Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Corpo, escritura e filosofia em Preciado

Uns falam sobre o devir, outros se jogam. Por Bruna Coelho

Publicado em 15/07/2015

 

Todas as substâncias são venenos. A única diferença é a dose. Mas qual é a dose justa de testosternona? A que produz o meu corpo ou outra? O que seria uma justiça hormonal?

Beatriz Preciado, Testo junkie

 

O que é a filosofia?

 

… Subiam a colina por uma estrada à beira do desfiladeiro um mestre e seu discípulo. Horas a fio. Estreito caminho para a filosofia. Quando, num átimo, o mestre tira da sacola uma faquinha e a atira no vazio. Libélula assassina, o objeto retorna em hélice diante dos olhos incrédulos do discípulo. Arma mortal. Rasga o pescoço do mestre em corte fino, transversal. Profundo. Completo. Corte preciso de papel na carne. Sanguinolento. É difícil de acreditar no mestre: o sangue esguicha.

 

Esta fábula é narrada por Preciado que, em seu incerto caminho à filosofia, a ouviu de “um mestre budista jesuíta”: “O sangue salpica a cara do discípulo que observa a cena estupefato” (PRECIADO, 2014, p. 344).  Do mestre budista e jesuíta, o corpo separado da cabeça treme: assiste precipitar-se monte abaixo um pedregulho com olhos. Será que os olhos da cabeça também vêem o estrebuchar ancorado do corpo montanha acima? Quem vê? Quem é visto? O corpo ou a cabeça?

 

Incredulidade imóvel do discípulo. Que não escolhe, nem pode, recolher a cabeça ou o corpo. Dois. Díspares, irreconciliáveis. Que não recolhe. Que não colhe, da alternativa uma das duas res: cogitans ou extensa. [1] Que não rescolhe. Que recusa o dois: alma ou corpo, espírito ou trabalho, cultura ou natureza, idealismo ou materialismo.

 

A recusa das dicotomias modernas é o hakama [2] da filosofia contemporânea; beijo no mestre cujo corpo suicida tingiu com as entranhas a impossibilidade da escolha: não se corre, morro acima, atrás do corpo com a cabeça; nem atrás da cabeça, sem corpo. Em seiza [3] não se corre. Ajoelhado, o discípulo, agora mestre, ergue o queixo para o retrato daqueles que – com corpo e cabeça  fizeram. Como, na linhagem ocidental, fizeram segundo a seleção pop do filósofo Gilles Deleuze: Espinosa, Nietzsche, Bergson, Foucault.


Recuperar a sangrenta fábula do aspirante à filósofo é o devir Tarantino de Preciado  filhos de Hollywood em visita ao Oriente. Tarantino estende na planície uma toalha de piquinique xadrez branca e vermelha. Sobre ela dispõe uma peruca loura, uma saia tafetá verde-água, litros de catchup, uma maleta transbordante. Duas cartelas de pílula anti-concepcional caídas ao lado, liquefeitas da madrugada. Um dia de céu azul. Quando irrompe a gangue samurai no gramado, se decapita em Uma Thurman. Drag. Sangue. Sangue. Sangue. Com olheiras de ontem. Sangue salpicado no leitor.

 

