coluna
Alciana Paulino, Esculacho, família, feminismo, Gunther Ishiyama, Memórias da Negrinha da Casa das Putas, número 12
ESCULACHO | Memórias da Negrinha da Casa das Putas
Ser menina e “moreninha” na zona leste de São Paulo na década de 80. Micro-histórias de uma infância cheia de aventuras, mais que na Sessão da Tarde. Por Alciana Paulino
Esse mês no Esculacho teremos vários textículos, olha que massa! Pensei em criticar um texto de comportamento da Marie Claire, mas para que se dar ao trabalho, não é mesmo?! Achei melhor trazer as memórias e algumas recriações da infância da Negrinha da Casa das Putas.
Quem vem?
Primeira inveja
A primeira vez que senti inveja da minha irmã foi quando ela nasceu. Ela, filha da mesma mãe que eu, tinha os olhos claros! A família comemorou: “é negra, mas tem os olhos claros”. Queriam mudar o nome da criatura para Isaura. Poxa, eu me chamo Alciana! Quem tem mais característica branca ganha brinde?
Com o tempo seus olhos escureceram e, mais tarde ainda, foi ela quem me ensinou a ter orgulho de ser negra. Te amo, bolinha!
Pipa
Segurar língua de fofoqueiro é como empinar pipa com vento forte e linha fraca. Você dá linha, dá linha, mas vai estourar de qualquer jeito!
Com seis anos saí com o Rafael para empinar pipa. Duas pessoas viram e me advertiram que aquilo não era coisa de menina. Continuei. Uma delas me ameaçou, disse que contaria para a minha avó. A alma do capeta me atormentou meses, eu tinha que fazer favores, me chantageava o tempo todo.
Até que contou. Língua felina! Bem feito! Minha vó só deu uma bronquinha. Jurei não mais me submeter a chantagens. Mas, sabe como é… a vida ainda tinha outras traquinagens para me apresentar.
Tráfico porn na Rua Passira
Tinha uma vizinha, única adulta casada que não tinha filhos, que tinha muitas revistinhas de sacanagem, uns gibis com historinhas eróticas. Não sei o que se passava pela sua cabeça, mas ela dava vários exemplares para a criançada da rua. Mesmo muito tímida, fiz questão de garantir as minhas: fiquei amiga.
Depois, a graça era fazer a investigação para saber quem tinha as revistinhas, pois dava para trocar brinquedos por mais revistinhas.
Mensagem à distinta família Paulin@ da Silva:
Família, era assim que me desfazia das bonecas, ok?! Comemorem, pois fiz questão de aprender a ler com agilidade para saber o que falavam! Depois de 26 anos, descobriram! Taí, felicidade! Sou alfabetizada!
A morada da pulga e as letrinhas
Quando aprendi a ler achei o máximo, pegava tudo que tinha letra. Até com a maldita sopa eu surtei. Sentia-me uma desbravadora e criadora de significados, linda essa fase!
Era privilegiada, lá em casa tinha uns livros. Em uma das buscas me interessei por dois: uma enciclopédia velha sobre saúde e um sobre ocultismo.
O primeiro achei meio estranho, tinha a foto da garota que conseguiu parir com a menor idade. Não lembro se tinha 5 ou 7 anos. Mas a maldita tinha a mesma idade que a minha. Mesmo sem entender muito bem como a coisa acontecia, fiquei com medo de engravidar, afinal aquilo era a ciência falando que era possível. Detalhe, só falaram das mulheres na parte de reprodução.
Já no livro de ocultismo as mulheres eram heroínas, cultuadas em rituais, tinham poderes mágicos! Mas na capa dizia que aquele livro era proibido. Tive até que ler escondido.
Uma pulga fez morada atrás da orelha.
Banheiro e Tina Turner
Toda vez que relatava quando alguém me escangalhava, chamando de negrinha do fuá/pixaim/pixe/tiziu/PPB (puta, preta, barata) ou qualquer outra fala racista, a minha família dava de ombros. “Não dá ouvidos, você nem é negra, é moreninha”.
Depois de um tempo parei de contar, ia chorar sozinha no banheiro.
Um dia fui ao bar do Português comprar cigarro para minha tia, ele viu uns moleques me insultando e falando mal do meu cabelo. Entrou no meio e disse: “Ela é negrinha sim, é linda, igualzinha à Tina Turner”. Me amarrei!
Dessa vez eu corri para o banheiro, mas foi para fazer a maquiagem e a dublagem com a escova de cabelo como microfone.
Fiquei conhecida no bar como Tina Turner, adorava ir lá, mas o Portuga resolveu seguir a tabela da inflação. Tive que ir comprar cigarro no Pernambuquinho, acho que ele nem conhecia a Tina. Uma pena!
A Negrinha da Casa das Putas
Morávamos em seis pessoas num quarto e cozinha. Minha avó, a rainha do sabá, mamãe que me teve solteira, minhas duas amadas e, na época, jovens tias; e meu padrinho, que era o caçula dos quatros filhos da minha avó, moleque de tudo e no meio da mulherada.
As outras famílias achavam a nossa muito estranha. Éramos a única casa onde as mulheres trabalhavam fora e não existia um patriarca com seus mandos e desmandos. Alguém tinha que pagar o pato e eu era a única que ficava no bairro durante o dia.
Poucos meses depois de nos mudarmos, um garoto me chamou para brincar na casa dele. Chegamos e ele fez questão de me apresentar para a mãe. Minha memória me trai um pouco aqui, pois a imagem é de uma mulher gigante, uma mistura de personagens femininos do Tim Burton e do Almodóvar com Dona Florinda.
A bisca com avental e a barriga na pia me olhou de canto de olho com o cigarrão na mão direita. Deu uma tragada e voltou-se para o filho:
– Já falei pra você não brincar com a negrinha da casa das putas.
Pensei em explicar que elas não eram putas, mas funcionárias públicas. Um pouco diferente, né, gente?
Desta vez não chorei no banheiro. Guardei para chorar em silêncio durante a noite.
Besteira, mas não sabia na época. Hoje eu me amarro nessa história da “Negrinha da Casa das Putas”. Não é à toa, meu bem. Enquanto alguns tentam homogeneizar, tenho a liberdade de Genizar. Segura essa, Dona Florinda/Almodóvar/Tim Burton!
Leia outros textos de Alciana Paulino e da coluna Esculacho.
Ilustração: Gunther Ishiyama.