Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

movimentos sociais

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Margaridas seguem em marcha…

Esse ano é ano de marcha! Por Vilênia Aguiar

Publicado em 15/06/2015

Esse ano é ano de marcha! É possível ouvir esta frase repetida vezes durante os meses que antecedem a Marcha das Margaridas, como que anunciando o acontecimento que ocorre a cada quatro anos, e que se configura como uma das maiores manifestações públicas de mulheres trabalhadoras no Brasil. 2015 é um desses anos. Pela quinta vez as margaridas, movidas pelo sonho de uma vida melhor, caminharão sobre o asfalto quente de Brasília, reivindicando publicamente os seus direitos.

Resultado de um amplo processo de mobilização, a Marcha surgiu no ano 2000, como uma ação em adesão à Marcha Mundial das Mulheres, apresentando um forte caráter de denúncia ao projeto neoliberal. Naquele ano, com o lema “2000 razões para marchar contra a fome, a pobreza e a violência sexista”, 20 mil mulheres trabalhadoras rurais, provenientes de várias regiões do País, ocuparam as ruas de Brasília. Divididas em três alas: ala das panelas vazias, ala das cruzes e a ala dos balões e das flores, elas expressaram com simplicidade parte significativa dos problemas que as atingiam, do mesmo modo como atingiam a maioria da população brasileira: a fome, a pobreza e a violência.

Desde então, a Marcha foi se instituindo como um processo de mobilização próprio e permanente, cuja ação passou a acontecer a cada quatro anos, sendo, assim, reeditada no ano de 2003, de 2007, e em 2011, envolvendo cerca de 40, 50 e 100 mil mulheres, respectivamente, passando a integrar a agenda dos movimentos sociais do campo.

Um dos fatores que justifica o seu imenso poder de mobilização é a sua capacidade de articulação. Coordenada pela Comissão Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais da Contag (CNMTR), cuja representação se dá através da Secretaria de Mulheres dessa confederação, a Marcha envolve, numa relação de parceria, organizações feministas, como a Marcha Mundial das Mulheres (MMM), a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), a União Brasileira de Mulheres (UBM); vários movimentos de mulheres, como o Movimento da Mulher Trabalhadora  Rural do Nordeste (MMTR-NE), o Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco  Babaçu (MIQCB), as extrativistas organizadas no Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), o Movimento Articulado de Mulheres da Amazônia (MAMA) e o Grupo de Trabalho (GT) Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia ; além de centrais sindicais (CUT e CTB)  e organizações latino-americanas, como a Rede de Trabalhadoras Rurais Latino-Americana e do Caribe (REDELAC) e a Confederação de Organizações de Produtores Familiares, Campesinos e Indígenas no Mercosul Ampliado (COPROFAM).

As interconexões e a construção de estratégias consensuais entre os diversos movimentos, organizações e redes que compõem a Marcha das Margaridas fortalecem sua posição na negociação frente ao Estado e favorecem a expressão do mal-estar com as assimetrias de gênero, cujas relações, estruturantes da sociedade capitalista, reproduzem a opressão sobre as mulheres. Ademais, a partir dessas interconexões a Marcha promove um processo articulatório que potencializa a sua atuação a partir de uma rede de mobilização mais horizontalizada, para dar reconhecimento e legitimidade à sua ação política.

A Marcha das Margaridas se construiu, portanto, como um movimento de caráter feminista amplamente articulado com o propósito maior de transformação do sistema capitalista, patriarcal e machista, reprodutor da opressão, discriminação e violência contra as  mulheres. Ao caráter político feminista, ela agregou  uma forte dimensão simbólica. Uma dessas simbologias, e a principal, é representada pela figura de Margarida Maria Alves. O nome que adjetiva a Marcha é uma homenagem a essa mulher.