Com sua sanguinolenta fábula, Preciado veste o hakama, ajoelha e faz-se decapitar. “Decapitar a filosofia”: título de seu projeto filosófico ou de seu protocolo de experimentação biopolítica com testosterona, página trezentos e quarenta e quatro. “Decapitar a filosofia” é, neste modo de vida efervecente em sexo, Testogel, escritura e política, devir cobaia.  Cobaia, como o cocainômano Sigmund Freud, os homeopatas e tantos outros do XIX e do XX, que puseram o corpo para jogo, médicos que só descobriram os  “benefícios” da ingestão de certas substâncias à custa de experimentações e maior ou menor vícios [4]. Preciado, cobaia, reivindica uma filosofia sem cabeça. A experimentação filosófica com T:  faz-se galo com testículos implantados noutras partes do corpo, como os utilizados pelo fisiologista Arnold Adolph Berthold no começo dos experimentos com “hormônios”-s esta nomenclatura não havia sido aventada no XIX [5]. Com tesão e testosterona, amalgamados por Preciado [6]. Grudados como o gel hormonal que lhe lambe os ombros desde sua primeira aplicação num protocolo autoprescrito de intoxicação voluntária [7]. Durante nove meses, P. experimenta livro e gel. Testo junkie, Texto junkie, Testo junkie. Braço Peludo-Beatriz Preciado protocola extirpar da filosofia a cabeça, fazer dela um bumerangue, em vai e vem intensivo. Quer que filosofar seja meter os pés pelas mãos e cus, e que ali não interfira, mais do que o necessário, a cabeça filosofante, sempre branca, heterossexual, ocidental. Normativa e colonizadora. Neste ensaio corporal testeronado, decapitar-se como procedimento de escritura é vestir o hakama. P. oferece queixo e joelhos aos retratos de Nieztsche, Deleuze, Derrida. Escreve por afetos e intensidades, num devir cobaia, devir T., Devir cyborg – títulos de alguns capítulos. Faz da cabeça bumerangue ou lâmina de papel na qual a forma da escrita é decisiva: Testo junkie, ele, ela, fode.  Preciado e seu Jimi de 22 centímetros, 372 páginas, veias  azuladas, glande inteiramente exposta, em edição argentina, aspiram à foda de Schreber, ao universal imanente:

 

Me introduzo no ânus de Deus com um dildo de 22 centímetros. Entro e saio do ânus de Doherty produzindo um som celestial ao abrir-me caminho entre suas tripas. Seu ânus dá às boas-vindas à minha brutalidade. A virilidade de deus Doherty se mede pela abertura de seu ânus. O cu de deus está pronto para um fisting bestial. Sabe que estes 22 centímetros de silicone são a preparação de algo mais. Agora que todo seu corpo é uma única parede enrolada em torno do buraco de seu ânus, encho o braço de lubrificante e o penetro. Meu braço inteiro [se cuella] sem esforço e vibra em seu interior. Sou a mão do universo e você é o heaven-hole. Meu braço gira em seu interior com o mesmo movimento de partida de um carro. As cortinas de lubrificante que nos rodeiam criam uma superfície especular. Vejo nossa imagem: um único corpo com duas cabeças, quatro pernas e três braços. Dá gosto de ver meu antebraço fazendo amor com deus. A publicidade desta imagem me excita. Estou a ponto de chegar com o braço nas ondas que se transmitem das paredes de seu intestino à minha mão e daí à minha coluna vertebral. Essa vibração se difunde ao longo de seu corpo. Seu ânus está agora completamente dilatado. Seu ânus é um sacrifício que se oferece ao êxtase sem gênero do meu braço. Nossos corpos assim reunidos são a comunidade lúbrica mundial. A história completa do rock & roll sai de seu ânus através de meu braço fazendo de meu corpo um instrumento orgânico eletrificado. É a música do Ânusbuceta. É assim, em meio desta contemplação, que alcanço a iluminação: a verdade da existência é sexo sonoro administrado em microdoses letais (PRECIADO, 2014, p. 326).

 

 

Sexualidade drag

 

Antes eu pensava que só os que eram como eu estávamos bem fodidos. Por que não somos nem seremos nem mulherzinhas nem heróis. […] Agora sei que em realidade estamos todos bem fodidos, não seremos nunca nem mulherzinhas, nem heróis.

Beatriz Preciado, Testo junkie

 

Feminilidade e masculinidade são identificadores do corpo… Que o corpo seja dito feminino ou masculino é uma prática oriunda de construções culturais. Seria possível apenas, respeitando as diferenças anatômicas, dizer: corpo dotado de pênis, corpo dotado de vulva, corpo dotado de pênis e ovário – às  vezes -, corpo dotado de vagina e pênis. Seria possível descrevê-los assim quando necessário – isto é, quase nunca; em consultórios médicos, se  muito. Que o ovário seja feminino, isso não está no DNA de suas células. Os xx, os yy, os aa, os bb, os cc, os xxy, testosterona, estrogênio, serotonina, tampouco são femininos ou masculinos. Menino, menina, dama, cavalheiros, homens, mulheres, minas, manos são entes de linguagem. Construções culturais, que identificam, enfileiram, discriminam. Separam desde o ventre: parimos meninos ou meninas – alguns parem furacões. Outros querem pará-los…

