais, criávamos um conhecimento geral sobre o que era ou não padrão de gosto.
A próxima atividade foi uma audição musical com caminhada, danças pelo espaço e conversas. Começar com música foi fácil, mas a partir de então abríamos o terreno para que as perguntas “gosto não se discute? Como formamos e transformamos nossos gostos? Nossas preferências? Nossas inclinações e disposições?” pudessem ser aplicadas em vários outros contextos.
Aquecidos, acordados e chacoalhados, passamos para a projeção do documentário O riso dos outros, de Pedro Arantes [link: O riso dos outros]. Para quem nunca assistiu, trata-se de um documentário sobre o fenômeno da comédia stand up que ouve os próprios comediantes junto aos comentários da blogueira feminista Lola, dxs quadrinistas Laerte e André Dahmer e de outras pessoas que problematizam o humor com base na ridicularização dos que já são, historicamente e também fora das situações de humor, ridicularizados: xs sub-representadxs, xs minorizadxs. Com muita piada pesada e palavrão, o filme já introduzia um clima um pouco mais tenso ao tematizar a violencia por trás do que é aparentemente apenas uma brincadeira, mas deixava também um desafio: como fazer o humor de “passar a mão na bunda do guarda”, ou seja, dos representantes do poder, em vez de reproduzir a opressão de quem já está por baixo?
Depois do almoço, conversa sobre indústria e cultura. Uma historicizada nos conceitos de indústria cultural e cultura de massas partindo da relação entre cultura e agricultura, da questão da propriedade dos meios de produção e da força de trabalho, antecederam a projeção pausada e comentada de 15 minutos (que se transformaram em quase uma hora) de O rei do gado, famosa narrativa meritocrática da naturalização da riqueza dos fazendeiros. A forma de Patricia Pillar representar a sem-terra Luana Berdinazzi, como uma espécie de bicho do mato eterna, suspirante pelo patrão-marido rei do gado, foi um dos dados mais problematizados.
Na sequência, mais alguns jogos inventados, como a “dinâmica da subrepresentação”, partindo do texto de Clara Lobo na Geni sobre o teste de Bechdel, e da festa dos estereótipos, e o fechamento do dia: o que ficou de fora de representação? Noite de cinema com pipoca e música, e preparação pro dia seguinte.
Geni e o zepelim
Para trabalhar teórica e praticamente a questão do que normalmente se exclui nas representações padrão, queríamos exercitar possíveis “formas” de trabalhar esses conteúdos a partir da noção de que o que altera as formas de percepção (e ação) da realidade é o “como se dá a ver” essa realidade. Isso estaria subsumido na “forma” artística, ou seja, não existiria conteúdo revolucionário sem forma revolucionária. Como linguagem de trabalho, para exercitar essas questões, escolhemos o teatro, até por perceber que jogos corporais eram muito queridos por essa turma. A tentativa seria trabalhar alguns jogos que pudessem introduzir as noções de conflito e contradição, buscando formas de representação que não procurassem imitar um real idealizado, partindo de um ponto de vista narrativo aparentemente neutro, como nas novelas, mas antes, formas que evidenciassem a contrução dos discursos e a intenção deles, bem como a pluralidade e a não-obviedade das personagens. Chovia muito. Entre uma atividade e outra, uns dez mais animados resolveram tomar banho de chuva. Risadas, correria e uma pausa forçada para ajeitar tudo e acertar a convivência entre os secos e molhados.
Realizamos então alguns jogos que trabalhavam com o corpo repetindo o que a fala dizia e jogos nos quais corpo e fala se contrapunham. Seguimos com a pergunta “- o que é conflito?” e tiramos uma definição coletiva para esta palavra. Distribuimos para todos os participantes um pedaço de barbante, pedindo para que imaginassem que cada ponta do barbante representava uma ideia contrária a outra ponta, e que estas, em tensão, gerariam “nós”, “conflitos”. Os convidamos então a fazer um “nó” no barbante a cada “conflito” percebido na canção Geni e o Zepelim, de Chico Buarque. Surpresas com a música, algum constrangimento inicial pela narrativa tão escancarada das relações de Geni, mas não maiores do que a indignação com a violência nela descarregada. Muitos reconheciam entre os nós as diversas menções ao apedrejamento. Sinalizavam principalmente os conflitos externos entre as personagens. Faziam paralelos com o que experimentavam em situações nas quais suas identidades de assentados, ou de jovens do campo, são desmerecidas. Uma garota acrescentou aos conflitos o conflito interno da própria Geni, que não queria se deitar com o general, mas o fazia pelo bem da cidade. Tanta gente junta, tanto jovem junto entre bancos compridos da escola de madeira reconfigurada para essas vivências sobre representação do eu e do outro… Tanta história que só se troca em ocasiões como essas. A história da orelha foi retomada. A do cachorro eletrocutado na represa. Muitas.
A conclusão das atividades se deu com a produção e apresentação de algumas cenas em que se experimentavam situações que não costumam aparecer na televisão. Imaginam como pode ter sido?
Por fim, nossa volta pra cidade. A volta deles para suas casas. Pensávamos sobre um dos lemas do movimento: “Lutar, construir reforma agrária popular”. O adjetivo popular vem sendo reforçado a partir da compreensão de que a reforma agrária não interessaria apenas à população do campo, mas à toda população trabalhadora. “Se o campo não planta, a cidade não janta”. Sentíamos a verdade do grito não num sentido apartado, de mundos paralelos conectados apenas pelo comércio de alimentos. Mas pela necessidade nossa, da cidade, de poder estar mais próxima do campo em todas as suas dimensões. Não apenas dos seus produtos. Porque do contrário a gente pára. Não deixa de jantar somente por falta de comida, que evidentemente também acontece, mas também por falta de apetite. Por falta de uma respirada mais funda, de alguns dias ao menos com estrela de verdade e de outras conversas. E que isso não seja privilégio de quem tem casa no campo ou dinheiro pras escapadinhas do caos urbano.
Torcida para muitos encontros mais.
Agradecimentos infinitos pra Aline e toda equipe do LECERA, equipe do GPTMARX e a todxs que nos receberam de maneira tão especial nos assentamentos que fomos. Aos coordenadores do projeto pelo MST que estiveram nas equipes que integramos (Fábio, Sandy, Priscila e Miguel). À Marília (campeã na cantoria de estrada) pelo convite e companhia. Ao Miguel outra vez por se desdobrar em vinte e fazer a história continuar. E ao Luiz Pimentel, pela leitura antecipada removedora de vícios bregas do universo da educação.
Lígia Marina, atualmente, mora em Tijuana (Baja Califórnia, México) onde pesquisa novas formas de agitprop nas artes cênicas. Recentemente aprendeu algo sobre arte e política ao assistir um Fandango Jarocho em que músicos e sapateadores de San Diego (EUA) e Tijuana se encontravam na fronteira, cada um de seu lado, separados pela enorme muralha. A música que fizeram juntos foi mais alta que as grades de ferro.
Ilustração: Aline Sodré
Fotografias: Lia Urbini