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Margarida Maria Alves, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, foi assassinada em frente a sua casa, na presença do marido e do filho, no dia 12 de agosto de 1983, por um matador de aluguel que acertou em seu rosto um tiro de escopeta calibre 12. O principal acusado do assassinato foi Agnaldo Veloso Borges, então proprietário da usina de açúcar local, a Usina Tanques, e seu genro, José Buarque de Gusmão Neto, mais conhecido como Zito Buarque. Foram acusados pelo crime o soldado da PM Betâneo Carneiro dos Santos, os irmãos pistoleiros Amauri José do Rego e Amaro José do Rego e Biu Genésio, motorista do Opala utilizado no deslocamento, que mais tarde foi assassinado como “queima de arquivo”. A Marcha das Margaridas encampou uma campanha que findou por botar Zito Buarque no banco dos réus, apesar da sua absolvição.

Margarida Alves é sempre evocada como um símbolo de força, de coragem, de resistência e de luta, servindo como inspiração e estimulando as mulheres a lutarem por igualdade de gênero, justiça, autonomia e igualdade — e contra todas as formas de discriminação e violência no campo, particularmente a violência sexista.

Apesar de sua expressão ocorrer num determinado espaço e tempo, a Marcha das Margaridas, para além de uma manifestação pública, carrega alguns aspectos que tornam possível identificá-la como movimento social. Ela apresenta uma organização própria, e aciona um determinado tipo de repertório de ação coletiva, que compreende regras, um vocabulário e elementos dotados de forte simbolismo, como lenços, chapéus, bandeiras, cantos, e outras simbologias específicas, que, tomadas como seu marco distintivo, configuram uma linguagem social que expressa uma forma diferente de reivindicar demandas sociais ao Estado.

Mas, afinal, quem são as margaridas? Inicialmente, elas surgiram no espaço público como trabalhadoras rurais, mas a partir da Marcha de 2007 elas passaram a se nomear “mulheres do campo e da floresta”, procurando, assim, abarcar o conjunto formado por mulheres agricultoras, camponesas, sem-terra, acampadas, assentadas, assalariadas, trabalhadoras rurais, artesãs, extrativistas, quebradeiras de coco, seringueiras, pescadoras, ribeirinhas, quilombolas, indígenas e tantas outras identidades construídas nos diversos territórios do país.

São estas mulheres, vindas dos mais longínquos lugares — em muitos casos em mais de três dias de viagem —, que chegam a Brasília, e formam ali um grande contingente de mulheres, ampliado com a participação de milhares de outras; trabalhadoras de diversas categorias, engajadas em vários movimentos e organizações sociais, como domésticas, operárias, professoras, bancárias, comerciárias, funcionárias públicas de diversas áreas, estudantes, militantes sindicais, feministas, numa demonstração de unidade na luta contra a opressão patriarcal, pela superação de todas as formas de discriminação e na defesa da plataforma política, feminista e sindical.

Apresentando uma grande força mobilizatória, vinda da sua inserção nas redes da vida cotidiana de diferentes segmentos sociais, a Marcha representa uma pluralidade e uma diversidade de mulheres. Mulheres de todas as gerações, de diferentes identificações étnico-raciais e sexuais, de realidades diversas, que se encontraram em Brasília numa ação solidária e convergente por justiça, autonomia, igualdade e liberdade, tornando a Marcha um grande movimento que faz de um único dia um marco na história de luta contra a desigualdade de gênero.

Para chegar a Brasília, as trabalhadoras do campo e da floresta se preparam durante mais de um ano, realizando atividades diversas que, com grande criatividade, combinam a mobilização de recursos financeiros e a mobilização política, envolvendo atividades formativas, debates e a construção descentralizada da plataforma e pautas de reivindicação. Os meses que antecedem a realização da Marcha são intensos em estudos e debates sobre a realidade das trabalhadoras do campo e da floresta em encontros, seminários, rodas de conversas. Dos intensos debates realizados em todo o país resulta um documento com a análise da realidade do campo a partir da vivência e do olhar das mulheres, e uma pauta de reivindicações que é apresentada ao governo federal.