 

Esses significantes antinômicos parecem encarnar-se nas diferenças entre órgãos genitais, na espessura entre cordas vocais, na proporção entre massa muscular e gordura. Efeito da corporificação destas construções sociais: somatizadas, elas começam a abrir a boca, reivindicam-se naturais, num blá blá blá religiosamente cientificista ou cientificamente religioso. Gônadas “masculinas” ou femininas, aparelhos reprodutores de homens e de mulheres, Adão, Eva, Éden…

 

A sexualidade é drag:  fantasia. Nesta parada, apenas máscaras e travestis: toda mulher faz queen; todo homem, king. Homem e mulher nus por natureza, só no Éden – e o Éden é mito. “A certeza de ser homem ou mulher é uma ficção somatopolítica. […] O gênero funciona como um programa operativo através do qual se produzem percepções sensoriais que tomam a forma de afetos, desejos, ações, crenças, identidades” (PRECIADO, 2014, p. 98).  Na natureza e por natureza, nem masculino, nem feminino. Na natureza e por natureza: partícula, onda, sei lá. Nem os míticos heróis, nem as mulherzinhas. O corpo é construção e, ciborgue (HARAWAY), veícula informações, em rede. Constituído, adestrado por instituições, conectado a saberes e capital, o corpo é capaz em maior ou menor grau de resistir a eles.

 

 

corpo-trans1

O que pode o corpo em Preciado?

 

O corpo se tornou aquilo que está em jogo em uma luta entre os filhos e os pais, entre as crianças e as instâncias de controle. A revolta do corpo sexual é o contra-efeito desta ofensiva. Como é que o poder responde? Através de uma exploração econômica (e talvez ideologica) da erotização, desde os produtos para bronzear até os filmes pornográficos… Como resposta à revolta do corpo, encontramos novo investimento que não tem mais a forma de controle-repressão, mas de controle-estimulação: ‘Fique nu, mas seja magro, bonito, bronzeado!’

Michel Foucault, Microfísica do poder

 

 

O corpo, em Preciado, é efeito de sujeição ou controle. Compreensão teórica e vital de Beatriz: “Sinto que sob minha pele se levanta, de novo, o monstro de meu programa cultural feminino: fui treinada para sentir como uma mulher, para sofrer como uma mulher, para amar como uma mulher. E a testosterona não é suficiente para modificar este filtro sensorial” (PRECIADO, 2014, p. 257).  O monstro inscrito no corpo de Beatriz é efeito de micropoderes. Compreensão bioteórica dos escritos de Michel Foucault. “O domínio, a consciência de seu próprio corpo só puderam ser adquiridos pelo investimento do corpo pelo poder”, ele diz. A “ginástica, os exercícios, o desenvolvimento muscular, a nudez, a exaltação do belo corpo… tudo isso conduz ao desejo de seu próprio corpo através de um trabalho insistente, obstinado, meticuloso, que o poder exerceu sobre o corpo das crianças, dos soldados, sobre o corpo sadio. Mas, a partir do momento em que o poder produziu este efeito, como consequência direta de suas conquistas emerge inevitavelmente a reivindicação de seu prórpio corpo contra o poder, a saúde contra a economia, o prazer contra as normas morais da sexualidade, do casamento, do pudor” (FOUCAULT, Microfísica do poder, p. 146). Se os micro-poderes (econômicos, parentais, jurídicos, midiáticos) e os saberes correlatos a seus exercícios institucionais – a psiquiatria, a psicanálise, tudo aquilo que acreditamos ser Ciência e verdade –, longe de proibirem a sexualidade dos sujeitos, produzem-na como a verdade mais íntima de cada um de nós, fundadora de nossa identidade, há de se esperar o efeito-rebote: há de se esperar a insurreição dos anormais, visando o prazer e a visibilidade social. Monstros abjetos inconformes e inconformados, somos rebeldes contra as estreitas alternativas: homo/hétero, homem/mulher, casado/solteiro. Se a identidade sexual masculina é efeito não apenas de um programa cultural de masculinidade constituído majoritariamente por pornografia, camaradagem, músculos, reconhecimento mútuo, sacanagem, máquinas, circulação regulada de dinheiro, circulação de mulheres, como também por discursos “médicos” sobre câncer de próstata e impotência, sobre alcoolismo e impotência, sobre tabaco e impotência, sobre stress e impotência, sobre Viagra e impotência, haverá quem estrogene-se, implante próteses de silicone. Se a identidade sexual feminina é efeito de um programa cultural de femininildade constituído não apenas por revistas Capricho, Boa forma, Elle  como agradar seu homem na cama , mas, também, a partir de uma multiplicidade de discursos “teóricos” sobre quantidades de serotonina liberadas no orgasmo, benefícios da masturbação, cuidado com DSTS, idade-limite para a gravidez, síndrome pré-mestrual, controle da TPM por meio de dieta, controle da TPM por meio de yoga, controle da TPM por hormônio feminino  vulgo pílula anticoncepcional , haverá quem use testosterona. Se a maneira de amar, ser amada e perseguida por Pepe, o gambá, e sofrer como uma mulher cantada por Chico Buarque é a norma, haverá lei Maria da Penha, relação aberta e Valesca: agora que eu sou puta você quer falar de amor. Cis ou não cis, trans ou não trans, somos incitados, todos, sem exceção, ao orgasmo total. Normatizados ou contra-normatizados neste capitalismo que faz da libido valor e explora a potentia gaudendi (potência gozante) de seus trabalhadores. “No capitalismo pornográfico, a força de trabalho revelou seu verdadeiro substrato: força orgásmica ou  potência gaudendi” (PRECIADO, 2014, p. 41).

