Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Pelas barbas de Ed Marte

Notas sobre um performer perambulante que alimenta a atmosfera de liberação em Belo Horizonte. Por Bernardo RB

 

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Discutir e brincar com as determinações de masculino e de feminino é algo que aumenta a nossa força de existir com o corpo. Não é à toa que os feminismos continuam na ordem do dia e que diversas questões do universo trans estão ganhando espaço, convocando também temas transversais como a espiritualidade, a etnia, a família e infinitas possibilidades de ser. Aos poucos, vamos conhecendo coletivamente o que é o fato de cada um ter um corpo só seu.

 

Ed Marte, nascido em Martinho Campos, interior de Minas Gerais, 1968, é um dos que dançam pelas fronteiras entre o feminino e o masculino, mas não só. Com longos cabelos e barba, sua imagem já lembrou por aí Jesus Cristo, Raul Seixas e um sábio oriental, todos com os coloridos looks femininos criados por ele. Mas Ed Marte não traz fantasia e nem mesmo é um personagem.

 

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Ed no Bloco do Peixoto, Belo Horizonte, 2014. Foto de Flávia Mafra.

 

Vive em Belo Horizonte, onde o maiô, as lantejoulas e as estampas de brechó se tornaram para ele o vestuário certo de muitos passeios. Em seu dia a dia tem também bermuda e camiseta, roupas com o sonho mais discreto, mas isso não muda quem ele vai sendo por aí: alguém que cria se conectando com a rua e o estar em público, seja em manifestações, festas ou no simples caminhar.

 

A barba longa é algo com que se sente confortável há alguns anos. “Faça amor, não faça a barba”, ele diz ao lado da tradição do Kundalini Yoga, na qual deixar o cabelo sem cortar lembra o corpo da energia que o rodeia magneticamente e que faz crescer as coisas. “Na filosofia da kundalini a gente acredita que a barba e o cabelo comprido dão uma força espiritual”, afirma Ed na sua participação no projeto Pelos Pelos, do coletivo Além.

 

Viver no mundo lado a lado com quem aparece, deixando-se rodear pelo desconhecido, é o que vejo na sua trajetória de artista livre – termo com o qual ele às vezes se chama. “Tire uma foto com Ed Marte”, diz a plaqueta no Parque Municipal, enquanto ele existe e acena como se recebesse as pessoas na varanda de casa, em pleno centro da cidade.

 

Ed traz consigo um espaço e uma atmosfera acolhedores, numa libertação que não fica restrita só aos seus trabalhos. O seu fazer vibra por uma cidade em que, cada vez mais, a multidão vem se reunindo nas ruas para o longo trabalho de insistir em existir frente à prefeitura de Belo Horizonte. O governo do prefeito Márico Lacerda, como muitos, tem atuado por um “enobrecimento urbano” que valoriza uma cidade de pessoas abstratas.

 

A cidade de carne e osso, entretanto, não dorme. Uma parte dela vai plantando continuamente ideias em ocupações, em escolas, pela rua e pelo Carnaval faça você mesmo. Vemos o corpo de Ed por aí, nas marchas a favor da luta antimanicomial, do direito à moradia, da Tarifa Zero e da transparência nos gastos das empresas de transporte público. Ele também vem apoiando e documentando com a sua presença a luta a favor do Espaço Comum Luiz Estrela, ocupação de um prédio histórico em Belo Horizonte que envolve arte, comunidade e autogestão. Junto da multidão a favor da regulamentação do consumo da maconha, também vemos Ed no debate.

 

Esse maiô rebola nos blocos de Carnaval que, de 2009 pra cá, têm feito em Belo Horizonte um feriado de consciência e de troca entre periferia e centro, usando sem patrocínios os espaços urbanos. Ed, expandindo essas e outras performances, divulga suas documentações pelo Facebook – do qual já foi algumas vezes expulso.

 

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Ed Marte, numa imagem considerada pornográfica pelo Facebook. Foto de Renato Negrão.

