coluna
adoção, Aline Sodré, direito, família, Julia Drummond, número 29
JURA? | Adoção no Brasil
O que diz o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)?. Por Julia Drummond
Adotar no Brasil é complicado. Mesmo com as inovações trazidas pela lei relativamente recente aplicada hoje, o tema não é tranquilo e o processo é lento. Assim como em outras matérias ligadas a relações familiares, o aparato legal voltado à adoção encontra obstáculos pra se transformar e não acompanha o dinamismo da sociedade, na qual não existe um modelo único de família, mas famílias plurais, nos seus mais diversos arranjos. O quadro torna-se mais triste ao percebermos os dois pontos mais problemáticos: por um lado, por trás de entraves burocráticos ou de exigências discriminatórias feitas pelos potenciais adotantes, estão milhares de crianças e adolescentes vivendo em abrigos e, por outro lado, há restrições preconceituosas, principalmente contra sexualidades não heteronormativas, barrando determinadas pessoas dispostas a adotar, mesmo que elas tenham condições econômicas e afetivas.
Neste artigo, tentarei trazer uma abordagem jurídica da adoção, explicando, em poucas linhas, como funciona esse procedimento no Brasil, levando em conta também alguns aspectos acerca dos dados atuais sobre adotantes e adotadxs.
O que é adoção no direito?
Em primeiro lugar, a adoção é o instituto pelo qual é estabelecido vínculo de filiação por decisão judicial, em caráter irrevogável, sempre que não for possível manter a criança ou o adolescente em sua família natural – com mãe; pai ou “pais”, de acordo com a lei – ou extensa – formada por parentes próximos, como tias, tios, avós, irmã, irmão, etc.
Isso significa que uma sentença judicial cria vínculo de filiação, ou seja, uma relação jurídica de pai(s) e/ou mãe(s), do qual não se pode desistir, uma vez esgotadas as chances de manter a criança na sua família de origem. Assim, adoção pressupõe processo judicial, de forma que a chamada “adoção à brasileira”, de que falaremos mais adiante, não é considerada juridicamente uma adoção.
Desse modo, o ideal, conforme o ECA, é estimular o retorno da criança à sua família de origem, sendo a adoção uma espécie de “último recurso”, uma medida excepcional.
E quem pode adotar?
Para adotar, é necessário ter 18 anos ou mais e uma diferença mínima de 16 anos em relação à criança ou adolescente a ser adotadx. Pode-se adotar sozinhx ou em casal, desde que, nesse caso, sejam casadxs ou vivam em união estável. Irmãos e avós da criança ou adolescente não podem adotá-lx.
Quem pode ser adotado?
Crianças ou adolescentes cujos pais tenham sido destituídos do poder familiar, órfãs e órfãos ou enteadxs dx requerente à adoção.
E como faz para adotar?
Bom, em geral, para adotar no Brasil, desde 2008, é necessário habilitar-se no Cadastro Nacional de Adoção. Para tanto, deve-se procurar a Vara da Infância e da Juventude mais próxima de sua residência e requerer a entrada no referido cadastro. O requerimento é feito por petição assinada por umx advogadx ou defensor/a públicx. A partir de então, você, adotante, deverá passar por um curso de preparação psicossocial e jurídica e, após comprovada a frequência ao curso, será submetidx a avaliação psicossocial com entrevistas e visita domiciliar feitas pela equipe técnica interprofissional.
A ideia do curso é estimular a adoção de crianças e adolescentes fora do padrão procurado pelxs adotantes, que costuma ser de meninas de até dois anos de idade, brancas, sem doenças e sem irmãos/ãs.
Durante a entrevista técnica, x adotante descreverá o perfil da criança desejada, podendo escolher o sexo, a faixa etária, o estado de saúde, se aceita adotar irmãos/ãs etc. A partir do laudo da equipe técnica e do parecer emitido pelo Ministério Público, o juiz dá a sentença, deferindo ou não o pedido de habilitação no Cadastro.
