Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Para ele, para ela

Quando as revistas ficaram reféns da separação rígida entre gêneros. Por Pedro “Pepa” Silva

Dia desses, comentando o projeto da Geni, me perguntaram: mas qual o foco da revista? Qual o público-alvo? Quando comentei sobre o desejo de articular vozes, vivências plurais e “possibilidades infindas”, recebi de volta um olhar e um sorriso que sugeriam um “oh, que idealismo bonitinho!”.

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De fato, não tem sido fácil convencer algumas pessoas da importância de um veículo que se quer plural e com uma dose de independência. Notei um certo incômodo na expressão de uns outros amigos acostumados a um tipo de comunicação, a um tipo de pauta e formato de textos. Um outro sentenciou: “Ah, mas vocês estão exigindo demais das bichas! Elas não vão ler coisas difíceis!”.

Fiquei mastigando as críticas e me entristeci, confesso, com a nossa capacidade de nos acostumarmos a tudo. Cria-se uma zona de conforto e não saímos mais de lá – e acho que fomos nos acostumando muito fácil com os compartimentos, com os rótulos, com as formas de dizer. Assim, gay fala de e para gays. Héteros se orgulham de sua “normalidade”. Trans se adaptam ao binarismo: ou masculino ou feminino. Com o imediatismo das redes sociais, todos os textos um pouquinho mais longos passam a ser um suplício. Acostumados às argumentações fáceis (e quase sempre falaciosas) das redes, tudo deve ser digerido rapidamente. E, nesse contexto, será então que a Geni falaria para um vazio?

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Sou dos que acreditam na escrita como resistência neste mundo internético, fluido, de palavras ao vento. Como empreendimento independente, creio que a Geni pode se dar ao luxo de não sucumbir tanto aos fantasmas que assombraram tantas publicações – e fizeram com que discussões ficassem restritas a um número muito pequeno de leitorxs. Na edição passada, esta coluna comentou sobre o incômodo de as questões de gênero não circularem de maneira ampla. Na história da imprensa é interessante perceber como as publicações ficaram reféns da separação rígida entre gêneros (coisas de homem, coisas de mulher) e dos padrões moldados pelo mercado a partir dessa separação. Falar para mais de um implicaria “problemas”.

Uma revista para ler a dois

Veja-se o caso de uma revista como Ele Ela, surgida em 1969 e editada pela Bloch (a mesma editora que lançava Manchete, Amiga TV Tudo e Pais & Filhos). Não se tratava originalmente de uma revista direcionada estritamente ao público masculino – embora o tempo e o mercado a tivessem tornado um dos expoentes desse segmento ao longo dos anos 1970.

Carlos Heitor Cony, que foi editor da revista até meados de 1973, relembra a publicação numa crônica na Folha de S.Paulo:

Seu modelo não era a americana Playboy, essa sim, já consagrada no mercado e existente até hoje, com diversas e bem-sacadas imitações. O modelo de Ele Ela era uma revista alemã, chamada Jasmim […] A revista não chegava a ser erótica. Discutia assuntos sexuais numa época em que a pílula, a minissaia, o divórcio e o aborto faziam parte dos temas de uma humanidade que aspirava total libertação. O movimento feminista colocava o machismo no paredão e pretendia fuzilá-lo. A linha editorial de Jasmim, e por consequência de Ele Ela, era o direito de a mulher ter uma vida sexual equivalente à do homem, com direito inclusive ao orgasmo. Por absurdo que possa parecer, isso era uma novidade que merecia ser transformada em linha editorial.

Enquanto a publicação alemã tinha como slogan a frase “a revista para a vida a dois”, a versão nacional vinha com “uma revista para ler a dois”. Mas esse lema não duraria muito, pois, como conta o próprio Cony, a censura via na frase “um convite à sacanagem” e acabou por proibi-lo já em 1970. O destino (ou o “mercado”) guardava um futuro semelhante para Jasmim e para Ele Ela – pressionadas pela “falta de foco”, elas deviam optar por um segmento do mercado, um “público-alvo”. A alemã Jasmim optou pela mulher urbana, e se tornou uma espécie de Cosmopolitan (que, adaptada ao Brasil, seria a nossa revista Nova). Já Ele Ela se moldou no mercado das revistas masculinas.