 

Mas o corpo em Preciado, para além de efeito de sujeição e controle, isto é, para além das mil violências sofridas (regulamentos, bulas, prescrições, interdições, hieraquias, gritos, jalecos, taxonomias, togas, tapas, socos, depilação) e outras tantas cometidas – uma vez que “violência de gênero = violência do sistema de gênero” (p. 99);  além de lugar de resistência à normalização através da incineração testeronada deste amontoado de lixo formador, o corpo em Preciado, é lugar de agenciamento crítico. Efeito ético. Compreensão teórica e vital, o corpo em Preciado é efeito diferido, entre outros, do cuidado de si visto por F. na pluralidade de éticas grega. É ritornelo dos escritos de Gilles Deleuze: doenças, perda da identidade, amores, álcool. CsO. Queda  ou vertigem do eu. Abismo. Filosofia.

 

 

Estética

 

Escritura sem autor, nem narrador que preceda o ato mesmo de constituição por  grafos. Estilo. G. D. como o “último representante francês de uma forma de insurreição sexual através da escritura”, diz Preciado (PRECIADO, 2014, p.15). O corpo em G. D penetra B. P., recusa o profundo, estende-se superfície: a toalha de piquinique filosófica sobre o plano de imanência intensivo próprio à escritura (Uma Thurman e Tarantino a caminho). Niguém sabe mais quem fala, quem é falado, sobre o que se fala. O gênio, o Pai da brilhante idéia está morto. Sujeito e objeto jazem ao lado. Dois caixõezinhos. Enterro da modernidade. Minhas condolências. Nossas, dos filhos sempre bastardos. Cópias ou simulacros assassinos do Grande Pai Tôtemico. De Adão e Eva. Não há Idéia. Não há modelo. Simulacros drags tomaram o presídio ideal, rebelaram-se. Quem comenta quem ou o quê é comentado, não sabemos, cegos em tiroteio. Isso fala = potência infernal de renovação da idéia em mãos, bocas e ouvidos da multidão. Não há Modelo, não há Autor, Deus, Pai. Não há O Original, nem origem. Eva, nem Adão. Eróticos, B. P., G. D., F. e B. C. agenciam-se. Tramam toalha de piquinique filosófica, segundo G. D. Penetram-se em superfície paradoxal. O Jimi 22 cm de Preciado acopla-se ao trenzinho Nietzsche enrabando Deleuze em fist fucking com Foucault. História da filosofia = erótica da filosofia. Um bando de… homens… que recusavam esta e outras identidades?