Uma vez cadastrado, x requerente aguarda até surgir uma criança compatível com o perfil fixado na entrevista técnica, observada a cronologia da habilitação. A Vara da Infância então avisa quando existir uma criança que se enquadra no perfil desejado e o histórico de vida desta é apresentado para x requerente. Em havendo interesse, ambxs são apresentadxs. A vontade da criança também é levada em consideração para dar continuidade ao processo. Inicia-se o estágio de convivência monitorado pela Justiça e pela equipe técnica, com prazo de duração estipulado em juízo, durante o qual é permitido visitar a criança no acolhimento institucional onde se encontra e dar pequenos passeios.
Caso haja um bom relacionamento entre x requerente e a criança, aquelx poderá ajuizar o processo de adoção. Ao entrar com o processo, x requerente receberá a guarda provisória, que terá validade até a conclusão do processo. A criança passa a morar com a família e a equipe técnica permanece fazendo visitas periódicas até apresentar uma avaliação conclusiva.
Ao final, a sentença de adoção é proferida e determina a lavratura do novo registro de nascimento, já com o sobrenome da nova família, cancelando-se o registro original. Nenhuma observação pode ser feita no novo registro, uma vez que não pode haver discriminação entre filhxs adotivxs e biológicxs.
É possível alterar o prenome da criança ou adolescente, mas não é recomendado, pois a sua manutenção demonstra respeito pela identidade e história de vida daquela pessoa.
Casais homossexuais podem adotar?
Nada deveria impedir casais homossexuais de adotar. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca do reconhecimento da união estável de casais homoafetivos (ADI 4277 e ADPF 132) de 2011 e a posterior Resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de nº 175/2013, reconhecem a igualdade, perante a Constituição Federal, entre casais heteroafetivos e homoafetivos para fins de reconhecimento da união estável, aplicando-se a todos os preceitos legais pertinentes, como o Código Civil.
Entretanto, não houve reconhecimento expresso do direito à adoção de crianças e adolescentes, o que, apesar de não impedir que os tribunais estaduais as permitam, mantém um entrave completamente desnecessário e inconstitucional a esses casais.
Fazendo uma breve pesquisa nos sites dos tribunais, percebe-se uma tendência à autorização a esses casais para adotar. O Superior Tribunal de Justiça, pelos Ministros da Quarta Turma, já vinha reconhecendo a possibilidade antes mesmo da decisão do STF.
A adoção por casais homossexuais é um direito constitucional, que não pode ser afastado por decisões preconceituosas, contrárias ao princípio da igualdade, uma vez que não só já houve o reconhecimento pelo STF da igualdade jurídica entre casais heteroafetivos e homoafetivos, como qualquer ideia patologizante da sexualidade deve ser afastada de pronto. O indeferimento da habilitação no Cadastro ou do processo de adoção da criança ou adolescente já escolhidx deve-se pautar no melhor interesse destx, o qual, em geral, está vinculado à compatibilidade da família ou indivíduo adotante com o instituto.
Essa compatibilidade nada tem a ver com a sexualidade dxs adotantes, mas sim com os motivos que xs levaram à adoção. Em geral, não é recomendável deferir a habilitação no cadastro a pessoas que buscam aplacar a solidão, superar a perda de um ente querido, superar a crise conjugal etc.
É possível adotar x filhx dx companheirx?
A adoção dx filhx dx companheirx é chamada no ECA de adoção unilateral e é uma das hipóteses de adoção fora do Cadastro.
Nesse caso, x adotante deve comprovar, no curso do procedimento, que preenche os requisitos necessários à adoção. O vínculo de filiação da criança ou adolescente permanece o mesmo com x outrx genitorx, acrescendo-se no registro a nova filiação.
É possível adotar uma criança com a qual se possui vínculos de afeto, porém fora do Cadastro Nacional de Adoção?
