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A revolução do misoprostol

Lésbicas e Feministas da Argentina defendem o aborto caseiro com comprimidos como método seguro para interromper uma gravidez indesejada. Por Aline Gatto Boueri, de Buenos Aires

Elas são Lésbicas e Feministas pela Descriminalização do Aborto (LyF). Elas também são kirchneristas e atendem uma linha telefônica que brinda informações sobre aborto seguro com misoprostol, “um medicamento revolucionário”, segundo Vero Macek, militante do coletivo, que também recompilou o manual com “tudo o que você quer saber sobre como fazer um aborto com comprimidos”.

 

Uma pessoa grávida que queira informação sobre a gestão do próprio aborto, em casa, pode ligar ou mandar uma mensagem de texto para um número de telefone, que funciona como central de demanda da linha “Aborto: mais informação, menos riscos”. O procedimento é não atender, mas retornar a ligação em até 24 horas e informar sobre o método de aborto caseiro com misoprostol com base em protocolos da Organização Mundial de Saúde (OMS). “Trabalhamos dentro de um marco legal muito claro. O que está proibido é o aborto, mas dar e receber informação e fazer uso de tecnologias para difundir conhecimento científico são direitos. Nunca tivemos problemas com isso”, explica Vero.

 

Com prefixo da capital federal, a linha recebe uma média de 20 ligações por dia vindas de todo o país. Segundo Vero e a também integrante do coletivo Sofía Luppino, que conversaram com a Geni duas semanas antes das eleições legislativas do dia 27 de outubro na Argentina, “é o que podemos atender entre as 11 pessoas que militam na linha.”

 

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O opressor compartilhado

 

Algumas organizações de lésbicas que militam pela legalização do aborto recebem críticas, poucas vezes fundamentadas em reflexões profundas, sobre qual seria sua relação com o aborto, algo que supostamente só deveria ser preocupação de mulheres heterossexuais.

 

Vero e Sofía rejeitam a posição de alguns setores do feminismo de que a luta pelo aborto é monopólio de quem se define como heterossexual. “Temos a mesma fonte de violência e opressão, que é o regime heteropatriarcal. A nossos corpos lésbicos também lhes é negado o desejo, somos corpos estigmatizados pelo mesmo regime”, aponta. “O aborto não pode ser relacionado somente com corpos heterossexuais. Isso também estigmatiza e é uma fonte de preconceitos enorme, inclusive no interior do movimento feminista.” Vero resume: “Além do mais, as lésbicas também abortam”.

 

Aborto nacional e popular

 

Em 2011 a Câmara de Deputados da Argentina discutiu pela primeira vez um projeto de lei apresentado pela Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Seguro e Gratuito. A legalização da interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana de gestação recebeu parecer favorável da Comissão de Assuntos Penais da casa, mas no dia seguinte o parecer foi revogado sob alegação de que havia um erro na contagem de votos. Em março de 2012, o projeto voltou a ser apresentado depois de ter caducado no fim do ano parlamentar de 2011.

 

A bancada kirchnerista é acusada por setores da oposição de bloquear a discussão sobre o aborto legal no Congresso, apesar de alguns de seus membros defenderem abertamente e em caráter pessoal a descriminalização e/ou a legalização do procedimento. A defesa de ambas as coisas pela agrupação de Lésbicas e Feministas não é, segundo Vero, um empecilho para apoiar o governo de Cristina Kirchner. “Algumas pessoas acham que não existe espaço no kirchnerismo para trabalhar a questão do aborto, mas nós acreditamos que há muito mais possibilidades de instalar o tema se trabalharmos dentro dele.”

 

Cristina Kirchner, que termina seu segundo mandato em 2015, assumiu a presidência argentina em 2007, depois de quatro anos de governo de seu marido, Néstor Kirchner (2003-2007), que faleceu em outubro de 2010. Em seu primeiro mandato o Congresso aprovou o casamento igualitário (2009), no segundo, a lei de identidade de gênero (2012), que dá a pessoas trans a possibilidade de escolher o gênero que aparece em seu documento de identidade – ainda que restrinja as opções a “masculino” e “feminino”.

 

A expectativa nos movimentos de mulheres era de que a ampliação de direitos, um dos eixos do modelo “nacional e popular” de raiz peronista sobre o qual o kirchnerismo se ergue, chegasse a elas também, com a legalização da interrupção voluntária da gravidez e a possibilidade de decidir sobre o próprio corpo em qualquer circunstância. Até hoje isso não aconteceu.

 

Mas há uma célebre frase atribuída a Néstor Kirchner que funciona como mito de fundação do movimento que toma seu nome: “À minha esquerda, somente a parede”. A partir dessa premissa, o kirchnerismo costuma flertar com atores não tão populares e não tão nacionais em algumas decisões de gestão, mas em política social costuma absorver demandas mais progressistas de projeção nacional (salvo quando se trata de política de segurança pública em favelas, mas isso é assunto para outro momento).