Se até meados de 1973 Ele Ela estampava a capa com fotos de casais e mulheres brancas com ar europeu (não raro eram imagens aproveitadas da publicação alemã), já em 1974 as capas seguirão o padrão das revistas para homens. O erotismo mais destacado se deve também à concorrência, que iria aumentar progressivamente: primeiro, com o aparecimento de Status e, depois, da versão brasileira de Playboy, que surge em 1975 com o nome de Homem (porque a Censura não aceitava o nome em inglês!).

Diferente do que acontecia nas contemporâneas (Status, por exemplo, despia divas da TV e do cinema nacional), nas capas de Ele Ela estavam modelos e atrizes em começo de carreira, como Xuxa ou a dublê de atriz e hoje deputada Myrian Rios – o que não impedia que algumas beldades da época também dessem as caras, como Rose di Primo (recordista em capas) e mesmo Sônia Braga. Na nova configuração da revista, havia espaço para boas (e longas) entrevistas, colunas de gente como Luiz Carlos Maciel, e mais a literatura de Rubem Braga, Dalton Trevisan, Paulo Mendes Campos e Artur da Távola.

Aprendendo a ser homem

Em 1976, o foco no público masculino fica mais evidente com a mudança do logotipo. Se no anterior as palavras Ele Ela tinham o mesmo peso, no novo logo, a palavra Ele fica em destaque e a revista recebe um novo slogan: “Prazer e informação para o homem”.

As matérias sobre sexo tinham sempre uma consultoria, sendo assinadas não só por jornalistas, mas também por especialistas da área de saúde e psicologia. Na edição de abril de 1978, por exemplo, a matéria “Sexo: o que os homens precisam aprender com certas mulheres”, de Lenira Alcure, tem consultoria de um “psicossexólogo”. Entre referências a Freud, às pesquisas do doutor Alfred Kinsey e ao Relatório Hite (que já circulava por aqui em tradução da poeta Ana Cristina Cesar), a matéria destaca a importância de “conhecer o corpo” (lembram da coluna da Lucy da edição passada?) – daí dizer que os homens deveriam aprender com as lésbicas a conhecer melhor o corpo feminino:

O conhecimento da sexualidade feminina é algo bastante novo e – mesmo para os homens mais cultos – só tem importância na medida em que afeta sua própria virilidade. Horrorizados, no entanto, muitos começam a descobrir que a continuar assim há que refazer um balanço das atitudes, opiniões e pontos de vista, de modo a evitar a debandada geral. Nesta hora é preciso humildade, na procura sincera de conhecer as nuances da alma feminina, os detalhes que agradam e prendem uma mulher, coisas de que certas mulheres, ao que parece, entendem muito bem.

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Assim, na nova fase da revista, as matérias sobre sexo passam a ter como destinatário não o casal, mas o homem. O corpo da mulher, desvendado pela psicologia e pela medicina, vai sendo desmistificado para o “moderno heterossexual urbano”. Ao mesmo tempo, porém, as fotografias vão tornando esse corpo um objeto – a revista que se pretendia para ele e para ela sucumbe ao consumo do corpo. No início dos anos 80, com o fim da censura prévia às publicações eróticas, Ele Ela foi a primeira revista a chegar às bancas com uma edição “sem censura”, alcançando recorde de vendas.

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Ainda está para ser vasculhada a história do modo como as revistas eróticas moldaram um imaginário sobre sexualidade e afeto no mundo masculino. Em comum, todas parecem ter se ligado à ideia do hedonismo como característico do homem – veja a mudança de slogan de Ele Ela, por exemplo.

Gosto de vasculhar essas publicações do passado porque vou sempre me deparando com mil perguntas. E se os tabus não houvessem impedido que essas revistas fossem lidas por um público mais amplo, como teria sido? E em que medida essas revistas ensinaram a diferentes gerações um modo de ser homem? Em que medida esse homem repensou seu lugar e o outro lado (o “ser mulher”, “ser homo”, “ser trans”, ou ainda “ser um outro tipo de homem”)? Acho que são perguntas que podemos fazer ainda hoje para as publicações que se ancoram em oposições (homem X mulher, hétero x homo, ativo x passivo). Afinal, o que temos aprendido com elas?

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PARA SABER MAIS

Blog com capas e matérias da revista Ele Ela: http://revistaeleela.blogspot.com.br

CONY, Carlos Heitor. “Pra não dizer que não falei contra a censura”, Folha de S.Paulo, 24/11/2000.

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