Há mais duas hipóteses de adoção fora do Cadastro: i. A adoção cujo pedido é oriundo de parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos e afinidade e afetividade; e ii. A adoção oriunda de pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de três anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé.
Primeiro, quantos aos parentes, reforço que não é possível a avós e irmãos da criança ou adolescente adotá-lx, por expressa vedação legal.
Quanto ao segundo caso, fica a questão referente a um tipo muito comum de adoção no Brasil: o registro, como seu, de filhx de outrem, sem processo judicial. É a chamada “adoção à brasileira” (termo bem pejorativo, acredito eu). Juridicamente, não é possível chamar esse procedimento de adoção, por ausência de processo judicial. Além disso, constitui crime previsto no Código Penal, ainda que muitas vezes essa conduta seja tomada por pessoas de boa-fé que ignoram os requisitos formais e aceitam espontaneamente criar uma criança ou adolescente.
Qual a situação atual do Cadastro em relação às crianças e aos adolescentes e os requerentes à adoção?
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, há 34.927 pessoas pretendentes à adoção, das quais 22,91% aceitam adotar somente crianças brancas, 0,93% somente crianças negras, 0,11% somente crianças amarelas, 4,45% somente crianças pardas e 0,04% somente crianças indígenas. 41,23% aceitam todas as raças.
Quanto ao gênero, 8,9% dos e das pretendentes aceita adotar somente meninos, enquanto 29,38% aceita somente meninas e 61,72% do total de pretendentes é indiferente.
70,69% dxs pretendentes não aceita adotar irmãos e a porcentagem de aceitação de crianças vai se reduzindo drasticamente após os cinco anos de idade.
O perfil das crianças e adolescentes disponíveis para adoção, por sua vez, é o seguinte: há 6.382 crianças cadastradas, das quais 33,61% são brancas, 16,91% são negras, 0,33% são amarelas, 48,78% são pardas e 0,38% são indígenas. Além disso, 67,31% tem irmãos/ãs.
Dos dados obtidos, é possível aferir que há uma discrepância muito grande entre o número de pessoas dispostas a adotar e o número de crianças aguardando a colocação numa família substituta. Pelos mesmos dados, também se observa que há um perfil específico de crianças desejadas pelos/as pretendentes: crianças de até dois anos, meninas, brancas, sem irmãos/ãs e sem doenças.
Há diversas questões que nascem dos perfis traçados: por que se permite aos pretendentes definir quais raças somente aceitam? Por que crianças brancas são o perfil mais desejado? E por que após os cinco anos de idade é quase impossível a essas crianças ter perspectiva de colocação num lar adotivo?
Em geral, a maioria dxs pretendentes à adoção é de pessoas brancas, o que, por si só, não justifica a rejeição de crianças negras, porém demonstra, juntamente com os limites estabelecidos de idade, que as pessoas ainda procuram crianças biologicamente parecidas com elas mesmas.
Esta é uma cultura que vem tentando ser quebrada com a implementação da Lei nº 12.010/2009, com o curso de preparação psicossocial, por exemplo, já referido linhas acima.
Entretanto, é necessário que se aprofunde seriamente o debate sobre racismo na infância, pois, para além da adoção, faz-se necessário quebrar a imagem lúgubre do imaginário social acerca das crianças negras, cujo sofrimento é naturalizado midiaticamente e reproduzido em todos os aspectos sociais, dos quais a adoção não foge.
Fontes bibliográficas:
http://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/publico/index.jsf
http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/cadastro-nacional-de-adocao-cna/passo-a-passo-da-adocao
http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Destaques/Publicacoes/Res_71_VOLUME_1_WEB_.PDF
Julia Drummond é advogada, mestranda em Direitos Humanos na USP, youtuber quando dá na telha, preta, feminista, canceriana com ascendente em capricórnio (um ótimo equilíbrio por sinal). Ah, é biscoito (não bolacha AFF).