 

No entanto, uma pesquisa realizada pela Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Gratuito e Seguro com candidatos da cidade e da província de Buenos Aires ao Legislativo nacional revelou que não há consenso partidário dentro da Frente para a Vitória (FpV), da presidenta Cristina Kirchner, sobre como se posicionar diante de um projeto de legalização do aborto no Congresso.

 

Dois dos candidatos a deputados da FpV pela capital argentina sequer responderam o questionário, enquanto outros dois se comprometeram a apoiar o debate legislativo sobre uma lei que legalize a interrupção voluntária da gravidez e a votar de maneira favorável, inclusive se seu bloco não chegar a um acordo sobre a matéria. Dessa maneira também se posicionaram os candidatos ao Senado. Já os candidatos à Câmara pela província de Buenos Aires não responderam as perguntas enviadas.

 

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Orgulho de abortar

 

A Argentina é esse país onde é possível que uma presidenta que se reconhece como católica praticante, que vai a missas e fala de Deus – com maiúscula – em seus discursos, tenha em suas filas uma agrupação de lésbicas e feministas que defendem o “orgulho de abortar”.

 

O orgulho, velho conhecido da militância LGBT, inverte a lógica em que a pessoa que aborta é vítima dessa escolha. “É o orgulho de decidir sobre nossos corpos”, explica Vero. “Diz-se que ‘nenhuma mulher quer abortar’, mas não é assim. A mulher que está grávida e não quer ter um filho quer abortar. Não é a situação mais feliz da sua vida, mas isso acontece porque o aborto é ilegal, porque ela não consegue misoprostol, porque o parceiro não a acompanha…”.

 

Gra-vi-dez-in-de-se-ja-da. Sofía subverte esse mantra aterrador ao defender o orgulho de interromper uma gestação que não se quer que resulte em filho ou filha. “Tem a ver com reivindicar o desejo dos corpos, o desejo de ser lésbicas, o desejo de abortar como algo positivo.”

 

Nesse ponto, Vero e Sofia justificam por que o objetivo da linha não é dar contenção emocional a quem liga, mas sim explicar de forma clara e objetiva quais são os riscos e as possibilidades de que o procedimento seja exitoso de acordo com a situação da mulher que busca ajuda. “Nosso trabalho é brindar informação e desdramatizar”, conta Vero. “Existem situações particulares, mas a maioria das ligações não é para pedir apoio emocional, e nossa proposta é que cada uma possa abortar de forma autônoma”.

 

A regra sobre isso é clara: a informação só é dada a “mulheres e pessoas grávidas que queiram abortar”. Como é necessário saber detalhes sobre o estado físico de quem procura a linha telefônica, além de conhecer melhor quais são as dúvidas e os procedimentos pelos quais a pessoa passou, as militantes da LyF pedem sempre para falar com quem vai “colocar o corpo”. “Também é um exercício para as mulheres, que devem politizar o próprio aborto e sair desse papel submisso que nos foi atribuído sempre”, defende Sofía.

 

Misoprostol e autogestão

 

A proposta das LyF não é abandonar por completo a luta pela legalização do aborto, ainda que reconheçam que o trabalho com legisladores se limita a forças da bancada kirchnerista e da bancada aliada. Para Vero, nem mesmo é urgente o debate sobre o aborto não punível, legalizado na Argentina, mas muito discreto em sua aplicação. Em 2012, a Corte Suprema do país determinou que o aborto em casos de estupro, risco de vida para a mulher ou má-formação do feto não deve ser objeto de disputa jurídica, mas até então muitas mulheres nessas condições precisavam brigar na justiça para realizar o procedimento.

 

“Não é que não seja importante, mas o aborto não punível não é a realidade da maioria das mulheres que abortam”, aponta Vero. “Se o misoprostol fosse de venda livre ou estivesse disponível para todas de forma gratuita, essa discussão estaria obsoleta.” Para as militantes das LyF, o que o misoprostol proporciona é a autonomia para decidir quando abortar e a possibilidade de gerir sozinha essa decisão, sem precisar necessariamente de recorrer a um procedimento clínico em mãos de umx médicx.

 

Vero acredita que é justamente a autonomia sobre a decisão que faz do misoprostol a melhor alternativa para um aborto seguro, além da história política do uso do medicamento como abortivo. “Surgiu como protetor gástrico e foram as mulheres da América Latina, as pobres, as trabalhadoras, as excluídas, que descobriram que podem abortar e não morrer usando o misoprostol”, lembra. “Depois esse conhecimento foi sequestrado pelas corporações farmacêuticas em benefício próprio e do heteropatriarcado. É importante devolver esse conhecimento aos setores que o construíram.”

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