 

P. G. D. quer um plano de imanência, testosterona em gel. Anuncia, linha inaugural de Testo junkie, página quinze: “Este livro não é uma autoficção. Trata-se de um protocolo de intoxicação voluntária à base de testosterona sintética que concerne ao corpo e aos afetos de B. P. É um ensaio corporal […] Não me interessam aqui meus sentimentos, enquanto pertencendo a mim e a ninguém mais que eu. Não me interessa o que de individual há neles; mas, sim, como são atravessados pelo que não é meu” (PRECIADO, 2014, p. 15). Sua estrutura: um capítulo de literatura erótica, outro teórico. Epígrafe: a menção de Derrida ao seu desejo de ver, em um documentário sobre Heidegger, Kant ou Hegel, algo sobre suas vidas sexuais (Cf. PRECIADO, 2014, p. 16). B. P. narra. Nela, se fala isso.  Essa compreensão sobre o corpo intelectual e encarnado de P. é uma compreensão com o corpo. Não poderia ser feita só no papel: a tinta deve marcar a pele com T, que torna acre o suor de Beatriz. Como suporte ético e político, seu sangue pode e deve “experimentar” as construções culturais, torcê-las, pela aplicação de 100 miligramas semanais de T [9]. “Uma filosofia que não utiliza seu corpo como plataforma ativa de transformação vital é uma tarefa vazia. As idéias não bastam. A arte não basta. O estilo não basta. A boa intenção não basta. A simpatia não basta. Toda filosofia é uma arte de vivisecção, quando não de incisão do eu ou do outro. Uma prática de corte de si, de incisão da própria subjetividade. Quando o amor da vivisecção escapa do corpo próprio e se dirige ao corpo alheio, o corpo da coletividade, o corpo da Terra, o corpo do Universo, a filosofia se transforma em política” (PRECIADO, 2014, p. 282). Ao invés da representação política, o princípio da autocobaia: o bigodinho já não basta; superficial, o bigodinho cola e descola. Velcro. Preciado deve, isso aparece na letra do texto, página duzentos e setenta e sete, experimentar com/sobre o corpo testeronado sexo, drogas… e rock’n roll?

 

– Não. Nossos guitar heroes morreram aos 28.

 

Preciado faz sexo, drogas e biopolítica  subtítulo de Testo junkie. Faz contra o jaleco branco que lamenta copiosamente, apoiado sobre o balcão, a morte de seus heróis… “drogados”.

 

 Escuta aqui , pergunta P.  Quem é o cara que atribuiu a morte de alguém às drogas? Qual a vontade que valorizas como más as drogas recreativas, e boas, as medicamentosas?

 

À sombra do farmacêutico, do médico, e do legislador, uma multidão de traficantes.

 

O inimigo de P? As instituições médico-legais. Mesmo inimigo de Foucault. Instituições que, com o desenvolvimento do capitalismo no século XX, ganharam o reforço da indústria farmacêutica e regulam  este time junkie e policialesco de direita, com seus jalecos brancos, togas e protocolos , a ingestão de moléculas: prescrevem-nas e proibem-nas, a partir de certos ‘saberes’. Que nunca estão implicados, é verdade, na realidade dos países da dita periferia do capital, “pré-farmacopornográficos” (PRECIADO, 2014, p. 49), cujos corpos precarizados são estimados durar 55 anos, no máximo. AIDS, malária, tuberculose. O capitalismo em escala global não se interessa pela produção tecnológica de medicamentos aos corpos periféricos: os custos são impagáveis pelos países pauperizados (PRECIADO, 2014, p.49) – língua do p diminuto. Assim, na prescrição e proibição do uso de certas moléculas por determinados ‘saberes’, as aspas, desde Foucault com Nietzsche, devem ser ressaltadas: você tem um saber para o poder que exerce  ou um conjunto de saberes, historicamente determinados e com rupturas entre si. Ou: cada poder tem o saber que merece.

