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Educação integral, capital financeiro e segregação
O que está por trás da expansão do tempo integral nas escolas públicas, e um convite para se investigar as especificidades de gênero e sexualidade no processo. Por Lia Urbini
Publicado em 31/01/2016
A pesquisa aqui referida não foi pensada originalmente com recorte de gênero e sexualidade. Por convite da Geni eu a apresento e a complemento com dados que deixam indicadas pistas para investigar o processo da expansão da educação integral a partir das especificidades, e não do que é geral, para a população atingida. São antecipações sobre os próximos passos que podem ser dados para desvendar de maneira mais detalhada os meandros da privatização escamoteada em processo no país, que aprofundando a desigualdade tanto na escola como no trabalho, também colabora para a opressão ainda maior dos setores socialmente minorizados.
Compartilhando as perguntas da pesquisa, e sugerindo outras
As questões que servem de base para a minha dissertação de mestrado [1] vieram do meu cotidiano de trabalho em escolas estaduais na cidade de São Paulo. Em 2011, como professora efetiva da rede, fui “convidada” a trocar de escola, posto que meu local original de trabalho, a E. E. Prof. Antonio Alves Cruz, sediaria o piloto de uma experiência de parceria público-privada que implementaria um programa de educação integral, chamado Novo Modelo de Escola de Tempo Integral. O processo decorrente, da “adesão” da unidade escolar até a sua adaptação e realocação de pessoal, foi extremamente arbitrário, vertical e irregular e, no entanto, nem o sindicato nem outros grupos de trabalhadores organizados, ou mesmo outras instâncias do poder público, conseguiram interferir em favor dxs alunxs e funcionárixs que não podiam ou não aceitavam aderir à proposta nos termos em que ela se dava.
Fui transferida para outras duas escolas para que pudesse completar a jornada de trabalho, continuei junto a outrxs professorxs buscando respostas relativas à nossa condição e, após mais seis meses de trabalho em condições inadequadas, oferecidas aos que não aderiram ao programa, solicitei exoneração do cargo. Mudei de estado e fui realizar um mestrado como forma de tentar desvendar as lacunas do processo que passei, junto a tantxs outrxs professorxs, trabalhadorxs e alunxs.
O objeto de pesquisa foi sendo redesenhado até chegar ao que ao final foi definido como a educação integral do capital financeiro, ou em outras palavras, a investida em educação integral coordenada atualmente por fundações ligadas a grupos econômicos do setor financeiro – tomando o Itaú Unibanco, o maior propositor, como referência.
O objeto parecia brotar da confluência dos seguintes elementos, a princípio unanimidade entre as partes envolvidas: baixa qualidade da educação básica; necessidade de aumento do tempo dos alunos em sala de aula; e falência do Estado.
Trabalhando a partir das aparências, tinha, por um lado, a educação básica estatal como um todo, apesar de significativos avanços, enfrentando sérias dificuldades para oferecer melhores condições gerais de trabalho, qualificação e remuneração dxs profissionais, bem como para melhorar os níveis de aproveitamento dxs estudantes, ainda na jornada convencional. Nesse sentido, o ensino médio é especialmente afetado, uma vez que atende, quando em idade regular, faixa etária da população com grande vulnerabilidade social (jovens entre 15 e 18 anos, que por uma série de fatores, entre eles a necessidade de conciliar estudos e trabalho ou o desestímulo após sequenciais reprovações, acaba abandonando a escola).
Dados e questões importantes
Nesse quesito, a análise do perfil dxs alunxs, as questões de gênero são importantes: a gravidez na adolescência, levada a cabo por muitas garotas que não contarão com o pai dos filhos para dividir as tarefas, é um fator importante de abandono escolar. Segundo a Pnad de 2013, realizada pelo IBGE, no Brasil 75% das adolescentes com filhos estavam fora da escola, ou seja, 309 mil meninas entre 15 e 17 anos. Já para o lado dos meninos, pesam mais os fatores de trabalho e da vulnerabilidade: 27% dos evadidos trabalham para complementar a renda familiar, o que inviabiliza os estudos, sendo homens a maioria destxs, de acordo com pesquisa do MEC de 2015; o envolvimento com drogas, exploração juvenil e violência também atingem mais os meninos, afastando-os da escola. No caso das dissidências sexuais, os índices de evasão se aprofundam e se relacionam com a hostilidade dentro do ambiente escolar, expulsão de casa e fatores correlatos, chegando a 73% na população transexual (de acordo com levantamento da Antra). Somando-se todxs xs alunxs evadidxs, temos em 2015 10% delxs fora do ensino médio na idade regular, mas é evidente que ações e políticas específicas em relação a essa população precisam levar em conta elementos como gênero e sexualidade.
