gordofobia
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A dieta como sedativo político
Bate-papo babadeiro com a nutricionista Ana Carolina Pereira Costa sobre saúde, alimentação e gordofobia. Por Alciana Paulino e Cecília Rosas
Publicado em 15/07/2015
Quando contamos, ninguém acreditou. Mas, sim, fomos conversar com uma jovem nutricionista. Choque! Será que até na nutrição poderíamos encontrar coro contra a gordofobia e um olhar mais crítico contra as emburrecedoras dietas? Pois é, parece que encontramos. Ana Carolina Pereira Costa, ou Carol, como escolhemos chamar (somos abusadxs!), nos recebeu em seu consultório no bairro de Perdizes, em São Paulo, para um bate-papo. Lá tivemos a oportunidade de conversar sobre algumas coisas que nos incomodavam, e saibam que o nosso peso não era uma delas!
Comida é prazer
Carol, jovem e simpática, iniciou sua trajetória trabalhando com pacientes com transtornos alimentares. Assim, encontrou uma forma de entender e trabalhar com a alimentação prezando mais o afeto, o prazer e os encontros: “A alimentação sempre foi uma fonte de prazer pra mim, sempre comi em família. E deveria ser assim para todo mundo: comida é prazer! Eu achava fascinante como tinha pessoas que sofriam com a alimentação, que é uma coisa [tão natural] como respirar.”
Já no primeiro ano de faculdade, Carol foi fazer um curso de formação no Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares (Ambulim) do Hospital das Clínicas de São Paulo (HC). Lá, ela entrou em contato com as teorias e práticas com que trabalha até hoje, inclusive a “abordagem da não dieta”: “não vamos fazer dieta! Vamos tentar mudar comportamentos, vamos trabalhar com a permissão integral da comida. Nada mais é proibido, nada não é saudável – tudo pode ser saudável dentro de um contexto exato”. Esse tipo de abordagem não tem a ver apenas com a nutrição, pois é uma espécie de terapia nutricional: “A gente esbarra com uma série de questões psicológicas. Não é só dizer: ‘Come isso, come aquilo’”.
Fazer dieta é um sedativo político e social
Assim, começamos achar o papo mais interessante. O mundo passou a ser mais animado, mais colorido e plural. Sem interdições a priori. Gostamos! Essa primazia da saúde ainda era o que nos incomodava, mas sobre isso Carol foi nos falar mais tarde. Na sequência do papo ela introduziu outro ponto interessante: “Fazer dieta é um sedativo político e social, especialmente pras mulheres. Se bem que hoje a gente tem muitos homens que também estão comprometidos com a questão, que estão completamente adoentados e sedados com isso”.
Como assim, “anestésico político”? “Pois é. Naomi Wolf já dizia. Ela escreveu um livro, O mito da beleza, e colocou que fazer dieta é o maior sedativo político das mulheres. Fazer dieta, na minha opinião, nesse sentido, de funcionar como um sedativo político, é quando a relação da pessoa com a comida se torna uma obsessão. Porque comer é uma prioridade na nossa vida. Tem que ser, sem comida a gente não vive. Mas quando a comida se torna a única prioridade da vida, se torna o único foco de atenção, aí ela vira um sedativo, porque nada mais existe. Não existe espaço, por exemplo, pra interação social, não existe espaço pra ir a um aniversário… Dieta como sedativo político é a pessoa que, em vez de ler o jornal ou um livro que ela goste, que a torne mais politizada, que a torne mais inteligente, ela fica lendo a Boa Forma, Women’s Health, livros de dieta, pensando em qual vai ser a próxima dieta que ela vai fazer, em quantas horas ela vai ficar na academia. É a pessoa que vai na academia, e não vai três, quatro vezes na semana e fica uma hora lá por saúde ou porque ela gosta ou mesmo porque ela quer cuidar do corpo, mas de uma forma razoável. Ela deixa de fazer outras coisas, ela deixa de almoçar com a família no domingo porque ela não malhou na sexta, só sobrou o domingo, então ela tem que malhar no domingo e consequentemente ela não vai sair com a família, com os primos à tarde. É quando a comida e o corpo se tornam coisas tão obsessivas na vida de uma pessoa, que não existe mais espaço para uma flexibilidade e para outras interações, para trabalhar outras áreas da vida que não sejam comida e corpo.”
A gente concordou com a Carol: como alguém fissurado em um padrão de beleza magro e eurocentrado pode entender e experienciar a sua liberdade de ser e estar no mundo? Mas e quanto aos corpos que destoam da norma, xs gordxs? Onde ficam nessa práxis da não dieta?
Por que você quer emagrecer?
“Pra mim, particularmente, obesidade não é doença. Eu sei que ela é doença pelos manuais, mas não acho que seja doença, porque existem obesos que são metabolicamente saudáveis. Você vai fazer exames na pessoa e eles estão melhores que os de uma pessoa magra que está com o colesterol a 500. Então, eu não acredito que obesidade seja uma doença, na medida em que nem todos os obesos apresentam uma condição de doença. Como você pega todos eles e coloca no mesmo patamar?