 

 

Protocolos de autointoxicação: nota sobre o caso Freud

 

“Narcoanálise”: Preciado quer encontrar “as origens psicotrópicas da crítica em Freud e Benjamin”. Um modelo de toxidade seria inerente à teoria psicanalítica. As mais altas especulações de Freud sobre os fenômenos de transferência, sobre a eficácia da hipnose, sobre os produtos bioquímicos da atividade sexual tem por modelo epistemológico o uso de drogas. O psicanalista, o hipnotisador, o sexo, a cocaína ou a morfina, todos estes três atuam sobre o corpo ou de modo a criar um estado alterado de consciência, quer esta seja provocada por ingestão, amor, dor ou prazer. A propriedade que lhes é comum: criar dependência. Por aí se compreenderia a psicanálise ser tão viciante quanto sexo e cocaína, hipnotizantes. Não há diferença de natureza, apenas de grau: mede-se em gramas. Questão de quantidade e de intensidades provocadas aberturas logradas destituição completa ruína. Ou não. O perigo de não se voltar do passeio com um si ao lado, junto à cesta e à toalha de piquenique, na companhia de Uma Thurman. Aquelas reflexões de Freud sobre a dependência, o amor e a confiança do paciente pelo médico são derivadas, sugere Preciado, de sua reflexão sobre a oriunda do uso de substâncias químicas. Ainda, “para Freud, o leitor da psicopatologia moral de Krafft-Ebbing, a masturbação e a produção química que esta implica é o modelo de todo o vício (carta 79 a Fliess). O álcool, o tabaco, a morfina e a cocaína são substitutos masturbatórios, práticas exógenas de produção de excedentes de toxidade química no corpo. Pouco importa se a substância é  inoculada no corpo do exterior ou se é produzida pelo próprio corpo. Em todo caso, não há libido sem toxidade” (PRECIADO, 2014, p. 280). Não há escritura sem libido; nem ética ou estética sem T.

 

 

Produção de sujeitos: o caso Dove

 

O biocapitalismo contemporâneo não produz coisas. Produz idéias móveis, órgãos vivos, símbolos, desejos, reações químicas e estados de alma. Na biotecnologia e em pornocomunicação, não há objetos para produzir; trata-se de inventar um sujeito e produzi-lo em escala global.

Beatriz Preciado, Testo junkie

 

O corpo de Beatriz, menina nascida na Espanha franquista, crescida em meio a uma oficina mecânica, chaves de boca, pneus, marcas de carro, e designada ‘mulher’. Corpo ‘marimacho’, Maria-sapatão. “Efeitos de processos de sujeição e controle” produzem as mulheres-mulheres, isto é, as mulheres bonitas, e as feias  já as lésbicas, para Wittig, bagunçam as categorias do pensamento straight. Efeitos de sujeição e controle produzem a repartição feias-bonitas; e a campanha mundial da Dove é o exemplo.

 

Num ato publicitário de “empoderamento das mulheres” tão nobre quanto estúpido, a marca orgulha-se de dar às mulheres a possibilidade de “escolha”. Na entrada de estabelecimentos de circulação pública, placas afixadas sobre duas portas com as seguintes inscrições: mulheres “bonitas”, mulheres “comuns”  patético eufemismo. Obrigada, Mr. Dove thinker. Se o senhor não tivesse tido essa ideia, não saberíamos como nos organizar coletivamente em rebanho, nem nos reconhecer como belas. Não saberíamos como fazer para que a ovelha negra entre nós, ou seja, todas nós, mais ou menos pretas, quando intrusas e bastardas e fodidas por que mulheres, secretássemos em nossa bile, também preta, a rebelião. É claro, Mr. Dove thinker, que algumas ovelhas com pelos docificados oferecem a nuca à Beleza branditizada:

 

Frasco de shampoo.

Condicionador.

Sabonete líquido.

Frasco.

 

E se Dove também faz for men, por que não convidá-los também à estupidez das duas portas?

 

Mas é claro que você teve uma excelente idéia, Mr. Dove thinker! Pois não é fato que muitas marcham à direita, à portilhola?

Anoréxicas.

Bulímicas.

Para ver se por ali entram, se passam.

Loiras.

 

In-cabíveis….

 

… Convite numa mão, chicotinho na bota… faz tudo entrar no seu devido lugar.