 

Como arte-educador, ele tem frequentado formalidades dos centros de reeducação social em que trabalha. Sobre o seu maiô, houve quem comentasse que Ed precisa aprender a se preservar. Na verdade, ele não se sente desprotegido por estar sendo como é. A vestimenta volta e meia faz surgir diálogos que deixam os encontros espontâneos.

 

Sabemos que é natural haver espanto quando alguém não liga para os padrões de beleza. Além desse espanto, outras formas de humano se fazem visíveis. Nós somos plenamente capazes de articular novos contatos, fora do espanto-padrão, e irmos descobrindo o outro a partir do que vem de dentro, quebrando o visível automático. Estão sempre aí, no ar, as belezas que nos libertam das manias estéticas que existem sem força interior nenhuma.

 

Vejo no Ed Marte uma ecologia de si mesmo, que protege as imagens sonhadas. Elas se misturam e fazem liga com o material do dia a dia. Na sua casa, onde ele me recebeu, há uma atmosfera afetuosa envolvendo as muitas araras de roupa, badulaques, livros e discos: são cômodos cheios, muitas estantes, armários, mesas repletas de apetrechos para colocar no corpo. É na companhia deles que ele vai recriando o espaço em volta, fora da casa, onde a conversa se abre com muita gente.

 

 

Todos querem ser Ed Marte

 

Na casa de Ed, ao lado de uma farta coleção de fotos 3×4 pregadas numa parede, lemos, em letras grandes, a frase “Sinta-se bem”. Os rostos, como em toda 3×4, estão reduzidos a uma exatidão mínima. Nessa forma de retratar o rosto há sempre como que um constrangimento, uma restrição. Escuto muito por aí a frase “ninguém fica bem em 3×4”.

 

Dizer “Sinta-se bem” ao protocolo não é fácil. Ao respeitar um si mesmo que é verdadeiro e independente das máscaras sociais – e que ainda assim pode se confundir com elas – Ed Marte vem fortalecendo uma plataforma de liberação e de desbunde dos corpos na cidade. Falo da celebração do feminino que muitas vezes está constrangido por aí.

 

É por isso que há toda uma movimentação em torno da frase “Todos querem ser Ed Marte”. Aqui em Belo Horizonte, ele já virou fantasia de Carnaval. Vestindo um maiô florido, Ed sorri e faz-me pensar no amor na prática, o de agir vivo – coragem frente à apatia que toma conta do viver junto hoje.

 

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Foliões no Bloco Então Brilha!, Carnaval de 2014. Foto de Fabiano Siqueira.

 

 

Praia

 

A primeira vez que ouvi falar de Ed foi num Carnaval, em 2013. Enquanto um caminhão-pipa jogava água numa muvuca fervilhante, minha amiga comentou sobre uma figura de óculos escuros perto da mangueira.

 

Entre 2009 e 2012, começou a ficar evidente em Belo Horizonte a reunião de gente disposta a usar as próprias mãos. Algo que, antes, para muitos parecia restrito a pequenos grupos, nesse período engrandeceu. Hoje, há toda uma massa que ocupa as ruas para colocar o debate em dia e tomar banho de caminhão-pipa, numa recriação da cultura do asfalto.

 

Um desses ajuntamentos é conhecido como Praia da Estação – numa praça que é puro concreto, sob a qual corre um rio poluído, o Arrudas, corpos insistem em fazer-se visíveis, criando com a própria música e dança um espaço de sol gratuito. O encontro passou a ser regular, como resposta à proibição do prefeito Márcio Lacerda, que não permitia a realização de eventos na praça sem autorização oficial, chegando certa vez a murar o espaço público.

 

Ed Marte é uma das vidas empenhadas nessa movimentação. A sua história, inclusive, confunde-se com a da praia. Lá, em 2009, ele ia brincar de tomar sol de maiô e acabou recebendo o nome do amigo Rafa Barros.

 

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Jato do caminhão-pipa refresca os corpos no concreto quente da Praia da Estação, 2013. Foto de Priscila Musa.

