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Breves notas sobre parentalidade, arranjos familiares e adoção internacional

A adoção internacional é um recurso utilizado quando nada mais funciona, ou seja, quando houve fracasso em todas as outras tentativas. Por Érica Espírito Santo

 

Publicado em 09/03/2016

 

Muito se discute hoje sobre parentalidade e seus diversos tipos de possibilidades. Até bem pouco tempo atrás essa palavra nem existia na língua portuguesa. Todas as nossas formas de referirmo-nos aos cuidados de um adulto por uma criança passavam por alguma marca de gênero. Fosse um homem cuidando falávamos em paternidade; fosse uma mulher, maternidade; se um casal formado por um homem e uma mulher, levávamos o plural para o masculino como manda a regra. Hoje, devido a influências de outros países que possuem o termo aliado a tentativa de desmistificar as marcas de gênero dos cuidados relativos a filiação, cada vez mais se vê sendo utilizado esse termo: parentalidade.

 

Fazemos isso também para deixar claro que há diversas formas de se constituir uma família e consequentemente arranjos familiares variados. Portanto, parentalidades. Mesmo em tempos mais remotos a ideia de família tradicional, sem turbulência e produtora de indivíduos civilizados pode ser facilmente desmistificada. Assim como a atribuição de papéis fixos para homens e mulheres.

 

Um dos tipos de parentalidade que pretendemos abordar aqui é a que se constrói a partir da adoção. Essa é a forma de filiação que mais escancara a falta de garantias biológicas para ligação entre seres humanos. Pois a adoção bem sucedida de uma criança realça duplamente o impasse que pode existir entre sangue e filiação: 1) ao constatarmos que as crianças são abandonadas por seus genitores e 2) ao construírem um laço forte de filiação adotiva independente de qualquer ligação biológica. O que a biologia nos fornece é uma ilusão de garantia desse laço.

 

Outra forma de dizer sobre o cuidado parental é falando de cuidado familiar. Essa maneira, além de não ser aparentemente marcada pelo gênero, traz imediatamente uma noção relevante para o cenário da adoção: a família ampla. Tanto em pessoas como em significados. Em termos de pessoas, não exclui do cenário de cuidados e influências atores fundamentais como titios e titias, primos e primas, irmãos e irmãs, vovôs e vovós. Em termos de significados, quando falamos em família, consideramos uma variedade quase infinita de arranjos. E não reduzimos a questão dos cuidados apenas ao casal parental.

Reduzir a questão da criação ao casal parental, excluindo a amplitude da família, pode excluir do cenário fatores importantes para a criança. Um casal que se candidata a adotar uma criança, ou mesmo uma pessoa solteira, está sempre cercado de mais pessoas que participarão da convivência e representarão papéis importantes para a criança que vai chegar. Sejam essas pessoas parentes consanguíneos ou mesmo amigos muito próximos. Muitas vezes esses amigos são padrinhos ou madrinhas que participam ativamente da vida cotidiana das crianças.

Através da adoção, presenciamos o encontro entre pessoas que há muito desejam ter filhos e crianças que precisam de cuidados parentais. Ambas as partes se adaptam à nova realidade e a partir disso vai se construindo o vínculo familiar. Mais uma vez a adoção evidencia que a manutenção desses laços é gerada e mantida a partir do afeto e do desejo. E são também esses fatores que, quando não presentes, levam ao abandono.

Há um grande desencontro quando analisamos o cenário da adoção no Brasil. Em recente consulta ao Cadastro Nacional de Adoção encontramos um dado impactante e até mesmo surpreendente: existem hoje no Brasil mais de 5.000 crianças habilitadas para serem adotadas e mais de 33.000 famílias cadastradas.

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Esses dados podem contrariar a impressão geral de que haveria muito mais crianças na fila do que pessoas dispostas a adotá-las. Os dados do cadastro nacional de adoção revelam que há cinco vezes mais habilitados para a adoção do que crianças disponíveis. No entanto, mesmo contando com os esforços de diversos grupos e profissionais que procuram sensibilizar os casais para a adoção ou apadrinhamento de crianças grandes, ainda temos o fator idade como o que mais explica o fato de haver tantas famílias na fila e tantas crianças sem família: 90% dos pretendentes não aceitam adotar crianças que tenham mais de 5 anos de idade sendo que 91% dessas crianças tem mais de cinco anos de idade.

Em razão da discrepância que existe entre a realidade do perfil das crianças e a expectativa das famílias do cadastro, o Brasil ainda precisa lançar mão de um recurso pouco conhecido e pouco difundido: a adoção internacional, uma vez que a maior parte das crianças fica de fora do perfil desejado pelos adotantes por ser parda, possuir irmãos e outras características que  as distanciam mais e mais do encontro com a família adotiva.

As crianças brasileiras que são encaminhadas para a adoção internacional tem um percurso, em sua maioria, muito semelhante. Os genitores já foram destituídos do poder familiar, há quase sempre histórico de maus tratos, violência física e psicológica, abandono moral e material e extrema pobreza. Em alguns casos, há presença de violência sexual e a maioria absoluta dessas crianças reside em abrigos. Essas crianças já passaram da idade de serem absorvidas pelo cadastro nacional de adoção.