“A gente tem que ver também a questão da saúde como valor. Quer a obesidade seja doença ou não, e daí? Para alguns indivíduos, a saúde não é o valor máximo da vida. Então, de repente, ele não quer ser saudável. Por que todo mundo tem que se conformar a essa busca por ser saudável? Por que aquela pessoa tem que ser magra ou não ser obesa? Simplesmente porque não é saudável? Dane-se! Talvez ela não queira ser saudável. Isso supondo que a obesidade, por si só, fosse considerada um impedimento à saúde, o que não é!”
Carol diz que segue a filosofia do grupo de ativistas o Health at Every Size. “Eles dizem o seguinte: a pessoa pode ser saudável em qualquer tamanho, se essa for uma escolha dela. O que importa pra saúde é o estilo de vida que o indivíduo leva, são as práticas de saúde que ele tem na vida. Comer direito, fazer exercícios, cultivar a espiritualidade, brincar, respirar um ar mais puro são coisas que, na verdade, compõem um estilo de vida mais saudável, mas que a pessoa talvez não vá emagrecer com isso. Tem gente que come direito, por exemplo, tem uma alimentação saudável, mas mesmo assim não emagrece. E essa pessoa não é saudável, sendo que ela come melhor que aquele magrelo que come todo dia no McDonald’s?”
“Tem pessoas que falam: ‘Carol, eu sei que, se eu quisesse emagrecer, teria que mudar uma série de hábitos que para mim são prazerosos. Não é tão confortável pra mim viver nessa sociedade gordofóbica sendo gordo, mas eu não quero abrir mão das coisas que me fazem ser gordo. Então, vou aceitar ser gordo’. A pessoa toma essa decisão, e por mim tudo bem, porque o indivíduo tem consciência de que é aquilo que ele quer. Mas o que muitas vezes a gente vê é a pessoa obesa que realmente não quer abrir mão de um determinado estilo de vida, mas ao mesmo tempo sofre tanto por ser obesa vem aqui ou vai até outros profissionais, buscando um emagrecimento que ela própria não tem certeza se quer, mas que talvez aquilo tenha sido imposto a ela de tal maneira, pela família, pela sociedade, por um contexto social em que ela está inserida, que ela meio que chega aqui falando que tem que emagrecer. ‘Eu nem queria, mas precisa, né? É o que me resta.’ Por que você tem que emagrecer? Quem te falou isso? De onde vem essa ideia? Como você chegou até essa conclusão? Porque, na realidade, você não tem que emagrecer.”
Homem bonito, poderoso e bom
Foi aí que tivemos a oportunidade de falar de experiências como a da Missogina (Constanza A. Castilho), que publicou no número 0 da Geni o “Manifesto gordx”, e de outras mulheres e coletivos que entendem o corpo gordo como uma expressão contra-hegemônica e anticapitalista. E Carol falou sobre o aumento de diagnósticos de homens com transtornos alimentares:
“Tem a questão dos metrossexuais, dos homens que também são muito cobrados em relação à sua estética, homens que precisam praticamente ter um corpo isento de gordura, mas com muito músculo, porque homem bonito, poderoso, bom é aquele que é forte, não excessivamente, mas tem que ser musculoso, definido e não pode ter barriga. Não adianta, por exemplo, ser um levantador de peso, que às vezes é ultraforte, mas tem barriga, tem gordura no corpo. Também não pode ser esse, então já tem um certo padrão ideal de corpo masculino também.
“A pressão da mídia, da sociedade, para o corpo, a beleza e a dieta, é muito mais focada nas mulheres. Mas já tem uma estatística recente, um estudo que foi apresentado em um congresso que eu fui lá de Nova Iorque, que era o Congresso da Academia Americana de Transtornos Alimentares. Há dez, quinze anos atrás, a estatística era: pra cada dez mulheres com transtorno alimentar havia um homem. Hoje, para cada duas mulheres com a doença, há um homem que também tem. Ou seja, os homens estão quase chegando lá. Aliás, talvez já tenham até chegado, já que os homens procuram menos ajuda justamente por serem doenças mais estereotipadas femininas. Então, pro homem procurar ajuda pra isso demora muito. Primeiro, porque é uma questão emocional: dificilmente ele vai admitir que a vida emocional dele tá influenciando naquilo que ele come ou não. Pra ele chegar num profissional de saúde, que muitas vezes nem entende o que é transtorno alimentar, e dizer: “Olha, quando eu tô estressado eu como três pizzas, e quando eu tô muito triste eu fico cinco dias sem comer e eu tenho medo de ser gordo…”, pro homem isso é muito estigmatizante, então pra ele buscar ajuda, ele tem que estar realmente em uma situação muito, muito ruim. Lá no ambulatório do HC em que eu continuo trabalhando, o Ambulim, eu atendo hoje homens tanto homossexuais quanto heterossexuais. Não tem uma regra. Todo mundo fala que homem que sofre disso é gay. Não é não… Tem muito hétero lá, muito ‘macho alfa’ que senta na sua frente e desaba. Tem fila de espera, muita procura. Os homens estão começando a procurar”.