Por outro lado, temos a condição geral dxs trabalhadorxs, que apesar das melhoras nos índices na primeira década do século XXI, ainda inclui consideráveis taxas de desemprego, trabalho informal, precário e jornadas extenuantes, situação que repercute na atenção possível a ser dada aos que estão sob seus cuidados e que estudam. Isto tanto no sentido de por vezes a família depender do trabalho dxs jovens estudantes nessa idade para complemento de renda ou para o trabalho doméstico, como na busca por onde deixá-lxs enquanto se trabalha. Mais uma vez o cenário é distinto se compararmos a empregabilidade, a escolarização e a renda de mulheres e homens cis e trans, assim como entre a população de trabalhadorxs heterossexual e a não heterossexual.
Um terceiro elemento no quadro é a atuação crescente de fundações e institutos ligados a grupos financeiros investindo maciçamente em educação. As grandes referências são a Fundação Bradesco, atuando com escolas próprias, e o Itaú Unibanco, que antes atuava com foco nas atividades complementares no contraturno, oferecendo cursos extras ou reforço, e que agora desenvolve, nas palavras do Instituto Unibanco, um “cardápio variado” de propostas para a rede pública de ensino, a ser implementado ao gosto do cliente via parcerias público-privadas.
Em tal cenário, as propostas de educação integral apresentadas pela Fundação Itaú Social e Instituto Itaú Unibanco surgiram como aparente solução para os problemas de todas essas frentes: seja a dx trabalhadorx, que busca alguma instituição para colocar x jovem sob sua responsabilidade; seja a dx jovem vistx na sua dimensão de futurx trabalhadorx; seja a dx trabalhadorx da educação, que encontraria condições melhores de trabalho sob os programas do grupo; seja a do Estado em crise para financiar e gerir melhorias em educação; e, por fim, seja a frente das entidades em busca de espraiar seus valores e técnicas em esfera nacional e em grandes proporções, utilizando-se da estrutura estatal.
Pela experiência episódica supracitada, e a julgar pelo histórico dos agentes envolvidos, havia uma suspeita em relação ao que ficava de fora nessa equação. O problema de pesquisa então se configurou: que tipo de solução é essa? Que contradições poderíam ser percebidas na proposição e implementação desses programas no contexto maior do universo do trabalho, que vêm continuamente aprofundando desigualdades de raça, classe, gênero e sexualidade pela via da precarização, sob o signo da “servidão financeira”?
Partindo desse problema é que surgiram as perguntas da pesquisa. Como pode ser definida a concepção de educação integral para a parceria Estado-entidades sociais conectadas ao Itaú Unibanco? Qual a dimensão dessas experiências? Como o Itaú Unibanco, por meio fundamentalmente da Fundação Itaú e do Instituto Unibanco, conquistaram tal lugar de proponência no que se refere às políticas públicas de educação, tendo em vista a existência de outros setores da sociedade mais diretamente conectados ao tema da educação, como as universidades, os sindicatos e os movimentos de trabalhadores da educação? Como situar o fenômeno do crescimento de tais investimentos sociais privados dentro do contexto socioeconômico e político brasileiro? Uma pesquisa que pudesse focar nos segmentos populacionais minorizados poderia ainda se perguntar: como as políticas de educação integral planejadas e executadas nos moldes do setor financeiro atuam no sentido de encurralar os já encurralados, sendo responsável por uma dupla camada de exclusão na etapa de ensino que mundialmente é um gargalo educacional?
Algumas hipóteses, em decorrência, foram levantadas, com o intuito de verificação a partir da análise dos dados da pesquisa.
A primeira delas, relativa ao conceito de educação integral do Itaú Unibanco-Estado: este poderia ser mais bem investigado se operássemos com uma inversão da formulação inicial. A opção das fundações por investir em educação, e agora principalmente na educação integral, em especial no ensino médio, se justificaria por atingir ao mesmo tempo os vários agentes envolvidos, encarados sob outra perspectiva: xs trabalhadorxs da educação, que podem servir mais objetivamente aos interesses do capital, tanto em termos de sua contratação e manutenção como em termos dos conteúdos trabalhados; a juventude, vista como sem projeto de vida, em sua dimensão de futura mão-de-obra a ser adequada de acordo com os interesses do mercado; xs trabalhadorxs responsáveis por essxs jovens, que já estão precarizados, têm extensas jornadas quando empregadxs, e que antes de se questionarem em relação aos abusos no trabalho podem contar com a escola vista como um depósito de jovens; o Estado, eterno campo de disputa entre as classes sociais, que com a parceria fortalece o empresariado e ganha cartaz ao ser “corresponsável” pelas ações; e finalmente o grupo financeiro Itaú Unibanco, em crescimento exponencial a partir das políticas pró-capital que o beneficiaram de geração em geração, continuadas em maneira própria pela década petista, que pode alçar voos mais distantes também na esfera da propaganda e da hegemonia do pensamento.
