resenha

Calar diante do absurdo é fazer com que ele continue a existir

Sobre Temporada de caça, filme de Rita Moreira. Por Pedro “Pepa” Silva


Queria falar de coisas mais leves e que nos fizessem esquecer por um momento as hostilidades do mundo. Que nos fizessem esquecer as doenças do mundo. Mas não foi possível. Imaginava uma resenha sobre frivolidades. Mas a realidade dói. Eu disse uma vez: “Estamos todos doentes”. E a confirmação vem a cada dia.


Kaíque Augusto dos Santos morreu uma morte horrível. Foi suicidado. Sim, porque não acredito em sua queda. Porque, passando sempre pelo local em que ele morreu, não consigo acreditar em todos os machucados causados apenas por uma queda. Alguém me disse que posso ser irresponsável por dizer isso numa revista. Ora, irresponsável é a nossa imprensa, que é conivente com o espanto que esse crime deveria representar pro país, justamente num momento em que sofremos com a falta de um debate sério sobre o problema da homofobia. Estamos perdendo vidas de adolescentes – como Kaíque, como Alexandre Ivo – por conta de um pacto horroroso de silêncio sobre esse grande problema. 


Estamos fracassando a cada dia como sociedade, como humanidade. 


E vejo no olhar dos meus amigos uma nuvem de desolamento por terem certeza de que ele só será mais um. E tudo que eu quero acreditar é que essa morte não seja em vão. Mas como, se na república de assassinos em que vivemos o problema não é de hoje?


Venho aqui lembrar então de outro momento crítico. Na segunda metade dos anos 1980 houve uma série de assassinatos de homossexuais. O nexo entre as mortes de um diretor de teatro, de um psiquiatra, de um decorador e de tantos outros foi estabelecido quando um rapaz assumiu os crimes. Tudo resolvido. Era coisa de um louco serial killer. Maníaco do Trianon. Fim. 


Será? Quem vasculhar um pouco vai perceber uma sociedade podre. Que silencia algumas mortes. Que as justifica. “Afinal, por que raios as pessoas saem às ruas se sabem que podem morrer?” “É muita paranoia de gay achar que essa morte cruel é homofobia. Pode ser roubo, acerto de contas...” “Ele pode ter sido morto por ser negro, e não por ser gay!” A impiedade não tem limites.


Para que não esqueçamos que a luta não começou ontem é que decidi vir recomendar o filme de Rita Moreira, Temporada de caça. Poeta e videomaker, Rita tem diversos trabalhos que tocam questões de gênero e de exclusão. Gostaria que vissem, revissem e divulgassem o vídeo por aí. Para que nossa luta não seja marcada pela fugacidade e presentificação. Para que possamos com isso mostrar que precisamos deixar de ser esta república de assassinos.


São 25 minutos que gostaria muito de assistir com aquele desinteresse saudosista que mobilizamos pra ver coisas velhas no YouTube. Era 1988 e o filme tem como mote essa série de assassinatos de homossexuais. Um dos casos mais famosos foi a morte de Luís Antonio Martinez Correia, irmão de Zé Celso, morto na véspera do Natal de 1987 com 80 facadas. Oitenta. Sim. Oitenta facadas.


Um capítulo na história da cidade marcada por um Comando Anti-Gay, pelo pedido de Jânio Quadros para que garis jogassem água nas travestis do centro, ajudando na “operação limpeza” do delegado José Wilson Richetti. Sim, operação limpeza, pois você vai ver no vídeo justamente um senhor muito respeitável dizer que esses gays “estão poluindo a cidade de São Paulo”. Não deve haver muita novidade aí no filme: fala-se do envolvimento de policiais em crimes de intolerância, da conivência e falta de vergonha na cara de profissionais que elaboram laudos mentirosos, de como o silêncio da imprensa ajuda a fingir que não há crimes de ódio, de como uma sociedade chancela uma ordem violenta ao se calar. 


Não nos calemos! E lembremos de uma frase do filme: “Vamos falar disso pra isso acabar”. Vou me apropriar da frase de uma das nossas genis, a Alci, como mantra: “Melhore, meu povo!”. 


Calar diante do absurdo é fazer com que ele continue a existir. 


Sei que este bem poderia ser apenas um filme de terror do passado. Mas é, na verdade, um documento que diz muito de nós, de nosso fracasso, de nossa cumplicidade e capacidade de matar. 

 

 

Estrela