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aborto, Alciana Paulino, coluna, Esculacho, Gunther Ishiyama, número 22
ESCULACHO | Aborto de A a Z
Vinte e seis historietas de aborteiras. Por Alciana Paulino
Agnes
Me joguei contra a quina do tanque. Não sabia quantas vezes tinha que pancar a barriga até que começasse a sangrar por baixo.
Berta
Peguei tudo o que ouvi: canela, noz moscada, babosa, catuaba, arnica, arruda, losna, sene, tinguaciba, beldoegra, erva grossa, buchinha-do-norte, espinho cheiroso… Até coca-cola quente com sorrisal. Fiz uns chás pra baixo e outros pra cima. Chorei de angústia, de dor e de ódio. Adoentei-me. Precisei de ajuda para chegar ao hospital.
Clara
Comprei misoprostol sem data de validade nem fonte e fui para a internet saber como usar. Cada site tinha um método, uma forma de tomar o tal remédio. Tentei seguir o que me parecia lógico. Não deu certo.
Daniela
Pedi dinheiro emprestado, saí pedindo. Para cada um dava uma desculpa. Meu namorado me deu R$200,00. Era o que ele tinha. O médico disse que fazia por R$2.000,00. Tinha que ir em jejum e acompanhada. Vendi minha jaqueta por R$50,00 e meu tênis por R$100,00. Falei em casa que tinha sido roubada. Faltava muito.
Estela
Minha mãe nunca me perdoou. Disse que eu tinha ido numa fábrica de anjos e que era covarde por causa disso. Ela tinha se lascado a vida toda para me dar o que comer e eu a agradecia me desfazendo de seu neto.
Francine
Passei por tudo sozinha. Não posso dizer que o homem da farmácia tenha me ajudado. Ele ganhou foi dinheiro, me deu uns comprimidos lá e uma injeção para dilatar o útero. Voltei para casa e sangrei três dias seguidos. Muita dor, muita cólica.
Gabriela
Cheguei sangrando no hospital, já devia ser umas duas horas da manhã. Fui recebida num misto de descaso e cinismo. Ninguém perguntou se eu queria o bebê, mas ouvi os enfermeiros falando entre eles “Essas meninas são todas safadas. Começam a porcaria em casa e correm pra cá pra fazer a curetagem”.
Hera
Fui lá na Senhora, ela já ajudou muito umas amigas minhas. É tipo referência, sabe? Ela usa sonda, é um bagulho que ela bota dentro e tem que sair o neném junto. Se eu tava com medo? Pô, eu tava muito. Mas a Senhora disse que era suave e que já tinha feito muito aquilo. Fiquei sabendo de uma mina que sofreu na mão da Senhora, mas aqui na Vila ela é tipo santa, sabe? Ajudou a mulherada a fazer o que queria.
Irene
Disseram que para que eu tivesse direito ao aborto no hospital eu tinha que denunciar o abuso. Minha mãe não queria perder o marido.
Janaina
Aproveitei uma viagem a Santos para fazer o aborto. Fiquei na casa de uns amigos. Meu marido ficou com as crianças e aceitou bem a ideia de que eu precisava descansar um pouco. Não perguntei a ele se queria o terceiro filho. Eu sabia que eu não queria.
Luzia
Levei minha comadre para uma clínica. Ela pediu ajuda e eu não podia negar. Até que foi bom para mim e para ela. Pois foi só aí, depois de vinte anos que eu tive coragem de contar para alguém o que tinha feito com quatorze. Tinha embuchado na primeira trepada. Tive que tirar, como podia eu na época carregar um menino nas costas?
Marluce
Na minha família existe uma história que diz que minha avó materna morreu por conta de um aborto mal sucedido. Ficou mal por alguns dias e morreu. Eu demorei muito para decidir tirar porque essa imagem da minha avó na cama, doente, era de assombrar.
Nena
Sempre fui muito doida. Esse é o terceiro que eu tiro, para cada aborto eu faço uma festa. Mas espero me recuperar primeiro. Acho que no próximo fim de semana já vou estar boa. Quer ir na minha festa?
Odete
Nunca passei por essa experiência de ter que abortar, afinal, sou sapatão! Mas tem esse lance de um monte de menina precisando de ajuda, meio perdidas e eu faço de tudo para ajudar. Para mim é meio que uma missão das feministas aqui no Brasil. A primeira coisa que temos que fazer é ajudar as que estão passando perrengue agora. A segunda é se juntar com outras, outros grupos e descriminalizar o aborto. É isso! Tu é feminista?
Pamela
Às vezes fico pensando que esse povo quer acabar com a gente. Os moleques pretos nas cidades estão sendo dizimados, ou por polícia, ou por traficante. Eu sei que a maior parte das mulheres que morrem no Brasil por conta do aborto são pretas. Eu posso dizer de boca cheia que sou uma sobrevivente.
Quésia
Eu até queria a criança, mas ela não ia viver de leite de peito a vida inteira. O que tenho ganhado não dá nem para mim e ainda tenho que ajudar lá em casa. Comprei o comprimido na farmácia mesmo, acho que a moça me vendeu de dó. Tive que tomar três vezes, fiquei triste e aliviada quando vi a bola no vaso.
Ruth
Depois que eu fiz com a ajuda de umas amigas, eu dei uma surtada. Uma ideia fixa com limpeza. Tomava uns seis, oito banhos por dia. Depois na terapia descobri que era uma reação à culpa que sentia. Hoje não me arrependo de ter abortado, casei, tenho filhos. Mas fico pensando que essa culpa não vinha de mim.
Soraya
Meu companheiro esteve comigo em todos os momentos. Disse que me apoiaria independente da minha decisão. Ele tinha dinheiro, conseguiu o melhor contato possível. Era uma clínica muito bem equipada, com um grupo de profissionais e tudo. Isso não diminuiu meu medo. Me disseram que quando eu voltei da anestesia tinha perguntado pelo meu filho. Não lembro de ter feito isso, então não aconteceu.
Tânia
Eu trabalhava com sexo, então entendia as gravidezes e as DST’s como acidente de trabalho. Tinha até uma poupança para poder fazer aborto e tirar uns dias de folga. Até que resolvi ter a Julinha e mais tarde o Ricardo.
Uda
Eu tive que ir pro Rio fugida. Começou o maior bafafá lá na minha cidade, dizendo que não era mais moça e que tinha abortado um bastardo. Cheguei no Rio de Janeiro só com umas roupas e um pouco de dinheiro que minha mãe tinha me dado.
Vânia
Tirei, tirei mesmo e tiraria de novo. Por quê? Porque o corpo é meu e eu faço dele o que quiser! Não tem carta de direito, lei ou o escambau que vai dizer que estou errada!
Xênia
Acho que toda vez que vez que uma mulher aborta todas deveriam sentir. Na verdade eu acho que hoje é o inverso. Quando uma mulher aborta ela sente todo o peso de ser mulher, todo o peso das outras.
Yara
Vi um vídeo lindo de uma mulher dando a luz na água. A maternidade pode ser linda em tons de azul e força. Mas eu não sentia que era hora, para mim houve força, mas teve cor de guerra. Tudo manchado de vermelho.
Walquíria
Eu dei a luz a um feto morto. Já tinha passado da hora de tirar. Quando saiu já tinha cara. Pedi para guardar para que pudesse ver.
Zoé
Perdi minha irmã por conta de um aborto mal sucedido. Toda noite eu faço duas coisas, amaldiçoar quem impede que o aborto seja um direito da mulher e rezar por todas aquelas que tem posto sua vida em risco.
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Ilustração: Gunther Ishiyama