A segunda hipótese, relativa à dimensão das experiências e sua raiz: a opção por tais investimentos sociais pelas entidades só pode se dar lastreada no crescimento do grupo econômico que as financia, e que, a bem da verdade, é financiamento público, seja pelo mecanismo de isenção de impostos seja pela origem dos lucros do grupo (renda do trabalho extraída pelos juros das operações de crédito ou renda do trabalho revertida via Estado para os juros dos títulos da dívida pública, sendo que as instituições financeiras são as maiores detentoras): com esse capital acumulado remunera-se pesquisador, faz-se lobby em torno de legislações específicas, faz-se propaganda e se sai do campo da filantropia para o campo da formulação de políticas de governo.
E por último, a terceira hipótese, referente à contextualização do fenômeno dentro do quadro socioeconômico e político brasileiro: acredita-se que o objeto de estudos e o problema que o envolve poderiam servir de termômetro para avaliar a proporção dos investimentos em políticas sociais em relação às políticas pró-capital financeiro do período analisado, contribuindo para a análise de conjuntura.
Algumas conclusões a partir do estudo
Temos mais de uma década desde o começo do século XXI, mas a educação como privilégio de classe ainda é uma realidade em muitas nações, especialmente nas economias periféricas/dependentes. Quando se pensa em educação com jornada ampliada, a situação é ainda mais grave. No entanto, no Brasil, a despeito da precariedade das condições de trabalho em geral e no ambiente escolar – tanto para alunos quanto para profissionais da educação, considerando-se a jornada regular discente de 4 horas –, a proposta de ampliação da jornada dentro da rede pública de ensino conseguiu, principalmente a partir dos anos 2000, passar de experiências localizadas e das previsões em lei (na LDB/96 já constava indicativo para se ampliar progressivamente a oferta, por exemplo) para a efetivação de considerável porcentagem de escolas públicas de educação básica oferecendo atendimento (42% em 2014 apresentavam ao menos uma matrícula em educação integral), em escala nacional e em proporção inédita, sendo estabelecida ainda como meta do último Plano Nacional de Educação (2014) a ampliação desse número em 50% até 2024. A ideia é passar dos 15,7% dos alunos atendidos para 25%.
Tomando como objeto de estudos o que nos pareceu a mais abrangente proposta de metodologia de implementação da educação integral – em termos de quantidade de unidades escolares e alunos implicados, elaborada, testada em escolas-piloto e posteriormente estabelecida como “política público-privada” pelo Itaú Unibanco com o governo federal e o governo do Estado de São Paulo –, a pesquisa analisa os principais elementos que tornaram possível sua implementação e disseminação e, na medida do possível, caracterizar tais fenômenos.
A breve recuperação histórica sobre algumas das principais experiências de educação integral ao longo do século XX partiu, a cada momento, das perguntas: quem a demanda? quem a implementa? quem se beneficia com ela? Havia também a busca sobre o que cada experiência entendia como educação integral e como ela se articulava ao panorama da luta de classes em cada época. Esses dados foram essenciais para evitar a reivindicação e implementação da educação integral como positiva por si mesma. Percebe-se então que, além de não ser demanda nova, a educação integral também não foi uma demanda exclusiva de trabalhadores.
Um exemplo é o período da ditadura civil-militar, com o salto na ampliação da rede escolar – ao menos na jornada regular, mas com propostas “integrais” em termos de buscar fortalecer valores úteis à adesão ao regime. Isto é atribuído ao fato de se compreender a educação como questão de segurança nacional, aposta que, comparada aos movimentos anteriores do Estado e do empresariado, parece fazer bastante sentido. O esforço realizado com a censura de professores, o estabelecimento das disciplinas “educação moral e cívica” e “organização social e política do Brasil”, além de todas as medidas fiscalizadoras e opressoras dos direitos civis e políticos da época, configura, para nós, um caso extremo de educação integral, uma vez que funcionava na prática ao longo das 24 horas de todos os indivíduos, dentro e fora da escola, incutida pelo Estado totalitário e com reverberações na cultura política do país até os dias de hoje.