As pessoas estrangeiras habilitadas para adotarem crianças no Brasil já estão cientes do perfil da criança e fazem cursos preparatórios para serem capazes de acolhe-las afetivamente como filhos. É importante conhecerem as fraturas constitutivas no caminho dessas crianças e estarem cientes que a adoção dará início a novas descontinuidades. A criança terá novos pais, novo ambiente, nova família extensa, outra escola, outro país, deverá falar outra língua. E na maior parte das vezes, depara-se com uma realidade completamente diferente da que vivenciou. Isso implica em ser capaz de construir uma nova história e mesmo uma nova identidade para si mesmo. Felizmente, muitos casos de adoção internacional essa nova vinculação ocorre plenamente, mesmo quando estão presentes fatores de descontinuidade.

Ao chegarem em outro país muitas dessas crianças têm acesso a um tipo de ambiente e realidade muito distante de tudo que conheciam. As novas coisas as quais tem acesso não eram sequer imaginadas. Afinal, além de não terem tido experiências satisfatórias em termos de ambiente familiar, também vinham de meios de extrema precariedade e pobreza.

A adoção internacional é um recurso utilizado quando nada mais funciona, ou seja, quando houve fracasso em todas as outras tentativas de reinserir a criança em sua família de origem ou numa nova família. A prioridade é sempre da família biológica, depois famílias adotivas brasileiras, casais em que haja brasileiros, brasileiros que residem fora do país e, por último, pretendentes totalmente estrangeiros. É muitas vezes a última oportunidade de uma criança, já distante do perfil almejado por pretendentes brasileiros, de conhecerem o que é ser amado no sentido mais constitutivo da palavra.

Os adotantes estrangeiros, assim como ocorre aos adotantes brasileiros, podem ser casais heterossexuais, homens ou mulheres sozinhos ou casais homoafetivos. Cada contexto em que uma criança é criada designa particularidades que tornam impossível quantificar a variedade de possibilidades de arranjos familiares. Claro que a forma como uma pessoa cuida de seu filho é diferente da outra e cada um possui ideias diferentes sobre educação, cada um tem um ritmo particular, um cheiro, voz , timbre, tom que cada um usa pra falar. Todas essas são características, particularidades, que fazem com que cada história seja única.

O que há de mais primordial para se levar em conta quando resolvemos pensar sobre os tipos de famílias ideais para criarem uma criança é na possibilidade dessas crianças terem acesso aos cuidados mais essências de forma digna. É preciso considerar as famílias reais e seus múltiplos avatares. Arranjos familiares peculiares sempre existiram, inclusive famílias homoparentais.

Quando observarmos de perto as famílias é difícil encontrar uma que seja exatamente igual à outra. Essa ideia de modelo familiar clássico é muito mais mítica do que amparada na realidade dos diversos arranjos existentes. O que parece ser mesmo passível de investigação é muito mais em que medida o reconhecimento de novos arranjos familiares como o homoparental produz algum tipo de particularidade, ou seja, investigar o que provoca o fato de agora haver um reconhecimento legal. Inclusive no cenário da adoção.

 

Não há qualquer diferença perceptível em crianças cuidadas em um arranjo homoparental ou heteronormativo. Há pesquisas respeitáveis que comprovam tal afirmação. O que podemos perceber, e isso continua acontecendo em qualquer tipo de configuração familiar, são os efeitos nocivos do abandono, maus-tratos, falta que faz a crianças ter um adulto como referência de cuidado. E, até hoje, todas as crianças abandonadas em abrigos ou devolvidas em tentativas de adoção são fruto de relações heterossexuais.

 

Deseja saber mais sobre o assunto? Érica nos sugere alguns endereços interessantes:

http://www.abglt.org.br/docs/zambrano_et_al_homoparentalidade_-_A4[1].pdf

Cartilha sobre Homoparentalidade que contém dados sobre estudos realizados no mundo e no Brasil.

https://www.tjms.jus.br/_estaticos_/infanciaejuventude/pesquisas/AnaliseCadastroNacionalAdocao_CNJ.pdf

Guia de análises estatísticas do cadastro nacional de adoção

http://www.sdh.gov.br/assuntos/adocao-e-sequestro-internacional/adocao-internacional

Autoridade Central Administrativa Federal que trata do credenciamento dos organismos internacionais

http://www.apgl.fr/

Site da Associação de Pais e Mães gays e Lésbicas Franceses (eles usam a palavra Parents)

http://www.diplomatie.gouv.fr/fr/adopter-a-l-etranger/les-acteurs-de-l-adoption-internationale/les-operateurs-de-l-adoption-internationale/organismes-autorises-pour-l-adoption-oaa/article/cofa-cognac

COFA-Cognac no site da Diplomacia Francesa

 

Érica Espírito Santo é psicóloga. Além dos atendimentos com abordagem psicanalítica no consultório, trabalha como representante do organismo francês de adoção internacional COFA-Cognac. Mestra em Psicologia pela UFMG, pesquisou o tema da adoção homoparental. Doutoranda do programa de pós-graduação em psicologia da UFMG, com início em 2016, tem como tema central da pesquisa a adoção tardia.

Ilustração: Ana Mohallem

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