 

 Obrigada, Mr. Dove thinker – dizem os corpetes em coro, as ovelhas em couro.

 

 Obrigada, senhor, pela cavalheresca oferta da essência feminilizante, em frascos, tipografia azul. Por me oferecer aquilo que sempre procurei sem saber. Meio tonta, estúpida, débil. E que, agora, graças a seus líquidos rotulados e ao heroísmo empreendedor, me fazem mulher: deslumbro.

 

É claro, senhor, que algumas ditas mulheres aceitam ou desejam essa alternativa estreita proposta, com seu modo habitual historicamente constituído de dividir a realidade em dois, presente das metafísicas modernas à tal da diferença sexual. Obrigada por me explicar; objeto de tuas classificações. Masculino, ereto, institucionalizado, potente, peludo, poderoso, peito aberto, público, pau na mesa… A língua do P.: pinto, pênis, pau – poderia ser peixe, bola, gato; tão arbitrárias as adjetivações. A língua, muitas vezes, de B. P., vulgo Braço Peludo – por isso as críticas de feministas. Masculino, ereto, forte, institucionalizado, potente, peludo, poderoso, peito aberto, público, pau na mesa, ou, seguindo a anoréxica dicotomia, feminino: impotente, débil, contido, internalizado, doméstico, natural – esquálido esquadrinhamento dual da realidade, estudado pelo também P. Bourdieu [10].  Por seu gentil modo de repartir o Ser e definir aquilo que é real, por seu gentil modo de fazer o real e inscrever no Real a tal da diferença sexual, que sempre foi diferença de poder, que sempre foi diferença de papéis e funções domésticas e públicas, que sempre foi diferença entre ser remunerado ou escravizado, e que, portanto, sempre foi diferença para além da sexual, é por tudo isso, Mr. Dove thinker, que o senhor deve ir se fuder. Ainda que, para o senhor, ser fodido colonizado ou preto e pobre na língua do p diminuto seja feminilizar-se, a partir desse seu imaginário colonizado-r. Que se mande  com sua pequena grande glande, que torna, a partir do centro, periférico tudo o que não é o senhor: feminiliza, pretifica, barbariza, indigeniza como o seu Outro matável, “selvagem”, “irracional”, “menor”, “prostituído”, “escravizável” os teus Outros não “civilizados”.

 

Barra branca, asséptica, Dove higieniza e perfuma. Dove? Na periferia ou no centro?

 

 

A língua do P. maior e a do p. diminuto ou minorizado

 

Em Preciado escreve-se uma cena: um cara com braços peludos orgulha-se de mostrar a seus camaradas o casting do pornô que dirige. Põe o filme, liga a televisão. Estão presentes Preciado, V. D., e uma mulher. Um bando de “caras” rodeiam o aparelho. A mulher cuja função era ser a mulher de um deles foi para o canto. Preciado e V. D. aproximaram-se da TV  os camaradas não acreditaram. O filme começa. Uma ninfeta “nunca fiz isso na vida” aparece em cena. Árabe. Periférica. Um braço peludo e uma mini-pica aparecem na tela, escrotamente enquadrados. O braço peludo masturba a mini-pica. A câmera apreende as expressões da moça. Inicialmente indecisa, ela faz. Faz “cara de puta, cara de cachorra do pornô, uma cara que parece ter visto mil vezes e que não tem problema em imitar. Braço Peludo explica enquanto avança em fast forward: ‘Estão dispostas a qualquer coisa para conseguir um papel. O pior é que, logo me telefonam e querem que eu volte a vê-las. Esta é boa atriz, mas não tem nada a ver com o filme. A garota do filme não é assim. É uma garota mais bonita, mais pura’. É a voz da consciência pornô dominante do cara cis do Ocidente. O sujeito dominante é um braço peludo e uma mini-pica sem corpo. Um braço branco que masturba uma pica com a ajuda de uma imagem. A menina é aqui um simples dispositivo masturbador, um corpo de que Braço Peludo” e Dove thinker não podem saber nada.