 

 

“Prazer, Ed”

 

No vídeo “Retratinho com você”, feito em colaboração com Daniel Carneiro, Ed está em um parque no Centro de Belo Horizonte, chapéu de praia branco com abas onduladas, à beira de uma lagoa com barquinhos. Junto da placa “Tire uma foto com Ed Marte”, ele espera seja quem for.

 

Alguém que espera sem saber o que virá, estará sozinho? Esperando, não poderá ter encontro marcado com algo distante, além do imediato de ver agora?

 

Quando vejo Ed disposto a estar, penso na utopia da cidade como uma família: uma família que não vem da tradição do patriarca e que se estende além dos laços diretos.

 

“Retratinho com você”, vídeo da série Prazer, Ed, de Daniel Carneiro.

 

No dia a dia, a rua nunca está associada à proteção. Ali raramente sentimos que seja possível mostrar nossas imagens interiores. Também raramente nos colocamos para enxergar alguém, lá onde ele não pareça com mais nenhum que vimos. É o teatro maior dos horários e de estar a caminho de algo importantíssimo que não somos nós.

 

Estar pelas ruas diante do que não se pode prever. Essa coisa corriqueira que faz parte de qualquer andada a pé. A ação “Tire uma foto com Ed Marte” não se restringiu somente ao momento documentado no vídeo, mas se estendeu durante algumas semanas ou meses, pelas andanças do performer.

 

Ainda que coloque em jogo muitas opressões que nos abordam diariamente, como as de gênero, de classe e de moda, Ed Marte não faz uma imagem violenta. Ele não coloca em questão uma luta contra a casca grossa do público. Não vejo trejeitos dominadores ou esgares para quebrar padrões. A sunga volumosa e a meia arrastão estão ali causando espanto para muitos, mas nesse corpo tem a suavidade de começar sem saber onde termina, sem determinar a conversa.

 

 

Transdress

 

Um jornal da capital mineira, ao noticiar a participação de Ed no júri de um concurso de fantasias carnavalescas, atribuiu a ele o interessante termo transdress. Nesse júri havia o estilista, o ator, o presidente da fundação municipal de cultura, o artista plástico e o transdress.

 

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Cobertura na TV do concurso de marchinhas Mestre Jonas. Foto de Fabiano Siqueira.

O que é tradição no Carnaval sempre foi a agenda política de muita gente o ano todo: vestir de mulher, encontrar a própria bicha, alimentar o nosso apetite de imagens. As coisas se misturam: Ed começou a se vestir de mulher num Carnaval.

 

Quando eu era adolescente, antes de me aprofundar em Ney Matogrosso e também de saber da existência dos Dzi Croquettes, conheci os gender fuckers, outro termo curioso. Encontrei lendo Devassos no paraíso, do João Silvério Trevisan. Significa “destruidorxs de gênero”, “fodedorxs de gênero”. São caras que se vestiam de mulher sem fazer imagem de uma pureza feminina, sem se depilar ou imitar um modelo de visibilidade. Isso lá nos Estados Unidos, na São Francisco dos anos 1970. Fiquei maravilhado com essa possibilidade de existir a partir do que viesse de dentro.

 

Vestir um estado de espírito, uma honra de si pra si com o mundo. Não é vestir o encantamento de uma aprovação feita pelo mundo. O “destruidorx de gênero” também poderia ser uma mulher que não se depila, ou que não acredita na cartilha do sutiã, do cabelo, da moda. Todo mundo que vê a imagem sair do controle e não tem que corresponder a um modelo que diga você é assim e pronto. Todo mundo que é vasto. Todo mundo que sabe que o desconhecido é uma construção que tá dentro da gente, vibrando, em movimento, transformando-se.

 

06-tchatcha Ed Marte com folião do bloco Filhos de Tcha-Tcha, na ocupação Rosa Leão, periferia belo-horizontina. Foto de Rafael Mendonça.

 

Referências

“Barba que combina com maiô”. Entrevista a Daniel Toledo, no jornal O Tempo.

TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso. A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. [1986] Rio de Janeiro: Record, 2000.

 

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Ilustração: Gunther Ishiyama.

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