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Abuso, Annalise Keating, Jessica Jones, Kerry Washington, Krysten Ritter, Melissa Rosenberg, número 27, Olivia Pope, Sapapop, Shonda Rhimes, Viola Davis
SAPAPOP | O que as heroínas têm em comum?
Uma divagação sobre o papel das mulheres nas séries de sucesso atuais. Por Lígia Xavier
Publicado em 11/12/2015
Jessica Jones é a primeira série baseada em quadrinhos protagonizada por uma mulher. \o/ Finalmente! Glória a DEUSA!
Criada por uma mulher, Melissa Rosenberg (roteirista de The O.C., Dexter e responsável pela adaptação para o cinema da Saga Crepúsculo), e protagonizada por outra, Krysten Ritter (de Breaking Bad e Don’t Trust the B—- in Apartment 23), a série é, no mínimo, viciante de tão boa que é!
Ela redefine o que é uma série “de herois”. Esqueçam o jovem adolescente tendo que lidar com sua supervelocidade e amor não correspondido (The Flash); o bilionário que decidiu limpar sua cidade dos corruptos ricos (The Arrow); o policial incorruptível que acredita no poder da polícia e da justiça e lida com criminosos cujo destino “mais adequado” é um hospital psiquiátrico (Gotham) ou o advogado cego católico que à noite se torna literalmente o demônio para os criminosos de seu bairro (Demolidor).
Jessica Jones não é uma série sobre uma mulher que ganhou superpoderes e passa a combater o crime. Nem sobre “uma detetive particular tentando ganhar a vida porque bebida é cara” – como ela diz no trailer da série. Tampouco sobre a aceitação social de quem não é “normal”. Muito menos sobre “com grandes poderes, há grandes responsabilidades” (Peter Parker).
Jessica Jones é uma série sobre uma mulher que foi abusada continuamente por um homem: Kilgrave. Embora tenha tentado, ela não conseguiu impedir seu abuso nem que seu abusador voltasse a assediá-la; muito menos conseguiu impedi-lo que abusasse de outras mulheres. E mesmo tendo superpoderes, não evitou o desenvolvimento de TEPT (Transtorno do Estresse Pós-Traumático).
Para mim há outras heroínas nas séries atuais, são as protagonistas de dois programas criados pela Shonda Rhimes: Olivia Pope, de Scandal, e Annalise Keating, de How to Get Away With Murder.
Elas são heroínas por serem personagens fortes, terem domínio na área em que atuam e serem as únicas negras com poder em ambientes onde só homens brancos tinham espaço (inclusive pensando no espaço do protagonismo de um seriado de tevê criado por uma mulher negra).
Além disso, não deixam ninguém, seja um estado ou um homem, decidir o destino de seus corpos. Ambas, porém, têm histórico de abuso de um homem.
Olivia Pope é amante do presidente dos Estados Unidos – e esse relacionamento é bem abusivo. Não falo de abuso de poder não, falo de abuso por ele ser homem. Achar que ela é sua propriedade (assim como sua esposa) e que seu corpo está disponível em qualquer momento. E não é só o presidente quem faz isso. Principalmente na 4a. temporada outro homem bem próximo de Olivia Pope faz a mesma coisa: decide o que é melhor para ela e impõe suas condições, chegando até a matar para manipular e controlar Olivia.
Já Annalise Keating (pessoalmente essa é minha personagem favorita das últimas séries!!!) sofreu abuso de duas formas. Uma contada no episódio “Mama’s Here Now” (Mamãe está aqui agora) e outra(s) reveladas nos flashbacks sobre seu marido.
Jessica Jones, Annalise Keating e Olivia Pope. Vejo as três como heroínas. Então, me perguntei, o que é ser uma heroína? Fui ao dicionário:
1 mulher capaz de suportar exemplarmente uma sorte incomum (p.ex., infortúnios, sofrimentos) ou que arrisca a vida pelo dever ou em benefício do próximo
2 mulher de valor, beleza ou talento excepcionais
3 mulher notabilizada por suas realizações
‹ as h. das ciências ›
4 mulher que, por ser homenageada ou por qualquer motivo (nobre ou pouco digno) se destaca ou é centro de atenções
‹ a h. da festa › ‹ a h. da suciata era justamente a que parecia mais sensata ›
5 cine lit teat principal personagem feminina de uma obra de literatura, dramaturgia, cinema etc.