O mapeamento das experiências anteriores de educação integral nos possibilitou problematizar o próprio modo como se reconstitui, em geral, nos meios acadêmico e estatal, essa história. Experiências episódicas de educação integral promovidas pelo poder público, mesmo quando apresentavam abertamente o caráter de “ilhas de excelência”, como o caso das Escolas-parque, são presença obrigatória em qualquer histórico, enquanto que as experiências anarquistas ou integralistas, que contaram com muito mais unidades escolares, quase nunca são mencionadas, ou quando são, seu caráter pedagógico é acobertado pela dimensão “ideológica”, como se a educação oficial fosse radicalmente diferente. Condicionada a rememoração aos dados sobre a condição geral da classe trabalhadora, ou mesmo das condições socioeconômicas e políticas da época, que normalmente entram como “pano de fundo”, algo como “o que se vê quando se olha para fora dos muros da escola”. Nesse sentido, a posição aqui é outra, vemos muito mais permeabilidade entre o externo e o interno escolar.
Somente nesses termos é que interpretamos que a educação integral promovida pelo empresariado (financeiro, sobretudo), que vem ganhando terreno sob o governo petista, concilia ao mesmo tempo demandas do trabalho e do capital.
Outra frente de trabalho buscou combinar as reflexões sobre a mundialização do capital, crise do Estado e crise dos direitos sociais em geral com as especificidades brasileiras. Foi realizada uma breve descrição de programas do governo federal petista que procuram ir, na medida do que consideraram o possível, em sentido oposto à linha neoliberal de direita, forçando a mão no protagonismo federal em ações de proteção social e de ampliação do acesso das classes populares ao que havia sido cada vez mais delegado à iniciativa privada. Obviamente não se trata apenas de um detalhe em termos de administração pública. “Nunca antes na história desse país” diversas reivindicações populares foram atendidas. Mas a partir de uma lógica capenga e arriscada, principalmente na medida em que se sustenta viabilizando, de modo tão ou mais eficaz, a redistribuição dos recursos no sentido inverso, na qual os parâmetros de atuação dos bancos aliados às políticas pró-empresariado transferem parcela da renda do trabalho para as mãos da iniciativa privada. E segundo Paulani (2012) e outros, enquanto a parte social, sustentada por programas ou mesmo o aumento do salário mínimo, não se enraíza estruturalmente, a base sobre a qual se assentam os lucros dos bancos, essa sim é estrutural.
Também pode-se estabelecer ao longo da dissertação um breve perfil histórico, socioeconômico e político do Itaú Unibanco, incluindo os seus “braços culturais”, através da análise das ações das principais fundações e instituições a ele conectadas. Com o perfil traçado, são contextualizadas as discussões sobre a reestruturação produtiva, a proeminência do setor de serviços e o fenômeno da “virada cultural”. Sobre essas bases é que se pode deduzir a necessidade de modulação do discurso “pró-educação” lastreado em tecnologia, por exemplo, uma vez que no panorama brasileiro, e periférico em geral, em que muita escola nem banheiro tem, tecnologia é conciliada com técnicas de exploração também de ponta.
A conexão entre “mundo da cultura” e “mundo do trabalho” nos aparece portanto de modo bastante evidente. Pudemos percebê-la através das imbricações entre as dimensões “estruturais” e “superestruturais” do Itaú Unibanco, e mesmo considerando outros bancos, fazendo com que o setor financeiro e as fundações e institutos mantidos por ele seja responsável pela maior parte (mais da metade) do total de recursos das organizações empresariais destinados ao investimento social privado.
A conexão também é revelada na frente de disputa de significações, como, por exemplo, as disputas em torno dos termos “sociedade civil”, “representação” e “participação”. Em uma primeira mirada, a estratégia por se apostar na “participação da sociedade civil” parece representar uma alternativa às formas prévias paternalistas de submissão dos interesses da sociedade ao aparato do Estado. Uma espécie de estímulo às construções e iniciativas locais. Entretanto, as condições periféricas/dependentes das economias imprimem um movimento acentuadamente marcado: os distintos interesses da sociedade são muitas vezes vocalizados e unificados por uma associação poderosa entre empresariado e governo, limitando a horizontalidade e dissolvendo a capacidade de intervenção na formulação, implementação e monitoramento de políticas públicas por outros estratos sociais. É por esse motivo que não poderíamos reconhecer o Itaú Unibanco como legítimo representante da sociedade civil, nem como agente que cria políticas de interesse público, mas um representante de um setor específico da sociedade e que, por procedimento ideológico, transforma seus interesses em suposto interesse geral.
