arte
beleza, identidade, número 1, performance
Uma objeto com um força
Nas ruas de Belo Horizonte, alguém passa batom. Uma ação de Bernardo RB, com fotos de Ana C. Bahia
XX/XX/2013 praça Alaska
era uma vez um menino que queria fazer uma ação que era assim: passar o batom
XX/XX/2013 praça Alaska
a juventude balança na gangorra. passa um bombado que arqueia demais a coluna estufando o peito é a maneira de nascer dele, mas
forçar o acontecimento visivelmente deixa-o cansado no nono corpo
XX/XX/2013 padaria com luz branca da rua Tomé de Souza
ação que é experimento da vida numa padaria, ação que aparece todo dia,
eu e Ana sentados
resolvo passar o batom sem espelho e fico sentado a Ana na câmera documenta esse estar passando maquiagem ela também passa a câmera-Ana também é maquiagem
estamos tênues entre situação performativa e agir com atenção sem que se faça algo para ser visto
“ninguém viu.” távamos em umas mesas na calçada às seis da tarde e de fato cada um comia o seu lanche. a Ana disse que uma menina veio pegar guardanapo e viu. eu encontrei os olhos da moça do caixa também.
nalgumas bordas vazou o batom. não pude ver a não ser porque me disseram.
XX/XX/2013 buaty
como sentir-se bunyta é bem
posse propriedade que o espaço emerge a magia pública aos poucos não adianta escancarar no fora de mundo sentir-se beleza qualquer monta-se desmonta-se amontoa
XX/XX/2013 identidade
sentir como é o espaço comum assim comigo em estado de imaginário. sem companhia para tirar foto e certo de que o espelho se fechou, o espelho, esse público acessível no privado,
escrevo, porque facilmente me sinto espetáculo de decoração de domingo e não quero. acabo não passando batom. há algo que é mostrar
e, mostrando, esqueço do que sabia sobre mim antes de me ver visível. há algo que é mostrar para você o brilho legível e que esquece tudo a partir do mostrar: é um encanto assim:
mesmo que eu não esteja, eu posso fazer de conta que eu estou, que aprendi direito a estar
a fazer política representativa
XX/XX/2013 vestiário
—— e o fato d´eu me sentir alguma coisa menina sendo menino no vestiário da natação aos seis anos de idade? era o rosto do Rafael meu colega que eu via, escondi o pinto entre as pernas para fazer que eu tinha outras qualidades
XX/XX/2013 praça Comendador Negrão de Lima domingo começo da tarde
passa uma mulher com saltos altíssimos meio tamancos. comento com a Mari que com o salto caminha-se como sobre patas lisas, não se pode usar a maior parte dos vetores do pé. a pedestre equilibra-se com relativa facilidade e vendo-a caminhar penso e sinto a verticalidade em que estão os pés deslocando as costelas ligeiramente para fora do eixo da bacia, são ações específicas que ela pode assim nessa postura. toda de branco ela trabalha num salão de beleza que está na praça
XX/XX/2013 praça Comendador Negrão de Lima domingo de manhã
que é que faz eu ter que estar de carnaval ou
ter que pagar pra entrar em não sei onde
a Mari me sugere colocar o batom, que eu fico bonito de batom
tenho a impressão de que usar coisas é o que chega chegando. não me tem sido pertinente maquiar-me no sentido de uma decisão ou escolha, mas de algo que acontece num rio em que
deixar de estar usando coisas não quer dizer anulá-las
a foto é também uma coisa que se usa
meus lábios ficam secos. apenas o ar. apenas o nada
por que é que ser humano é um dado colocado como uma separação
como poder estar com o que me envolve e
não me pertence
Olhar da Ana
O menino passando batom na hora do rush, devagar. Estava sentado em uma das mesas de fora. Um lábio, o outro. As pessoas saindo do trabalho, passando por ali como quem compra um pão de queijo e segue. A luz dentro era de padaria, mas tive a impressão de que quase ninguém viu lá fora. Os que viram, guardaram uma imagem e talvez uma pergunta para si. Jeep, o cão, estava ao lado, do tipo bem fiel. E eu ali na mesa da frente, a câmera em cima da xícara, assisti a essa paisagem como quem toma um café, devagar, atrás das lentes.
Olhar da Mari
O telefone tocou. Era o Bê. Pedia para escrever um parágrafo sobre a nossa experiência na praça. Quando fomos para lá, não sabíamos ao certo o que iria acontecer. A proposta inicial não era precisa, apenas queríamos ter uma experiência com a escrita, assim, bem no meio do cotidiano.
Para essa performance, formas de realismos me rodeavam.
– Talvez uma escrita esburacada, conjeturei, poderia ser um modo de bordejar o que é arredio à possibilidade de ser representado, uma escrita que, justamente por seus vazios, seria capaz de trazer o indizível à palavra, uma não coincidência entre a experiência na praça e a sua compreensão.
Foi aí que encontrei o batom dentro da mochila do Bê. Imediatamente me lembrei do Carnaval, de como o Bernardo estava lindo, de como lhe caía bem o vermelho nos lábios.
Sugeri então que passasse o batom. Ele passou. Pensei em como nos relacionamos com o presente mediante um anacronismo, uma dissociação de tempos, que não deixa de ser uma dissociação de sujeitos. Acho que quem disse isso foi Agamben.