OBS: para quem estiver se perguntando a definição de herói, ela segue após o texto.
Ok, as cinco definições contemplam todas essas personagens. Mas a definição 1 não contempla só essas – e outras – personagens: contempla a nós mulheres.
Assim como essas heroínas da tevê têm/tiveram de lidar com o abuso, nós mulheres também temos que lidar com isso.
A história de Jessica Jones não é a história de qualquer mulher que sofreu abuso?
Dizer “mulher que sofreu abuso”, em nossa sociedade, é até um pleonasmo redundante. Que mulher nunca sofreu abuso, foi assediada, ficou traumatizada e sentiu-se impotente – sem conseguir falar a respeito do abuso, sem conseguir provar para a justiça e sociedade o trauma que passou, convivendo com seu abusador que ficou impune?
Ou sentiu-se culpada pelo que lhe ocorreu e não conseguiu se reconhecer como vítima de um abuso?
Quantas mulheres estão passando por isso exatamente nesse momento? É você, quem está lendo este texto agora? Ou sua mãe, amiga, irmã?
Quantas vezes em nossas vidas não tivemos que suportar de forma exemplar um sofrimento (que geralmente não foi trazido pela sorte não, mas sim por um homem específico) e arriscar a vida pelo dever (de ser mãe, de estar em determinado cargo profissional, etc.) e pelo benefício do próximo (um/a filho/a, um/a amigo/a, um/a parente, um/a desconhecido/a, etc.)???
Conseguir falar com alguém sobre ter sido abusada é suportar de forma exemplar. Conseguir criar uma criança sozinha é suportar de forma exemplar. Conseguir dedicar-se ao trabalho e cuidar da casa é suportar de forma exemplar.
Porque, (in)felizmente, nessa sociedade, toda mulher é heroína, pois, a todo momento, está suportando de forma exemplar os infortúnios e sofrimentos da vida (como o dicionário Houaiss escolheu se referir à opressão). Há os “sofrimentos e infortúnios” de origem de classe, de renda, de região e religião. Mas há aqueles de origem de gênero.
Nossa criação é pautada pelo abuso ou medo de que ele aconteça. Nossa índole é julgada por consequência do abuso que sofremos ou podemos vir a sofrer. Nossas carreiras e oportunidades são limitadas pelo abuso.
O que as heroínas das séries atuais têm em comum? O mesmo que nós, mulheres da não ficção, temos: ter de lidar com o abuso de um (ou vários) homens em algum, alguns ou vários momentos de nossas vidas.
Para saber mais:
A personagem da série da Netflix é bem diferente da personagem dos quadrinhos. Kilgrave, por exemplo, nos quadrinhos, é inimigo do Demolidor. Para saber quais as principais diferenças, leia Jessica Jones: As 10 principais diferenças entre a série e os quadrinhos, por Laysa Zanetti, do Adoro Cinema.
Ororo Munroe, líder dos X-Men e dos Morlocks, também foi abusada quando jovem e teve que matar para que não fosse estuprada por seu abusador. Saiba mais sobre sua história e de outras heroínas no livro Female Action Heroes: A Guide to Women in Comics, Video Games,Film, and Television.
Viola Davis, a atriz que interpreta minha heroína Annalise Keating, foi a primeira atriz negra a ganhar um Emmy por melhor atriz de drama. Isso só aconteceu esse ano, em 2015. E ela fez um discurso incrível, assista aqui.
Devido a custos de direitos autorais, é comum nessas adaptações dos quadrinhos haver grafias diferentes de nomes, não dizerem determinados nomes de outras personagens ou, até, modificação de armas e poderes. Por isso, acredito, Jessica Jones se refere ao Hulk e aos fatos acontecidos no filme Os Vingadores como “o homem verde” e “o incidente”; e a grafia de Kilgrave no seriado é com um “l” ,enquanto, nos quadrinhos é com dois “l”: Killgrave.
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Ilustração: