Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Algum lugar, meu corpo

O passado sabe como ninguém alfinetar o presente. Por Ana Luiza Voltolini

 Publicado em 28/10/2015

 

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São Paulo, casa dele

 

Abri meu email outro dia e me deparei com fotos de uma intimidade tão canhestra quanto eu mesma anexadas a uma mensagem nunca lida. O foco mal ajustado na câmera e um roupão sujo sabe-se lá do que testemunharam um passado que terminou, mas se faz presente nas fotografias.

 

Nessas horas a vida esfrega na minha cara que o passado sabe como ninguém alfinetar o presente. Como a agulha que marca a barra da calça é um pequeno ajuste que temos que fazer pra continuar nos vestindo e saindo de casa.

 

O quarto onde aquela foto foi tirada fica no número 53 da rua do Arraial. Levei meses até decorar qual era o certo, mas a rotina se instalou de tal forma que depois de um tempo nem era preciso que eu fosse anunciada pelo porteiro. Vizinhos e vizinhas até me cumprimentavam no elevador, e a porta, sempre destrancada, não precisava mais ser aberta por ninguém do lado de dentro.

 

Algumas vezes, mesmo que tudo o que eu precisasse fazer fosse girar a maçaneta, eu hesitava. Meus pés travavam no tapete de boas-vindas e eu precisava dar umas voltas no corredor e ler o caderno de cultura do jornal recém entregue na casa ao lado até tomar coragem de entrar. Passou a ser fisicamente difícil entrar ali, me despir, me descabelar, fingir um orgasmo e depois tomar o café da manhã. Aquelas refeições enfeitadas com alecrim eram minha recompensa por ser uma boa namorada.

 

Com o tempo as noites se tornaram mais difíceis ainda. Quando o ronco, o hálito quente e as pernas pesadas dele me  sufocavam, eu tinha que levantar e ir pra varanda respirar. Sentar por horas no banco de madeira sentindo as farpas pinicarem minhas coxas era uma sensação melhor do que acordar ao lado dele.

 

 

Santo André, minha casa

 

Podia ter sido num dia qualquer, embaixo do viaduto, na rua de trás da minha antiga escola, com a calcinha empurrada pro lado ou especialmente vestida pra mostrar. Mas foi ali no meu banheiro, do lado das roupas amontoadas, embaixo do chuveiro alto demais, jorrando água quente demais.

 

Desde então, muitas das minhas noites são passadas em claro, enquanto tento me lembrar de algo além das seguintes cenas, aparentemente inofensivas, mas que se amarram: “cara,para-de-dar-bebida-pra-ela”, “não-me-deixa-sozinha-com-ele”, fim de festa, escada, chuveiro, toalha, cama, luz.

 

A parte da luz é sempre a mais difícil de contar, se é que já contei. Magicamente, já era dia e tudo o que era líquido se solidificou. O choro de vadia inconsciente que bebeu demais, o álcool do copo de mulher embriagada que dançou demais, o gozo de homem sóbrio e responsável que cuidou demais: deu ombro, deu colo, deu banho. Diante de tamanha generosidade, como eu poderia negar alguma coisa?

 

 

Algum lugar, meu corpo

 

De vez em quando, tudo é deserto dentro de mim. Eu me sinto tão serena que grito aos quatro ventos uma superação que, na verdade, não passa de um truque pra me fazer encarar o dia seguinte. Outras vezes a raiva é tanta que todo o resto começa a doer. As cicatrizes deixadas por mim mesma debaixo daquele chuveiro, frascos de remédios espalhados no mesmo corredor, vômito no tapete, a vontade de fugir dele, encontrar ele, falar com ele, perguntar por quê. E ao mesmo tempo não querer saber de nada disso.

 

Meu pior pesadelo costuma ser o metrô às 18h. Eu ando cercada pela incerteza de um daqueles rostos ser dele. Ando incerta de qual saída pegar e, às vezes, subindo a escada rolante tenho certeza que o vejo esperando alguém, casualmente recostado à porta. Um dia repeti o percurso subir-escada-descer-escada três vezes até perceber que era o reflexo do orelhão na porta de vidro.

 

Apesar disso, existe um pensamento que me apavorou mais do que qualquer coisa durante esses últimos meses: admitir que eu amei quem me estuprou. Por muito tempo foi difícil aceitar a existência de amor ali, porque é muito mais fácil acreditar que a outra pessoa sempre foi um monstro e anular mais de um ano apenas me julgando mentalmente incapaz de responder pelas minhas escolhas, me isolando de toda uma cultura que cria esse tipo de “monstro” com o apelido de “homem”. E percebo agora que isso vira uma justificativa universal pra todo o tipo de abuso – físico, sexual e psicológico – ao qual mulheres são submetidas tantas vezes sem nem perceber.

 

É verdade que o amor aconteceu e morou sob aquele apartamento. Quando no começo eu lia na sacada e não ligava pras farpas do banco de madeira enquanto ele cozinhava alguma coisa nova pra mim. Ou quando depois de se fazer cócegas a gente transava e dormia a noite toda junto. Ainda quando eu não suportei a ideia de que algo tão ruim tivesse acontecido, existia amor dentro de mim.

 

Meus questionamentos em torno de quem eu me tornei vinham sido norteados por superar esse acontecimento específico. Mas eu percebi que o norte das minhas preocupações estava errado. Nomear culpas, personificar monstros e quantificar razões não mudam muita coisa. Eles gritam medo, ódio e impotência.

 

Nesses últimos meses, percebi que ser mulher muitas vezes é estar sozinha no meio de tanta gente que poderia, mas escolhe não ouvir seu pedido de ajuda. Pior, é não se sentir digna de socorro. Talvez eu sinta essa dor pra sempre, mas eu sei quem sou, com o que tenho que conviver, e o que no fim parece um bom próximo passo é admitir que não sou a única a passar por isso, e por isso não estamos sozinhas.

 

 

 

Ana Luiza Voltolini é jornalista, mas quer ser outra coisa num futuro próximo. Cansou de guardar pra si o que também podia estar guardado dentro de outras mulheres.

Ilustração: Renata Torres

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