Maria Helena Augusto afirma que a abstração do universal dentro das políticas públicas acaba favorecendo apenas estratos da população geral (1989), e, Florestan Fernandes (1961), afirma sentir a necessidade de se detalhar melhor as divisões internas da “sociedade civil”, chegando ao conceito de “sociedade civil reacionária organizada”. Em todos os casos, tratam-se de interesses de um setor se colocando como interesse de todos, e o pior, financiados por todos, ou ainda, mais financiados pela população pobre do que pela população rica, se considerarmos o caráter regressivo da estrutura tributária brasileira hoje.
A análise da relação entre os setores que demandam, implementam e ofertam o modelo de educação integral do Itaú Unibanco também nos foi profícua quando invertemos os termos expressos no discurso oficial. Trataria-se, portanto, de vantagem sobremaneira para o Itaú Unibanco, na medida em que o modelo implementado ao mesmo tempo atinge diretamente: xs trabalhadorxs da educação, tanto na dimensão do conteúdo trabalhado quanto na forma de contratação e manutenção de pessoal; xs trabalhadorxs que necessitam de instituições públicas que forneçam formação aos menores sob sua responsabilidade (a ampliação da jornada, seja por meio das igrejas, polícia militar, ONGs, universidades ou institutos e fundações conectados à iniciativa privada oferece de fato maior atendimento a essa população; resta, porém, o questionamento em relação aos aspectos negativos de mais horas em atividades pautadas por essas instituições); e enfim xs jovens que podem aderir ao programa — o que já implica uma seleção interna entre xs mais “comprometidxs”, se utilizarmos o termo dos que implementam o modelo, ou entre xs “menos pobres” ou com “menos problemas para se dedicar aos estudos”, em outros termos — sendo “expostxs a mais horas no ambiente escolar” e com conteúdos e valores do empreendedorismo e do “protagonismo” juvenil. Somente nesses termos é que interpretamos que a educação integral promovida pelo empresariado (financeiro, sobretudo), que vem ganhando terreno sob o governo petista, concilia ao mesmo tempo demandas do trabalho e do capital.
A pesquisa buscou efetivar a aplicabilidade das críticas elaboradas até então em plano mais teórico do que empírico, trazendo dados sobre educação integral no Brasil e em São Paulo, especialmente sobre o modelo de parceria público-privada entre governo do Estado de São Paulo e empresários. Refletimos sobre os revezes da autonomia e da descentralização, observando a grande concentração de investimentos sociais privados na região sudeste e nos questionando sobre a substituição do planejamento estatal redistributivo pelos critérios mais particularistas das “entidades não estatais”. E na esteira das reflexões de François Chesnais sobre a originalidade das empresas-rede — quando o autor afirma que as novas tecnologias contribuem para gerir melhor as “novas relações” de trabalho, viabilizando maior controle da produção de modo indireto, eliminando a necessidade da grande companhia absorver as que orbitam em sua rede — , imaginamos, a partir do apresentado, ser possível aproximar a descrição à dinâmica desenvolvida pelo Itaú Unibanco ao “dominar” o espaço estatal sem precisar se fundir a ele, através de seus softwares de comunicação que interligam as unidades escolares, as secretarias de educação e a fundação/instituto parceira combinados com seus funcionários que prestam “assessoria” aos gestores e professores. Esses seriam mecanismos essenciais para explicar o crescimento e “replicabilidade” da metodologia do Itaú Unibanco em tantas escolas do país, juntamente à estrutura jurídica das parcerias público-privadas, o sucateamento da educação pública, as políticas estatais que fortaleceram o grupo econômico e contribuíram para a desarticulação dos trabalhadores de educação e trabalhadores em geral e a propaganda realizada em favor dos modelos público-privado.
Por fim, a partir do exposto, indicamos algumas possibilidades de interpretação do cenário mais amplo de investimentos em políticas sociais e políticas pró-capital financeiro nos três mandatos federais sob liderança do Partido dos Trabalhadores, tendo em vista as articulações com os governos subnacionais de outros partidos na implementação de políticas educacionais e o contexto de especial fortalecimento dos grupos econômicos, em especial o setor financeiro.