O autocontrole é limitado
Mas, Carol, tem uma parte da nossa audiência que ainda não entendeu como pode uma nutricionista ser contra dieta. Você pode explicar para esse povo?
“A pessoa começa a fazer uma dieta, quer seja porque ela tem alguma questão de saúde que teoricamente precisaria disso, ou porque ela quer emagrecer – normalmente é por emagrecimento mesmo, vamos ser bem realistas. É difícil a pessoa ir ao nutricionista porque tá com o colesterol alto e quer mudar isso, é sempre: ‘Olha, eu tô com o colesterol elevado, e também tem uns três quilos aqui que não custa nada eles irem embora’ – como se o corpo fosse uma massinha de modelar que a gente pudesse falar: ‘Três quilos, vamos lá’.
“Mas o ciclo da dieta é o seguinte: a pessoa começa a fazer uma dieta normalmente por emagrecimento, e toda dieta a gente sabe que é uma privação, uma restrição tanto quantitativa, em termos de quantidade de comida que a pessoa vai comer, mas também qualitativa, daquilo que ela vai poder escolher. Toda dieta funciona no começo, se a pessoa realmente faz: você sobe na balança e vê o peso caindo, seja por perda de gordura ou de massa muscular (o que acontece em qualquer dieta, a gente nunca perde só gordura, perde músculo também). Aí a pessoa continua fazendo, continua com aquela restrição, mesmo sendo uma coisa que incomoda. Só que chega um momento que o metabolismo da pessoa também dá uma estagnada, o corpo para de perder peso, o metabolismo fica mais desacelerado. Porque pro corpo não é vantajoso perder peso, mesmo quando a pessoa é obesa – o corpo tá numa situação de equilíbrio e, quando a pessoa começa a perder peso, o corpo entende que a pessoa talvez esteja passando fome, que alguma coisa não tá muito legal, então ele vai economizar o máximo de calorias e dessa maneira a pessoa vai ter uma perda de peso menos acelerada ou vai chegar o momento que a gente chama de platô, que quando a pessoa para de perder peso. Aí ela começa a reconsiderar se vale a pena passar por toda aquela privação porque afinal de contas ela nem tá perdendo mais peso. Digamos que ela decida: ‘Vou fazer a dieta’. Só que chega um momento, e isso sempre acontece com qualquer tipo de privação, que vai haver uma perda de controle, porque o autocontrole é limitado, porque a gente também vive num mundo em que temos estímulos alimentares a todo momento.
“Como ele vai perder o controle, vem uma sensação de ‘tudo ou nada’. Nunca é um exagero circunscrito, é sempre um período de exagero pra compensar o período que o indivíduo ficou na dieta. Aí obviamente o indivíduo tende a ganhar peso com isso, e quanto mais dieta ela faz, menos peso ela perde no início e mais peso ela ganha depois.
“Já teve alguns estudos que falaram que era entre 3% e 5% dos indivíduos que conseguiam de fato a longo prazo – digamos uns cinco anos – fazer uma dieta e depois manter o peso perdido. De alguma maneira a pessoa conseguiu fazer aquela dieta ser bem-sucedida e depois manteve o peso. Mas provavelmente são pessoas que têm mais o perfil obsessivo, são pessoas que têm uma rotina mais tranquila, que elas possam de fato se dedicar a isso, que a dieta se torne uma prioridade na vida dela.”
Condições sociais privilegiadas fazem muita diferença, né?
Bom, Carol, muito obrigadx pelo bate-papo! Adoramos! Já que na Geni ninguém quer anestésico político, te convidamos para uma cervejada regada a massa com bastante molho e queijo! Bora?
Ao sair da profícua conversa com a Carol, discutimos sobre o assunto. E o que mais nos inquietou é que toda essa louca e entorpecente busca por um corpo magro é reflexo de uma sociedade que, além de misógina, racista e gordofóbica, vive a possibilidade de fazer escolhas. Enquanto para outrxs a fome ainda é um beco sem saída. Foi ficando cada vez mais claro para nós como comer, algo tão básico e ao mesmo tempo tão essencial, muitas vezes é um instrumento de controle político poderoso. *%#@$!!!
E aí, curtiram o bate-papo? Para quem tiver interesse no trabalho da Carol, este é o seu blog. Além disso, ela indica o livro Fat is a feminist issue [Gordura é uma questão feminista], de Susie Orbach. Para quem quer continuar ligadx, fique com a gente!
Ilustração: Amanda Gotsfritz
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