 

Braço Peludo é, continua Preciado, “para a consciência do Ocidente contemporânea o que na imaginação de Freud era Édipo para a consciência do início do século. Teria que se falar hoje, para poder iniciar uma terapia política do Ocidente, em complexo do Braço Peludo. […] O complexo de Édipo deixou de ter vigência política (se é que alguma vez a teve). Somos os filhos de Hollywood, do pornô, da pílula, do sexo virtual, da Internet e do cybercapitalismo. A única coisa que deseja a cis-menina árabe é transformar seu corpo em imagem consumível pelo maior número de olhares. Sair da merda. […] Deseja, com repulsão, ao mesmo tempo fazê-lo com Braço Peludo e talvez, com um pouco mais de entretenimento político, converter-se em Braço Peludo. Não posso evitar de pensar que essas são as mesmas iniciais de meu nome, B. P. Por acaso vou acabar me tornando um Braço Peludo se continuo tomando testosterona?” (PRECIADO, 2014, p. 331)

 

* * *

 

Por acaso são Braço Peludo e Dove thinker os novos nomes da imagem do pensamento? Como pensar a diferença?

 

[1] Atribui-se à Descartes, filósofo do século XVII, a paternidade do dualismo entre alma e corpo  que atravessa a modernidade. A alma é identificada, em sua filosofia, à res cogitans (substância ou coisa pensante) e o corpo à res extensa (ele ocupa um espaço mensurável pela matemática inerente à geometria).

 

[2] Espécie de saia usada pelos praticantes faixas-pretas de Aikidô, indicativa da condição de mestre.

 

[3] Ajoelhado.

 

[4] Conferir capítulos O princípio da autocobaia e Narcoanálise: as origens psicotrópicas da crítica em Freud e Benjamin.

 

[5] Conferir capítulo Ficções somáticas. As invenções dos hormônios sexuais.

 

[6] A fusão bioquímica e significante entre libido e testosterona aparece em várias partes do texto de Preciado. Por exemplo: as microdoses de testosterona “produzem mudanças sutis, mas determinantes, nos meus afetos, na percepção interna de meu próprio corpo, na excitação sexual, em meu odor corporal, na resistência ao cansaço” (grifos nossos, p. 120).

 

[7] Cf. capítulo Videopenetração.

 

[8] O connatus inventado por Preciado.

 

[9] Preciado diz: “A testosterona não modifica radicalmente a percepção da realidade, nem o sentido da identidade. Esta dose de testosterona não é suficiente, em um corpo de cis-mulher, para produzir mudanças exteriores reconhecíveis nos termos pelos quais a medicina dominante denomina ‘masculinização’ (barba bigode, massa muscular aparente, mudança da voz, etc.). Não modifica o modo como os outros decodificam meu gênero. Sempre fui um corpo andrógino e as microdoses de testosterona que me administro não mudam esta situação. No entanto, produzem mudanças sutis, mas determinantes, nos meus afetos, na percepção interna de meu próprio corpo, na excitação sexual, em meu odor corporal, na resistência ao cansaço.

Mas a testosterona não é a masculinidade. Em realidade, nada permite afirmar que os efeitos produzidos pela testosterona são masculinos. Só podemos dizer que, até agora, foram, em sua maioria, propriedade exclusiva dos cis-homens’”. Cf. PRECIADO, p. 120.

 

[10] Conferir o interessantíssimo estudo de Pierre Bourdieu, A Dominação masculina, que insiste em como a dominação masculina organiza a experiência que fazemos de nosso corpo enquanto homens, e enquanto mulheres: “Para o homem, ela configura os usos públicos e ativos, de parte alta, masculina, do corpo — fazer frente a, enfrentar, frente a frente, olhar no rosto, nos olhos”. Para as mulheres, ela configura-se no ato de “renunciar a fazer uso público do próprio rosto e de sua palavra (ela [a mulher] anda em público com os olhos baixos, voltados para os pés, e a única expressão que lhe convém é “eu não sei”, antítese da palavra viril, que é afirmação decisiva, cortante, ao mesmo tempo que refletida e

calculada)”.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

A tradução dos trechos citados de Testo yonqui é de minha responsabilidade.

 

PRECIADO, B. Testo yonqui: sexo, drogas y biopolítica. Buenos Aires: Paidos, 2014.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2006.

 

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Ilustração: Emilia Santos

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