coluna
Alciana Paulino, corpo, Esculacho, feminicídio, feminismo, Memórias da Negrinha da Casa das Putas, menstruação, mulher, número 24, prazer, Renata Torres, segurança, violência doméstica
ESCULACHO | Corpo e sangue: outras histórias da negrinha da casa das putas
Não cansaram ainda dessas histórias? Então tome! Quem está segura? Algumas formas de mirada. Por Alciana Paulino
Publicado em 12/07/2015
Prelúdio: o caminho
Estava com uma dor estranha na barriga. Carregando uma mala grande e outra menor (minha irmã Bolinha), estava muito mais preocupada em como cruzar a Zona Leste de São Paulo sem que nos ferissem. No ônibus lotado as coisas eram mais estranhas, passa mala, passa criança, paga e passa a catraca. Segura criança, segura mala e junta tudo isso num banco apertado. Depois de duas horas chegamos em casa sãs e salvas, a mala, a malinha (S2) e eu.
Sangue
Desespero. Entro no banheiro para o sagrado xixi. Sangue na calcinha. Poxa, minha mãe tinha menstruado com 14 anos, minha avó com 17. Por que eu seria a azarada de menstruar com 11? Podia ter a sorte de ter algum problema no rim e o sangue vir dali. Chamei minha mãe.
– Não, Alciana, eu não quero ver o seu cocô.
– Não é isso, mãe. É sangue.
Mocinha
– Ai, não acredito! A minha filha é mocinha!
Festa
Mal esperou eu sair do banheiro e foi contar para quem aparecesse na frente. Parecia sentir-se mais mulher porque sua filha sangrava. Contou para todo mundo.
Ooooh glória! Naquela época não tinha Facebook.
Presentes
Festa que é festa tem presente. Ganhei absorvente, sutiã (agora podia/precisava usar), umas calcinhas e uma surpreendente camisinha.
– Agora você pode engravidar.
Felicitações
O espaço público virou um inferno ainda maior. Já não era fácil para a garota introvertida e medrosa que eu tinha me tornado. Agora tinha o risco de manchar a roupa. E vou dizer. Manchava.
Ao sair do prédio, ouvimos:
– Parabéns, Maciel! Soubemos que a Alciana ficou mocinha.
Ficamos constrangidos, meu padrasto e eu.
– A sua mãe é uma boca aberta, né?
O risco
A gravidez. Qualquer relação com o outro gênero deveria ser evitada.
“O que você estava falando com aquele moleque, sua vagabunda?!”
As pancadas
Qualquer interação com o gênero masculino deveria ser evitada a qualquer custo.
“Vou bater mesmo, mas você é uma estúpida, nem apanhando aprende.”
O pior de ter um corpo
Quando ele é invadido e/ou se deteriora.
“Te bato em casa pra não apanhar na rua.”
O pior de ter um corpo
Ele nasce, cresce e pode morrer.
“Qualquer dia desses eu te mato!”
O pior de ter um corpo
Quando ele não é capaz de te defender.
“Tira essa mão da frente, se não conseguir acertar onde eu quero eu te bato duas vezes.”
O pior de ter um corpo
Quando ele oferece formas que chamam atenção dos outros e isso passa a ser um risco.
“Eu vi aquele bando olhando pra você.”
O pior de ter um corpo
Poucas vezes pode sair dele.
“Deus, me ajuda! Por que eu tenho que passar por isso?”
O pior de ter um corpo
Quando ele não expressa o que você gostaria.
“…”
O pior de ter um corpo
Quando ele está cheio de hematomas e você tem que esconder.
“Acho que é melhor não ir pra escola hoje.”
O pior de ter um corpo
Lidar com as suas limitações.
“Iemanjá, me ajuda! Já pedi pra Deus, mas ele é homem, sabe como é…”
O pior de ter um corpo
Quando ele passa a ser o espaço para a manifestação do seu ódio do mundo.
“Eu quero morrer…”
O pior de ser um corpo
Você nasce, cresce e pode morrer.
Tudo o que for feito a ele é feito a você.
Quando ninguém, nenhuma instituição, Estado ou sei lá que porra te ajuda a se proteger.
O melhor de ser um corpo
O que não mata engorda e faz crescer.
O melhor de ser um corpo
Quando encontra outro corpo numa relação de afeto e/ou prazer.
“Mamãe eu quero, mamãe eu quero!”
O melhor de ser um corpo
Quando assume seu destino.
O melhor de ser um corpo
Quando entende que ele é político.
“Bota tudo no sol, querida. Aceita, mulher, você é potente!”
O melhor de ser um corpo
Você nasce, cresce, se diverte pacas e morre depois.
Sobre algumas memórias
Preferia esquecer. Me disseram que não posso. Concordo?
Agradecimentos: Marcos Visnadi, João da Mata, Mônica Maciel e Ana Lúcia Piazza.
Leia outros textos de Alciana Paulino e da coluna Esculacho.
Ilustração: Renata Torres