No plano mais geral, em outubro de 2002, com a vitória eleitoral do Partido dos Trabalhadores para o governo federal, o ex-metalúrgico e ex-sindicalista Luís Inácio Lula da Silva afirmava que o Brasil mudava em paz, tendo chegado o momento em que a esperança vencera o medo. Lula dialogava com os argumentos da campanha de seu concorrente do PSDB José Serra, fundamentados no medo de uma possível guinada à esquerda ou amadorismo na condução das políticas. Mas depois da terra arrasada em termos de direitos civis e mesmo sociais de mais de duas décadas de ditadura civil-militar – a despeito de alguns índices de crescimento econômico, sustentados por condições bastante questionáveis –, e da década de noventa afundando no “neoliberalismo de direita”, o PT, em sua versão “paz e amor”, se estabelecia no governo federal prometendo transformações “tranquilas”. Valendo-se da confiança dxs trabalhadorxs que tinha conquistado nos momentos iniciais do partido, de modo mais horizontal e mais próximo das bases, somada ao apoio conquistado após alterações na estrutura interna e as campanhas presidenciais de 1989 e 1994, o PT teria assim construído as bases para vencer as disputas eleitorais em 2002 (Secco, 2014).
Abstrações conceituais unificadoras como “povo”, “sociedade civil”, “cidadania” e “democracia” foram particularmente úteis nesse processo de convencimento dos setores capitalistas de que um governo petista não significaria implantar o poder operário pelas urnas. Esperança e medo apenas adjetivados por seu contexto nebuloso agregaram gregos e troianos em torno de uma difusa interpretação: a esperança seria por melhores condições de vida dos setores populares, e o medo vencido seria o das elites em ter ameaçadas suas condições de existência e perpetuação. Antes de insistir na relação de polarização, “ou um ou outro”, vencia-se o medo do setor capitalista ao provar que as bases de governo seriam bases de conciliação entre as partes. O que se tem como consequência, arrisco a dizer, é que a estratégia juntava na esfera estatal o mecanismo motivacional da “participação dos trabalhadores nos lucros” — mas apenas na medida da administração progressista da miséria —, com a participação dos trabalhadores no processo de elaboração das suas próprias tarefas — através dos arranjos participativos e representativos institucionais —, tudo dentro dos limites da lógica prioritária de acumulação do capital.
Temos hoje dois mandatos de Lula e um de sua sucessora, Dilma Roussef, concluídos. O contexto conturbado de reeleição e começo de novo mandato que Dilma enfrenta fez com que o PT reciclasse seu lema de campanha sintomaticamente para “a esperança vencerá o ódio”. As perguntas de agora, tanto no plano micro como no plano macroeconômico, social e político, giram em torno da viabilidade de se seguir no rumo trilhado até o momento. Nesse sentido, acredito poder contribuir, através da pontual reconstituição do período, sob o recorte da educação integral do capital financeiro, com dados para uma interpretação sobre o panorama sociopolítico e econômico da década petista no governo federal que parta da análise desses dois eixos estruturantes da crítica à economia política: o eixo do trabalho e o eixo do capital. Frisando-se a necessidade de contínuas idas e vindas em relação às pesquisas sobre segmentos populacionais específicos e os movimentos gerais. Isso significa que análises comparativas entre os impactos desses programas para alunxs e trabalhadorxs de gêneros, sexualidades, raças, etnias e classes diferentes podem nos oferecer dados ainda mais precisos sobre a intensidade da desigualdade promovida pela divisão de escolas entre escolas de tempo integral e escolas com jornada regular como ela está se realizando pelo Brasil.
Referências:
- Leda Paulani. A dependência redobrada. Le Monde Diplomatique, 03 de agosto de 2012. Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1219. Acesso em: 12/02/2015.
- Lincoln Secco. A hegemonia tardia. In: PINHEIRO, Milton (org.) Ditadura: o que resta da transição. São Paulo, Boitempo, 2014.
- Maria Helena Augusto. Políticas públicas, políticas sociais e política de saúde: algumas questões para reflexão e debate. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 105- 119, 2.sem 1989.
- Florestan Fernandes. Educação e Sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus; Edusp, 1966.
Nota:
[1] URBINI, Lia. Educação integral e capital financeiro:A participação do Itaú Unibanco nas políticas públicas de educação entre 2002 e 2014. Dissertação de mestrado orientada por Ary Minella, defendida na Universidade Federal de Santa Catarina em setembro de 2015.
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Ilustração: Amanda Gotsfritz
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