Em cada uma das quatro marchas, a plataforma política e a pauta de reivindicações enfocaram questões estruturais e conjunturais, além daquelas específicas das trabalhadoras do campo e da floresta. De caráter feminista, as proposições apresentadas puderam ser traduzidas para novos significados ao serem conectadas a questões mais gerais dos movimentos e organizações que participam  da Marcha das Margaridas, seja sob o lema adotado nas três primeiras marchas: 2000, 2003, 2007, “razões para marchar contra a fome, a pobreza e a violência sexista”; seja sob o lema “2011 razões para marchar por desenvolvimento sustentável com justiça, autonomia, igualdade e liberdade”, em torno das quais as suas questões específicas são apresentadas.  Assim, a pauta de reivindicações procura articular desde questões como a reforma agrária, democratização do acesso aos bens comuns, preservação do meio ambiente, defesa da biodiversidade e da agroecologia, fortalecimento da agricultura familiar, apoio à produção e comercialização, garantia de direitos trabalhistas (salário e condições de trabalho) e previdenciários à proposição de programas e políticas sociais voltadas para geração de renda, saúde, educação e enfrentamento contra a violência sexista.

Propondo, através das suas reivindicações, mudanças que podem ser entendidas tanto como econômico-estruturais quanto simbólico-culturais, a Marcha das Margaridas tem contribuido na formação de novos sistemas de valores e constituindo-se como força de pressão contra o sistema institucional e aos padrões dominantes, contrários aos princípios éticos que compartilham. Por isso, sua ação apresenta um forte caráter de denúncia e protesto contra a fome, a pobreza e todas as formas de violência, exploração, discriminação e dominação. Uma denúncia que desvela tanto a injustiça socioeconômica enraizada na estrutura político-econômica da sociedade quanto a  injustiça cultural  ou  simbólica arraigada  em  padrões  sociais  de representação, que se materializam e corporificam no cotidiano dessas mulheres. No seu clamor por justiça, autonomia e liberdade estão implicadas demandas que incluem tanto o reconhecimento da diferença quanto a redistribuição econômica  procurando, assim, avançar na construção da igualdade para as mulheres. E com esse propósito seguem em marcha as margaridas…

A caminhada, a performance, a estética da Marcha expressam a experiência vivida durante todo o seu processo de construção e evocam com força as dimensões coletivas do vivido. A estética apresentada é uma estética da vida. Salta aos olhos a cor lilás nas bandeiras e faixas, nos chapéus, nas camisetas, nas tiaras, destacando-se, assim, a forte simbologia da luta feminista. Portando faixas, cartazes e bandeiras, as mulheres organizam a caminhada em alas temáticas, demonstrando uma imensa capacidade criativa para expressar palavras, imagens e gestos que dão visibilidade às suas principais denúncias e reivindicações.

A cada ano, a Marcha das Margaridas vem expressando toda sua força social e política, revelando-se como uma ação consolidada na trajetória de mobilização e luta, das mulheres do campo e da floresta, por visibilidade, reconhecimento, direitos sociais e políticas públicas. Após a realização dessas quatro grandes marchas registrou-se um conjunto de ganhos políticos, dentre os quais o fortalecimento da luta e unidade das mulheres; e a contabilização de algumas conquistas, embora ainda haja muito a ser conquistado em termos de políticas estruturantes e políticas públicas.

Em 2015, com o lema “2015 razões para marchar por desenvolvimento sustentável com democracia, justiça, autonomia, igualdade e liberdade”, mais uma vez as mulheres do campo e da floresta pisarão no asfalto quente de Brasília, mostrando a sua garra, persistência, energia e vontade de mudar o mundo, uma vontade que se expressa nos diferentes rostos, cores, etnias, idades, e se revela nas diferentes experiências de vida, de luta, nas diferentes trajetórias. Ali estarão elas, lutando por um mundo melhor, em meio a gestos de afetos, cuidado e alegria. Sonho, utopia e muita luta, é o que se verá!

Ilustração: Bianca Muto


Vilênia Aguiar é uma pernambucana que foi ser gauche na vida e se tornou cientista social. Amante do samba, do frevo, do sol e da poesia. Faz de tudo um quanto e adora tomar uma breja no final da tarde de sexta-feira.

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